A Guerra segundo o Norte
Governo da Coreia do Norte utiliza meios de comunicação e museu para disseminar a própria versão do conflito que reuniu 22 nações contra o país entre 1950 e 1953
Pyongyang — A Guerra da Coreia faz parte do cotidiano norte-coreano. Graças, em grande parte, à propaganda oficial. O único canal de televisão a que os cidadãos têm acesso, controlado pelo Estado, exibe documentários diários sobre o conflito ocorrido entre 1950 e 1953. O tema também está presente na maioria dos parcos filmes permitidos no país, produzidos pelo regime. Ele serve ainda de mote para histórias em quadrinho, pôsteres, quadros, tudo devidamente fiscalizado por oficiais do governo e exposto em ambientes públicos.
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No entanto, a história contada nos mais diferentes meios oficiais é totalmente diferente da relatada mundo afora. Desde criança, o norte-coreano aprende que os Estados Unidos começaram a guerra com o massacre de Sinchon, matando 35 mil civis. Mas, sob o comando do primeiro líder do país, Kim Il-sung, logo o cenário foi revertido. Apresentado como um homem destemido e um gênio militar, Kim, segundo a versão do regime, encorajou seu povo a lutar, montou um exército, treinou todos os combatentes, criou armas e venceu a guerra.
Os coreanos (do Sul e Norte) sofreram terrivelmente com bombardeiros norte-americanos. Mas quem começou a Guerra da Coreia foi Kim Il-sung, ao invadir o Sul em uma tentativa de reunificar o país (veja quadro). Também é mentira que ele venceu o combate, pois houve um armistício. A propaganda da dinastia Kim ignora ainda a ajuda decisiva da China para frear a reação dos EUA e levar à suspensão das batalhas.
Ainda, é fato que o conflito iniciado por Kim Il-sung deixou a Coreia do Norte empobrecida e isolada. Mas essa é outra parte da história omitida por seus herdeiros. Eles focam no sofrimento e na violência causados pelos EUA durante a guerra. E nada na Coreia do Norte escancara mais esse método da propaganda norte-coreana do que o Museu da Vitoriosa Guerra de Libertação. Visitei-o, guiado por uma capitã do exército norte-coreano. É o maior e mais moderno do país.
Rendição
Logo na entrada, há uma estátua gigantesca de Kim Il-sung, o “Líder Eterno”, em pose vitoriosa. Após passar por ela, todo visitante é obrigado a sentar em frente a uma tevê de tela plana para assistir um documentário, exibido em VHS. Ao som de uma música de terror, ele começa com cenas de aviões norte-americanos lançando bombas, com cortes para crianças pequenas aterrorizadas, chorando. Em seguida, embalado por uma marcha militar, vem a reação de cidadãos comuns norte-coreanos se juntando ao exército do país indo ao front. A partir de então, guiados por integrantes do atual exército da Coreia do Norte, os grupos começam uma peregrinação pelas salas. São tantas que, segundo a guia que me atendeu, é preciso quatro dias para conferir todas.
Em síntese, recheadas de quadros pintados e muitas peças dos exércitos norte-coreano e norte-americano, com referências duvidosas, o museu resume a Guerra da Coreia da seguinte forma: de forma covarde, os “imperialistas” americanos despejaram bombas sobre mulheres e crianças, levando a uma imediata reação do “general” Kim Il-sung. De forma heróica, tendo o seu líder sempre na linha de frente, mas nunca ferido, o exército norte-coreano libertou uma a uma as cidades das Coreias do Sul e do Norte. Por fim, quando viram a eminente derrota, os inimigos começaram a sugerir uma rendição amigável, mas, na verdade, queriam pegar a Coreia do Norte de surpresa e atacá-la novamente.
Os recintos do museu, porém, não trazem nenhuma fotografia ou vídeo que comprovam a presença de Kim Il-sung na frente de batalha. Nem que ele inventou armas, como as expostas por meio do que seriam réplicas. Os guias também não falam no armistício. Eles só fazem questão de ressaltar que o atual líder, Kim Jong-un, visita regularmente o museu e dá palpites preciosos para tornar a exposição cada vez melhor.
“O massacre cometido pelos agressores imperialistas norte-americanos em Sinchon mostrou que eles são canibais e homicidas, que buscam prazer na matança”, afirma o líder supremo em uma dessas visitas, segundo a ACNC, a agência oficial de notícias. Kim Jong-un não dá entrevistas nem faz pronunciamento oral em público ou na tevê.
O visitante não pode fotografar o interior do Museu da Vitoriosa Guerra de Libertação, mas é instigado a fazer o máximo de imagens do exterior, onde há enormes painéis, estátuas, peças de artilharia do exército norte-americano da Guerra da Coreia e uma embarcação da Marinha dos EUA.
O navio é exposto como o maior troféu do regime norte-coreano em sua batalha sem fim contra os “imperialistas” norte-americanos. O USS Pueblo (AGER-2) é um navio de inteligência da classe Banner. Ele foi abordado e capturado pela Marinha da Coreia do Norte em 23 de janeiro de 1968, no incidente que ficou conhecido pelo nome do navio.
Na versão norte-coreana, o USS Pueblo estava em suas águas territoriais, mas os EUA sustentam que o navio se encontrava em águas internacionais no momento do incidente. Mais recentemente, novos dados mostraram que a Coreia do Norte capturou o USS Pueblo instigada pela União Soviética, que procurava uma máquina criptográfica a bordo, para corresponder com a chave fornecida aos soviéticos pelo espião John Walker.
O certo é que, antes da abordagem, navios-patrulha norte-coreanos chegaram a atirar no USS Pueblo, matando um militar norte-americano. O restante da tripulação foi devolvida aos EUA quase 11 meses depois, após ter passado por campos de concentração e torturas. A violência a que foram submetidos é omitida pelos guias do museu. O interior do navio exibe fotos que comprovariam uma rendição e a confissão de crime de toda a tripulação.
Os EUA nunca reconheceram a invasão das águas territoriais norte-coreanas. Alega que o comandante da embarcação assinou a confissão de um erro que não cometeu para evitar a prisão perpétua ou a condenação à morte da tripulação. Apesar de ser exibido como peça de museu em Pyongyang, o USS Pueblo ainda tem status de navio ativo na Marinha dos Estados Unidos.
Leia a seguir: A realidade está no interior do país