Pelo direito à mobilidade
As principais vias que dão acesso ao coração do Plano Piloto geralmente amanhecem congestionadas. Dentro de carros particulares, apenas o banco do motorista está ocupado, e os demais lugares vazios, o que mostra que a “cultura do automóvel”, apontada por estudiosos desde o século passado, continua em vigência em Brasília. Após 58 anos, chega a 1.727.281 o número de veículos registrados no Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran/DF), média de um habitante por 1,74 carro — superior à do estado de São Paulo, de 1,54. Os impactos disso são maiores do que os engarrafamentos. Hoje, o governo local investe na mobilidade urbana não apenas para assegurar o direito de ir e vir, mas também para reduzir os impactos ambientais e garantir um futuro mais sustentável.
Em países europeus, o carro não é visto como uma necessidade. O velho continente investiu em transporte público para que os habitantes deixassem os automóveis em casa e apoiassem a diminuição da emissão de carbono. Isso se repetiu na Ásia e nos EUA, e é o que o GDF espera fazer na capital federal. “O que existe de mais moderno em mobilidade urbana no mundo é voltado para pensar o setor do modo sustentável. E conseguimos isso com as pessoas utilizando coletivos para realizar trajetos mais longos”, diz o secretário de Mobilidade, Fábio Damasceno.
Para convencer a população a abandonar o conforto do veículo particular, o governo vem tentando tornar o transporte público atraente. Diante do aumento do preço da gasolina, o GDF investe na integração dos sistemas de transporte, que, além de trazer economia, promete deixar o cidadão menos tempo na parada. “Aumentamos o uso da integração em 10% desde o lançamento do bilhete único (em setembro de 2017). Agora, é possível realizar a recarga pela internet. Apenas 30% das passagens são pagas com dinheiro. Com isso, o usuário ganha tempo. ”
Mais do que incentivar o uso de ônibus, o projeto prevê a modernização da frota, tornando-a mais sustentável. Hoje, 20 ônibus rodam com biocombustível na cidade e, segundo o secretário de Mobilidade, o governador Rodrigo Rollemberg já demonstrou interesse em utilizar o formato de abastecimento na frota inteira. No último mês, também foi entregue o primeiro ônibus elétrico do DF — o segundo está em produção.
Novos modelos
Mesmo assim, a população ainda não está satisfeita. Na coluna Grita Geral do Correio Braziliense, que publica reclamações de leitores a serviços públicos, nos primeiros 19 dias de abril, o órgão que mais recebeu demandas foi o Transporte Urbano do Distrito Federal (DFTrans). Entre elas, locais não atendidos por ônibus ou demora no horário. Ingrid Alves, 27 anos, trabalha em um shopping e mora no Riacho Fundo II. Ao descer na cidade, por volta das 23h, tem de andar duas quadras da parada até onde mora. “Uso ônibus porque preciso, não é uma escolha. Não consigo imaginar alguém que passa pela situação que eu passo escolher andar de transporte público.”
Para chegar à população que não se sente abraçada pelo transporte público, novos formatos de serviço estão surgindo pelo mundo. Um dos que garantiu espaço em países como EUA, China, Finlândia e Inglaterra é o transporte responsivo à demanda. O objetivo do formato é trazer para o transporte coletivo as demandas individuais, hoje populares com Uber, Cabify e 99pop.
No Distrito Federal, quatro pessoas trabalham em uma startup que pretende trazer o serviço para a capital. O On.I-bus deve lançar um piloto no próximo mês.A ideia surgiu durante o mestrado da engenheira civil de Débora Canongia, 31 anos, em 2015, e agora vai sair das salas de aula e ganhar as ruas. “Por meio de um aplicativo, você faz o login e pode sinalizar as viagens que quer fazer, com pontos de saída, chegada e horários. Se existir demanda suficiente, com pelo menos oito lugares ocupados, aquele veículo vai às ruas para atender as solicitações”, explica.
O preço também é um atrativo. “Nosso objetivo é custar menos do que um serviço sob demanda particular, e um pouco mais do que o ônibus convencional.”Os veículos operados devem ser vans ou micro-ônibus, para um público de até 30 pessoas. Ele não segue a linha normal do ônibus, trafegando pelos caminhos mais rápidos apontados por aplicativos de geolocalização. “Lembro que andava no transporte público e só via pessoas com cara tristes, como se estivessem lá por não ter outra opção. Isso me fez pesquisar o que estava sendo feito no mundo para mudar aquilo, aí encontrei o transporte responsivo à demanda, que ainda não estava no Brasil, mesmo tendo um potencial bem grande no nosso cenário”, diz Débora. A expectativa do grupo é de que o On.I-bus chegue às ruas até o começo de 2019.
Sobre trilhos
Fundada para ser inovadora, Brasília ficou para trás na hora de investir no transporte sobre trilhos. O metrô só chegou à capital em 2001, e hoje opera com 24 estações, transportando, em média, 160 mil passageiros por dia. Para o futuro, o objetivo é torná-lo o principal meio de transporte coletivo do DF.
Até agosto, deve ocorrer a primeira inauguração de uma estação de metrô desde 2010 — a Estrada Parque (veja quadro). “Nossa ideia com as novas entregas é consolidar o metrô como a principal modalidade de transporte de Brasília, como um receptor do público que vem dos demais meios de transporte”, frisa o diretor Operação e Manutenção do Metrô-DF, Carlos Alexandre da Cunha. O serviço metroviário é um dos menos poluentes, o que explica o interesse em torná-lo maior no futuro. “A emissão de gases pelo metrô é nula, já que ele opera com tração elétrica.”
Também está sendo intensificada a política de bicicletas compartilhadas. Desde 2015, foram implementadas 11 estações nas asas Sul e Norte, além de cinco na UnB. Sozinhas, elas conseguiram dobrar o número de viagens mensais no sistema.
Três perguntas para
Pastor Willy Gonzales Taco, doutor em transportes e professor de engenharia civil da Universidade de Brasília (UnB)
Qual o cenário atual da mobilidade urbana do Distrito Federal?
Temos avançado de forma importante em alguns aspectos, mas em outros estamos abaixo do cenário internacional e até mesmo nacional. Um desses pontos seria em relação à gestão. Não há uma consolidação das equipes de trabalho. O que é feito por um governo não é continuado por outro e, muitas, vezes até durante uma troca de equipe, dentro do mesmo governo, os projetos não seguem. Isso faz com que muitos bons projetos não vão para a frente.
Também destacaria o problema da infraestrutura do transporte, que apresenta diversas deficiências. Exemplos disso são paradas que não têm teto nem escoamento, tornando impossível ficar nelas em período de chuva.
A venda de carros particulares vem caindo em alguns países, enquanto a frota do DF continua a subir. Por que a cultura do automóvel segue firme no Brasil?
Diferentemente dos países de primeiro mundo, as opções de transporte público que a população tem em Brasília não respondem ao que eles procuram. Por isso continuamos com o carro. É preciso tornar o serviço atraente. As linhas de ônibus precisam se tornar flexíveis, o que não são hoje. O transporte público funciona bem no sentido norte e sul do DF, mas no leste e oeste isso não existe. A população só vai abandonar o carro quando andar de transporte público for fácil e prático, e a população mostra querer isso. O uso do Uber é um exemplo. Fez as pessoas pensarem antes de comprar ou renovar um carro, porque ter um veículo próprio é caro, e a população não quer precisar dele.
Como será a mobilidade urbana no futuro?
Vamos ter uma grande transformação em relação às fontes de energia usadas no setor de transportes. Além disso, montadoras de automóveis estão colocando 2025 como o ano em que vão circular veículos autônomos, sem motoristas. O futuro da mobilidade é que ela se torne um serviço. Na Europa, os jovens nem tiram mais carteira de motorista, porque não é necessário. O serviço sob demanda e coletivo dá conta. A intensificação das novas tecnologias vai favorecer cada vez mais isso, como o transporte responsivo à demanda, que vai atender o que não é contemplado pelo serviço público.