A cultura livre - Casa de Cultura Carlos Marighella: A casa é sua
Mesmo “sem teto”, Casa de Cultura Carlos Marighella vira ponto de resistência na estância Mestre D'Armas, em Planaltina
No último dia da série de reportagem A cultura invisível, um mapeamento sobre as casas de cultura do DF, conheça um espaço em Planaltina. Relembre os locais que percorremos: Jovem de Expressão, Casa Frida, Espaço Cultural Imaginário, Galeria Pólvora, Espaço Cultural Ubuntu e Mercado Sul.
“Ousar lutar, ousar vencer.” Escritas com spray em um muro na estância Mestre D’Armas, em Planaltina, as sentenças dizem muito sobre o trabalho da Casa de Cultura Carlos Marighella. Mesmo sem um espaço físico próprio, a intervenção social por meio da arte é crucial no conjunto habitacional dividido em estâncias e situado às margens da BR-020. O local é constantemente lembrado pelos casos de violência que acontecem por lá. Foi um desses lamentáveis momentos que deu origem ao ponto cultural.
Em fevereiro do ano passado, um carro roubado e com placa clonada com cinco ocupantes se envolveu em um acidente durante uma fuga de uma abordagem policial. O veículo colidiu de frente com outro carro, em que havia uma pessoa, e todos morreram. Dentro do automóvel, roubado no Entorno do Distrito Federal, estavam cinco jovens. Um deles, tinha apenas 12 anos. A população teve acesso a vídeos em que a PM supostamente ridiculariza as vítimas, em frases como: “morre com dignidade” e “não chora, não”.
A tragédia deixou perplexos os moradores de Planaltina, que fizeram uma série de manifestações. Indignados com o descaso governamental, os jovens Igor Diógenes Bezerra e Eduardo Roberto fundaram, junto com outros amigos, a Casa de Cultura Carlos Marighella. Foi uma resposta prática para dar visibilidade ao que a estância tem de mais bonito.
Assim como em A casa, de Vinícius de Moraes, a casa de cultura é sem teto, sem nada. A estância como um todo é entendida como “lar” dos garotos. São nômades, mas cheios de propósitos. É uma casa invisível – o que permite ter abordagem ampla de redes praticamente infinitas. “Queremos tirar as pessoas de casa, diminuir o medo que algumas têm do próprio vizinho e as rixas entre gangues”, comenta Eduardo Roberto. Planaltina, como um todo, precisa dessa atuação. Já que, segundo pesquisa recente da Codeplan, apenas 3% dos moradores da cidade se envolvem com movimentos sociais, sejam sindicatos, sejam associações de moradores. O senso de coletividade é posto em prática, ainda que de maneira tímida.
Voz das ruas
“Nos reunimos para dar acesso para a juventude a todo tipo de arte. Teatro, poesia, e até música erudita de forma horizontal”, explica Igor Diógenes Bezerra. “Queremos emancipar a comunidade, fazer um elo com outros artistas”, diz. “Planaltina virou uma cidade-dormitório. Um absurdo, se aqui é uma das cidades com grande concentração de artistas”, emenda o jovem ativista e estudante de ciências naturais na UnB.
Cidade mais antiga do DF, Planaltina tem história e memória. São duas características que Igor e Eduardo buscam ressaltar em uma atitude de empoderamento da população, composta, em sua ampla maioria, por pardos e negros (são 75,19% dos moradores, segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios, Pdad 2015/16, da Codeplan).
Os encontros comandados pelos jovens e uma série de voluntários acontecem em uma praça de chão batido, onde instalaram uma placa em menção ao deputado constituinte Carlos Marighella (1911-1969), perseguido durante a ditadura militar. O local se tornou conhecido porque, na inauguração, em junho, houve bastante atenção social por conta da presença do governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg. No entanto, até hoje, falta um projeto urbanístico mínimo na praça, que tem apenas uma geladeira recheada com livros (doação do projeto Refresque Ideias – Geladeira do Livro). E terra.
Duas escolas também servem de ponto de encontro do coletivo, o CEM Pompílio Marques de Souza e o CEF Juscelino Kubitschek. “Se está difícil arranjar energia e infraestrutura, nós encontramos jeitos de continuar atuando”, explica Eduardo Roberto, que trabalha paralelamente como motorista em Planaltina.
A Casa de Cultura Carlos Marighella sobrevive de colaborações e de doações. Elas podem vir na forma mais óbvia, com recursos financeiros, ou de maneira mais afetiva, quando moradores de Mestre D’Armas abrem as próprias residências para abrigar cursos e oficinas culturais. A agenda depende da disponibilidade dos artistas e também das demandas da comunidade. “Ouvimos a voz do gueto, da periferia”, elucida Eduardo.
Do rap à música clássica
Nomes como o rapper, cantor e escritor GOG já passaram pela estância Mestre D’Armas a convite da Casa de Cultura Carlos Marighella. “Eles têm um grande atrativo, que é trabalhar na comunidade, algo que tem muito a ver com o hip-hop no sentido da autogestão. São tempos difíceis para quem atua dessa forma. As pessoas querem construir cadeias, mas a segurança pública para nós é a cultura. E ela não tem barreiras ou limites. É tudo que emana do povo”, afirma.
“O movimento musical tende muito a ir para o centro das cidades e ações como a deles fazem o que se chama de fotossíntese do hip-hop. É legal porque o meu trabalho tem o propósito de desmistificar o artista e fortalecer o ‘artivista’. No país da bola, é a bolinha do ‘zói’, o olho no outro que vai fortalecer o outro, em um processo de humanização”, complementa GOG. “Eu sou zumbi, sou Marighella, sou Malcolm X, temos um pouco de cada um deles em nossa formação”, conta.
Ativista e idealizador do grupo Viela 17, Japão também colaborou com atividades na Casa de Cultura Carlos Marighella. “Independentemente do apoio ou da falta de apoio que as casas têm, elas formam núcleos de resistência, como incentivo à leitura e até à formação política”, conta. “Eles abrigam um leque que, infelizmente, a educação escolar pública não ensina como deveria. Junto a eles, senti um esforço coletivo de comunidade”, afirma. “Acho legal porque a casa é o mundo. Ela não precisa ter teto, porque casa é onde você se sente bem e se familiariza”, filosofa.
Entretanto, as ações não se limitaram à cultura do hip-hop. No início do ano, o coletivo da estância Mestre D’Armas também levou cerca de 150 estudantes da comunidade para um concerto de música clássica do pianista Fernando Calixto na Embaixada da Federação Russa.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Vinicius Nader