A cultura livre - Casa Frida: O lar da cultura
Casa Frida oferece à população de São Sebastião cultura, com saraus, palestras, shows e debate. O espaço ainda presta apoio às mulheres da região
Esta série de reportagem busca dar luz a cultura invisível ao Plano Piloto, mas que tem extrema relevância dentro das regiões administrativas do DF. No primeiro capítulo falamos sobre o espaço Jovem de Expressão, em Ceilândia. Hoje a série segue para São Sebastião.
O rosto da artista plástica Frida Kahlo estampa a frente da casa 121 da Rua 30 de São Sebastião, região administrativa a 21,4km da Rodoviária do Plano Piloto. A imagem da mexicana poderia ser apenas mais um grafite nas ruas da cidade em frente a uma residência como qualquer outra. Mas a figura anuncia que ali está um lugar especial: um espaço de resistência feminista, acolhimento e promoção de cultura, arte e educação que atende pelo nome de Casa Frida.
A Casa Frida é literalmente uma residência, com três quartos, sala, banheiro, cozinha, garagem e quintal — esses dois últimos são os espaços que abrigam as principais atividades, mas nada impede que alguém em situação de risco possa usar um dos quartos. A ideia do projeto é ser um lar para a comunidade. Até por isso, é fácil encontrar nas paredes frases de apoio e grafites que representam as mulheres e a ideia de coletividade.
Criada há dois anos e meio, a Casa Frida foi iniciativa de algumas jovens da região de São Sebastião, entre elas, a produtora cultural Hellen Cristhyan Correia Boaventura e a poeta Thibi. “Dentro da universidade, eu via que era um espaço privilegiado para pensar arte, cultura e educação conjuntamente. Mas quando você abre a porta da universidade para a comunidade, não há esse diálogo. A periferia não tem espaço público para promoção de cultura. Você tem cultura, pessoas que fazem e produzem, mas não tem equipamentos públicos que garantam esse espaço de produção e reunião”, analisa Hellen.
Natural da Bahia, a produtora cultural diz que, assim que chegou à região, percebeu a necessidade de um espaço que agregasse esses valores à população da cidade, que conta com 100.161 habitantes, segundo dados da Pdad (Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios) referentes a janeiro de 2016. “Mas sozinha a gente não faz nada. Comecei a fazer reuniões com as meninas na pista da skate, saraus... Fui pensando o que podia fazer, daí surgiu a ideia do espaço Casa Frida”, conta.
Com foco inicialmente na cultura do público feminino, o nome do espaço tem inspiração óbvia na artista plástica Frida Kahlo por tudo que ela representou para as mulheres e para o movimento feminista. Mas também é uma sigla dos princípios do espaço: feminismo, revolução, igualdade, diversidade e amor. “Também temos um lema que é transformar a dor em arte e espalhar amor por toda parte. É o que rege nossa atuação”, completa Hellen.
De forma fixa, na Casa Frida são ministrados dois cursos de extensão: um com a temática sociedade, trabalho e capitalismo, do Instituto Federal de Brasília (IFB), às quartas, às 19h; e outro, o corpolítica, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), um coletivo destinado à mulheres com o objetivo de romper barreiras e construir um empoderamento teórico, acadêmico e pessoal, aos sábados, às 14h.
Moradora de São Sebastião há 19 anos, a poeta Thibi conta que a região estava carente de espaços culturais e de locais que discutissem temáticas voltadas ao mundo das mulheres. “As meninas estavam sem esse tipo de diálogo. Aqui a cultura machista e do estupro são muito fortes”, diz.
Além disso, há a Roda de São Samba, que celebra o samba da comunidade e das mulheres que produzem o estilo no DF, e o Cine Clube Feminista, que ocorre na casa e nas escolas públicas da região, com exibição de filmes com diretoras, atrizes ou temáticas de protagonismo feminino.
Alicerce da população
Desde o surgimento, a Casa Frida se tornou popular entre a comunidade de São Sebastião. Pelas ruas, a maioria das jovens sabem do que se trata o espaço, por conta da atuação dele na cidade e também dentro das escolas. “Conseguimos nos inserir bem na comunidade. Temos o apoio e as parcerias da escolas. Logo no primeiro mês de atuação havia um reconhecimento do que estávamos fazendo”, aponta Hellen Cristhyan.
No entanto, pelo fato de a casa ser um espaço de resistência existem também pessoas da comunidade que não aprovam as atividades do local. “Nem todo ponto de resistência é visto com bons olhos porque a gente pensa na libertação das pessoas, para que elas possam criar novos valores”, comenta Hellen.
De acordo com a poeta Thibi, várias pessoas da comunidade procuram a casa, mas no momento o maior desafio é aumentar esse contato com a população. “A Casa Frida ficou conhecida como ponto cultural regional muito rápido”, completa. Integrantes e participantes das atividades da casa integram, por exemplo, o Conselho de Cultura de São Sebastião e também o Fórum de Mulheres do Entorno.
Hellen, a pequena Ana Frida (filha de Hellen) e Thibi são as atuais moradoras da Casa Frida. Porém, a casa considera qualquer participante como um membro da iniciativa, independentemente de ser mulher ou homem. “A casa, antes de tudo, é um ponto de cultura. Tem gente que vem e se sente tão pertencente quanto nós. A Casa Frida é ela, não somos nós”, analisa Hellen.
Reconhecimento do valor
A importância da Casa Frida em São Sebastião fez com que o espaço fosse reconhecido por diversas iniciativas. Dessa forma, a casa, ao longo deste ano, foi palco de show do Festival Móveis Convida, de oficina do projeto Favela Sounds, e recebeu parte da programação do 5º Curta Brasília, festival internacional de curta-metragem.
A designer de moda Nina Maria passou uma semana ministrando uma oficina na Casa Frida a convite do festival Favela Sounds. Ela nunca tinha ouvido falar no local e diz que se surpreendeu quando chegou lá. “Fiquei sinceramente abalada emocionalmente quando vi o lindo trabalho que é desenvolvido na casa”, lembra. Nina produziu com as participantes uma viseira turbante, que tem como objetivo desenvolver o empoderamento do cabelo afro. “Passei por dias de muita emoção. A realidade do Plano Piloto é muito diferente. Se a gente deixar, a gente esquece das pessoas que estão em uma situação vulnerável na periferia”, completa.
Ao fim do curso, Nina doou duas máquinas de costura para a casa e se comprometeu a passar um treinamento. “Acho que o espaço é um exemplo, assim como as meninas que estão lá. Fiquei muito agradecida de participar, porque uma coisa é ver a página do Facebook e curtir, outra é ter uma participação. Eu já estive em um lugar parecido com o delas e a máquina de costura foi o que me tirou do buraco”, justifica.
Desafios do projeto
O trabalho da Casa Frida em São Sebastião é de suprir uma necessidade que existe na região administrativa: a falta de promoção à cultura. “Temos convicção que a Casa Frida existe porque há uma lacuna do governo que não consegue promover arte e cultura nas periferias de forma horizontal. A gente luta para que isso acabe e, quando acabar, a Casa Frida não terá a necessidade de existir”, afirma Hellen.
Manter um espaço como a Casa Frida é um desafio. Hellen e Thibi contam que a casa não tem CNPJ e nem se caracteriza como ONG. Doação e patrocínio empresarial e governamental não são aceitos no espaço, apenas individuais. “Acreditamos em editais públicos, mesmo com a dificuldade e burocracia deles, e políticas de estado. O Estado tem que ser forte e arcar com essa lacuna”, diz a produtora cultural.
Atualmente, a Casa Frida sobrevive da colaboração da comunidade, da renda das meninas que fazem doces, camisetas e cadernos artesanais para vender, além de uma arrecadação pela internet chamada 50 por Frida, em que qualquer pessoa pode doar pelo menos até R$ 10 todo mês, por meio de um carnê. “Tem várias formas que as pessoas podem nos ajudar, com apoio político, promovendo oficinas e palestras. A casa é aberta aos movimentos sociais. Aceitamos qualquer ajuda desde que seja individual e de coletivos sociais e culturais”, explica Hellen.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Vinicius Nader