Estudo para o Alvorada

Pequena escultura de Maria Martins pode ser único estudo de peça do palácio


O curador e historiador Claudio Pereira sempre foi um arqueólogo quando se trata de obras de arte cujo contexto de produção esteja ligado à história de Brasília. O interesse foi herança dos pais, um casal de pioneiros que desembarcou no Planalto Central entre 1958 e 1962 para trabalhar na construção e na transferência da capital. Esse interesse o levou a construir uma coleção de objetos com profunda ligação com a história da arte brasiliense. Entre pinturas e desenhos de Bruno Giorgi, Marianne Peretti e Burle Marx está um pequeno estudo da escultora Maria Martins.

A peça  de 20,5 X 11 cm confeccionada em cera perdida com pó de ouro e óxido de ferro é um protótipo da escultura Rito dos ritmos, criada no final da década de 1950 sob encomenda de Juscelino Kubitscheck para o jardim do Palácio da Alvorada. Pereira adquiriu o estudo há mais de 15 anos, no espólio de uma amiga da escultora. Junto, o curador comprou uma pintura a óleo sobre cartão na qual Maria retratou o jardim do Palácio do Alvorada com a escultura em frente à piscina. “Tudo indica que seria um estudo para ver onde ficaria a peça”, explica Claudio Pereira. O curador lembra que essa é uma das primeiras esculturas públicas de Brasília.

Casada com o embaixador Carlos Martins, Maria morava no Japão na época da encomenda. A proximidade com o Oriente e as boas relações diplomáticas com o país teria levado o imperador Hirohito a oferecer o projeto dos jardins internos do Palácio do Alvorada. Em Rito dos ritmos, duas figuras parecem se entrelaçar e se fundir em um ser antropomorfo formado por pernas e braços. “Consta também que essa obra seria uma inspiração apaixonada de Maria por (Marcel) Duchamp”, conta Pereira. Francês radicado nos em Nova York, Duchamp é considerado um dos inventores da arte conceitual e era muito ligado aos surrealistas europeus exilados na cidade durante a Segunda Guerra. Maria transitou no grupo durante o tempo que morou nos Estados Unidos e chegou a ser considerada a única surrealista brasileira.

A historiadora Graça Ramos, autora de Maria Martins: escultora dos trópicos, acredita que este pode ser um estudo da artista para a peça. “Não é o único estudo porque existe um desenho e uma gravura que têm essa mesma figura. E são anteriores à peça que está no Alvorada. Mas em bronze, essa peça é a única em pequenas proporções até agora localizada. Pode ser, portanto, um estudo dela para a peça final, dependendo da data”, avalia Graça.

Em casa, o curador também guarda as mãos de Juscelino Kubitscheck moldadas em gesso. As peças foram realizadas pelo escultor Zeno Zani na fundição que mantinha no Rio de Janeiro e a família de Pereira adquiriu a peça do espólio do artista. Zani moldou as mãos do fundador de Brasília para uma futura escultura a ser fundida em bronze, mas a obra nunca chegou a ser realizada. Zani, vale lembrar, foi responsável por fundir várias esculturas públicas de Brasília, entre elas os anjos da Catedral, de Alfredo Ceschiatti, e os Candangos de Bruno Giorgi.

Claudio Pereira gostaria de, um dia, ver seu acervo em lugar apropriado e acessível ao público da capital. “A ideia é destinar tudo a Brasília, mas é tão complicado”, lamenta. O curador lembra de uma lista de acervos importantes para a cidade e que acabaram deixando Brasília por falta de interesse público local em manter o material. “Já perdemos a coleção de Rubem Valentim, a biblioteca e o acervo de Murilo Mendes, a coleção de Reynaldo Jardim, que tem Lygia Clark e Portinari, tudo original, das bonecas do caderno do JB”, contabiliza.

Segundo Pereira, a viúva de Jardim, Elaina Daher, bateu de porta em porta de órgãos públicos federais e distritais durante dois anos antes de desistir. Quando um temporal inundou a chácara na qual o material estava guardado, Elaina ficou com medo de perder tudo e ofereceu a coleção de cadernos do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB) ao Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que já havia se interessado pelo material. O suplemento foi uma espécie de berço do concretismo brasileiro e tem imenso valor histórico. “Em 72 horas baixou um a tropa do MoMA com embaladores e restauradores. Infelizmente, saiu de Brasília. Mas pelo menos está lá exposto para todo mundo na biblioteca do MoMA, em segurança”, avalia. “Essa questão do acervamento é triste. Temos tido perdas irreparáveis. Quem perde é o público. E não é difícil guardar, só precisa de um espaço e uma equipe. O mais difícil já tá lá, que é o acervo.”

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