Falta assistência para dependentes químicos na terceira idade

Especialistas lamentam falta de políticas públicas e profissionais de saúde preparados para lidar com o abuso de álcool e drogas durante a velhice

Correio Braziliense

Aqueles foram anos muito loucos. Tempos de experimentar, contestar, virar as costas ao que era antigo e buscar nas experiências sensoriais um novo significado para a vida. A geração nascida no pós-guerra produziu alguns dos melhores legados artísticos e culturais do século 20 e abriu as portas para que as seguintes pudessem desfrutar de uma liberdade inédita. Essa é uma história conhecida. Mas há um capítulo ainda não contado. A aceitação sem precedentes de drogas ilícitas e álcool entre os chamados baby boomers também deixou como herança uma epidemia de idosos dependentes químicos, sobre os quais muito pouco se fala.

“A questão é que agora é que a gente está começando a ver idoso usuário de drogas. É a população de Woodstock envelhecendo. É a partir de Woodstock que se tem essa cultura da droga como diversão, interação social”, diz a psiquiatra Helena Moura, especialista em dependência química, referindo-se ao icônico festival de música de 1969. Faltam estatísticas, estudos qualitativos e pessoal preparado para lidar com essa nova realidade. No Brasil, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS-2013) identificou que 14,2% da população com mais de 60 anos ingere bebida alcoólica uma vez ou mais por semana. Desses, 4% havia consumido cinco ou mais doses nos 30 dias anteriores ao inquérito. Para especialistas, esse número subestima a realidade. A PNS não traz informações sobre consumo de drogas ilícitas.

Além disso, nem todo profissional da saúde está treinado para reconhecer a dependência entre idosos, segundo a psiquiatra Alessandra Diehl, preceptora da residência médica em psiquiatria do Instituto Américo Bairral, em São Paulo. Ela e a pesquisadora Sandra Pillon, autora de alguns dos poucos artigos em português sobre o assunto, estão investigando, atualmente, o atendimento de idosos em emergências em 24 países, e a possível relação da procura pelo serviço com uso de álcool. De acordo com a psiquiatra, além do desconhecimento, muitas vezes a dependência passa despercebida por médicos e enfermeiros porque os sintomas do abuso podem mimetizar os de doenças físicas comuns na faixa etária, como depressão e demência.

“Outra interpretação errônea muito comum se refere ao fato de que os familiares da pessoa idosa podem ter uma distorção inconsciente em relação ao envelhecimento e entender que ‘beber não faz diferença, pois ele não vai muito longe mesmo’ ou ‘é a única coisa que o faz feliz’. Outros pensam que idosos que abusam de álcool ou de benzodiazepínicos não terão sucesso no tratamento, e assumem que tentar de inibi-los seria um desperdício de recursos. Muitos, principalmente as mulheres, bebem sozinhos, em casa. Todos estes fatores retardam a identificação, e consequentemente, a busca de ajuda”, afirma Alessandra Diehel. A psiquiatra Helena Moura lembra, ainda, que sinais clássicos de dependência, como faltar ao trabalho às segundas-feiras, não estão presentes, já que a maioria dos idosos já está aposentada.

Aposentados e de baixa escolaridade

Embora faltem estudos epidemiológicos nacionais, alguns pesquisadores têm investigado o tema, para tentar traçar o perfil dos usuários de álcool e drogas com mais de 60 anos. Um desses trabalhos, da psiquiatra e especialista em dependência química Sandra Pillon, avaliou os dados de 191 idosos atendidos de 1996 a 2009 no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas de Ribeirão Preto (Caps AD), em São Paulo. A maioria era formada por homens (90,6%), tinha baixa escolaridade (78,4%) e estava aposentada (86%). As drogas com maior uso foram álcool, maconha, crack e cocaína, mas também houve registros de solvente e medicamentos tarjados em excesso. O universo do estudo correspondeu a 3,2% de todos os atendidos na unidade do CAPS avaliada, levando os pesquisadores a concluir que “o número de idosos que buscam assistência especializada é muito baixo”.

No Ceará, a terapeuta ocupacional Ana Nery de Castro Feitosa, do Hospital Universitário Walter Cantídio, conduziu um estudo semelhante, com dados de 55 idosos atendidos no CAPS de Fortaleza. A maioria em tratamento na época da pesquisa eram mulheres (53%). Mas, no caso delas, a principal substância usada era o tabaco. O álcool atingia, especialmente, os homens (83,3% dos usuários). “Contudo, atualmente, a sociedade assiste a um número crescente do alcoolismo feminino”, ressalta a especialista. Dos pacientes que utilizavam álcool e benzodiazepínicos (ansiolíticos como diazepam e aprazolan) concomitantemente, por exemplo, um quarto eram mulheres.

“Há uma relação do uso de substâncias psicoativas por mulheres com a conquista de seus direitos, com mais autonomia, aumentando sua participação social”, observa a pesquisadora. Porém, o uso de drogas em idosas também está atrelado a fatores emocionais, existenciais, como perdas, abandono e ociosidade, que podem levar à depressão e outros transtornos mentais, como a dependência química”, explica. Entre homens, além de álcool e tabaco, Ana Nery encontrou abuso de solventes, crack e maconha. Em 20% dos casos, os idosos de ambos os sexos também apresentavam diagnóstico de depressão.

"A farra não deixou"

O aposentado Antônio Flaviano Jaqueira, 71 anos, esperou a velhice para procurar ajuda para um problema que começou ainda na juventude. Ele chegou a Brasília há mais de quatro décadas, quando a cidade era um grande descampado, com poucos prédios cobertos pela poeira. Aqui, trabalhou de zelador, bombeiro hidráulico e eletricista. Teve algumas oportunidades, todas evaporadas no álcool. “Fui microempresário, tocava bar e mercearia, mas foi tudo por água abaixo”, relata. Um agravante é que o idoso é diabético, condição piorada pelo álcool.

Há três anos, ele admitiu, pela primeira vez, que precisava parar. Depois de uma bebedeira que o deixou inconsciente por mais de um dia, foi ao CAPS AD do Núcleo Bandeirante. Com intermédio da Comunhão Espírita, ficou internado em uma clínica de desintoxicação e, depois da alta, foi morar em um lar para idosos, em Águas Lindas de Goiás, no Entorno do Distrito Federal. “Em todas as cidades satélites de Brasília, eu tive chance de ter uma casa, mas a farra não deixou”, admite. “Aqui eu me sinto em casa.”

A queda do Império Romano

Também foi quando chegou a um extremo que o cabeleireiro Orlando Miranda, 72 anos, recebeu assistência. Na juventude, o mineiro de Belo Horizonte foi maquiador de teatro e viveu com intensidade a efervescente cena cultural do país. Filho de um violonista profissional e estudante de piano clássico por cinco anos, acompanhou, no Rio de Janeiro, o nascimento da bossa-nova. “Era uma época maravilhosa. Conheci Elis Regina, Elizeth Cardoso, aquele pessoal todo do Beco das Garrafas”, conta, citando a famosa travessa onde se ergueram as principais casas noturnas cariocas dos anos 1950 e 1960. “Eu frequentava a noite, ia para a pista de dança. Fumava uma maconhazinha para relaxar, às vezes pintava uma cheirada de cocaína”, relata.

Ele atribui o início de sua derrocada profissional e pessoal ao sofrimento pela morte da mãe, a quem era muito ligado. “Com a morte dela, conheci uma pessoa que estava mexendo com a droga da moda, o crack. E numa tarde eu experimentei. Essa droga, quando você usa a primeira vez, não tem como fugir dela. Aí pronto, começou a queda do Império Romano”, define. Há oito anos, Miranda se mudou para Brasília, onde trabalhou em um famoso salão do Lago Sul. Fazia os cabelos de sobrenomes tradicionais da cidade. A dependência cada vez maior começou a comprometer o serviço. “Tinha agenda lotada e não ia trabalhar, dava bolo em noiva, que é uma coisa seríssima. Até o dia do dono do salão me chamar e dizer que infelizmente eu não podia continuar no quadro de trabalho.”

Do bairro mais nobre de Brasília, o cabeleireiro passou a atender no Céu Azul, cidade pobre do Entorno. “Até que um dia eu quis tentar o suicídio. Pensei em me jogar na frente do metrô, cheguei muito angustiado em casa, mas na hora H resisti.” Por intermédio de uma ex-cliente, ele foi encaminhado à Comunidade Terapêutica Vinde Vida, uma casa de recuperação na região rural do Gama que acolhe dependentes químicos. Miranda está lá há desde 27 de setembro de 2014. A instituição não recebe repasses do governo e também não conta com psiquiatra ou psicólogo. Todos são voluntários, e o local, idealizado por um pastor, funciona à base de doação. “O crack é uma coisa doentia, é insaciável. Agora eu estou muito feliz. Não sei se é o adjetivo certo. Estou tranquilo”, define Miranda.

Falta de políticas públicas

A psiquiatra Alessandra Diehel critica a falta de políticas públicas voltadas a essa demanda. “Elas ainda não conseguiram alcançar o fenômeno da dependência química da terceira idade e, apesar do crescimento do número de idosos sofrendo com os danos pelo uso de álcool, tabaco, e, principalmente pelas drogas prescritas, como analgésicos e benzodiazepínicos, essa condição permanece subestimada, subidentificada, subdiagnosticada e subtratada em nosso país. A atenção primária, que deveria ser a porta de entrada da rede de serviços de saúde, não conta com geriatras, clínicos ou outros profissionais suficientemente capacitados a identificar e atender esta demanda”, diz.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que “o atendimento aos pacientes com mais de 60 anos com necessidades decorrente do uso de álcool e outras drogas devem ocorrer no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial, que conta atualmente com 2.457 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) em todo o país. No Distrito Federal são 14 unidades”.

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