A cultura livre - Mercado Sul: E o beco renasceu
Antes castigado por prostituição e drogas, Mercado Sul, em Taguatinga, se renovou com projeto que reúne cultura, sustentabilidade e economia solidária
A série de reportagens A cultura livre percorreu as casas de cultura Jovem de Expressão, em Ceilândia; Casa Frida, em São Sebastião; Espaço Imaginário Cultural, em Samambaia; Galeria Pólvora, no Gama; e Espaço Cultural Ubuntu, no Recanto das Emas. Hoje desembarca em Taguatinga.
Quem vê as paredes do Mercado Sul coloridas, repletas de desenhos, grafites e a efervescência de eventos como a EcoFeira pode custar a acreditar que anos atrás todo o espaço do beco estava entregue à prostituição e às drogas. Em Taguatinga, o conjunto de três blocos (na QSB 12/13, às margens da Samdu) se transformou, depois da revitalização, em um dos principais pontos de resistência na cultura do DF e reúne artistas, oficinas, ateliês, teatros e mais uma série de atividades.
Antes de se tornar o que é hoje, o Mercado Sul era um dos principais centros comerciais de Taguatinga, ainda na década de 1960. Apesar de pequeno, o espaço do beco tinha movimento agitado e era uma das primeiras opções para quem precisava de algo na região.
Mas aí, nos anos seguintes (década de 1970), chegaram os supermercados, os shoppings e o espaço viu toda a importância ruir. Com a debandada dos clientes, partiram também a maioria dos comerciantes. Restaram o abandono, a sujeira; reinou a fama do tráfico e da prostituição. A região ficou mal vista pelos moradores. Era a terra do medo.
Os pioneiros
Mesmo com esse contexto, na década de 1990, uma dupla de luthiers (fabricantes de instrumentos musicais) chegou ao local e resolveu que valia a pena tentar recuperar o espaço. Pai e filho, João Pedro Aden, 82 anos, e Alexandre Aden, 50, são os responsáveis por fazer nascer a vontade de revitalizar o Mercado Sul.
“Conheço a região há 43 anos. Tudo tinha ali na época: sapato, roupa... Com a vinda dos novos shoppings, aquilo acabou. Diminuiu a venda e o povo vendeu as lojas”, lembra João Pedro. Mais conhecido como Mestre Dico, ele faz questão de lembrar da carreira de músico e dos nove discos gravados com a dupla Engenheiro e Advogado (em parceria com o filho).
João Pedro conta que, quando comprou o imóvel, pagou barato por conta da desvalorização, mas houve uma luta grande para dar vida ao espaço novamente. Só para tirar os entulhos que estavam deixados ali, foram necessários dois caminhões, conta Alexandre. “Tinha muito barzinho, muita prostituição. Por meio de ocorrências policiais, de limpeza, a gente retomou o espaço”, explica.
Com a chegada da luthieria e as iniciativas para limpar e dar segurança ao local, vieram outros comerciantes. “Veio o Chico Simões, com o espaço Invenção brasileira. Acabou virando um ponto de cultura, um ponto histórico de Taguatinga. Nosso objetivo é fazer um tombamento para virar ponto turístico”, lembra Alexandre.
Para ele, a retomada e a transformação do espaço em um ponto cultural tiveram a importância de devolver à sociedade um ambiente antes tomado pela sujeira e pela criminalidade. “Reintegramos para a sociedade um ponto abandonado. Hoje é um local que traz cultura e ninguém tem mais medo. Era um ponto de prostituição, vandalismo, tráfico”, pondera.
De todos
Capoeira, yoga, feira sustentável, oficinas, artesanatos, palestras, bicicentro. As atividades, no Mercado Sul, são várias e abertas para toda a população. A ideia é entender a cultura como uma maneira de ocupar a cidade e se relacionar com a comunidade. “A gente pensa a cultura bem nessa ideia de cultivar e aqui temos aprendido que para fazer cultura tem que suar”, diz o mímico e educador Abder Paz, 29 anos, há cerca de 11 anos morador e militante do Mercado Sul.
O projeto não conta com patrocínio para manter as atividades do local. E a ideia é justamente essa, que tudo se mantenha com economia solidária. Quem mora ou trabalha no Mercado Sul dá a força de seu ofício. “Tudo é mantido assim: pela força de cada um, somos um movimento autônomo. Não buscamos patrocínio em leis de incentivo e tudo, a nossa visão é focada em criar e fortalecer políticas públicas”, explica.
Além disso, as únicas fontes de renda são a EcoFeira, que abre espaço para a venda de produtos sustentáveis aos sábados, e a EcoLoja, mantida na ocupação de maneira voluntária.
A ocupação
Depois da retomada, o Mercado Sul passou a receber artistas, artesãos, festivais, eventos e a atrair cada vez mais gente interessada em viver e pensar a cultura que pulsava na região. As lojas, antes abandonadas, passaram a ser ocupadas por oficinas, pontos de artesanato.
A princípio, o grupo pagava aluguel de todos os espaços. E cada vez mais lojas eram ocupadas e reformadas. No início de 2015, no entanto, os proprietários propuseram um aumento considerado abusivo pelos moradores e artistas. “Eles subiram o valor em uma proporção que não era possível de ser paga”, conta Abder.
Com o aumento, as lojas voltaram a ficar abandonadas, conta o educador. Então, em fevereiro de 2015, veio a ação mais polêmica do movimento: os espaços vazios foram ocupados novamente (agora sem pagar aluguel). “Nós nos baseamos em uma questão presente no Estatuto das Cidades: se a propriedade particular não cumpre sua função, pode ser desapropriada”, conta.
A questão gerou uma batalha judicial, ainda em trânsito. Mas, desde então, o movimento conquistou apoios importantes, como o do GDF. O governo distrital, por meio da Secretaria de Cultura, oficializou o interesse em desapropriar dos antigos donos os oito lotes e um box ocupados pelo movimento cultural em Taguatinga Sul.
O GDF reconhece e elogia a atuação do projeto. “O trabalho realizado por diversos coletivos no espaço revela uma compreensão do que há de mais contemporâneo na concepção de cultura no mundo atualmente”, diz o documento, que ressalta também o caráter social da iniciativa.
A decisão de ocupar, conta Abder, veio do desejo de continuar o trabalho cultural e até mesmo de expandir os limites. “A gente pensou em como ocupar esse espaço para atividades que tinham uma relação com a arte e com a transformação urbana”, explica.
Na expansão, veio a ocupação de lojas que mesmo antes estavam abandonadas. “O segundo beco do Mercado Sul que estava totalmente abandonado, era meio que improdutivo culturalmente. Formamos um monte de gente para ocupar e fomos também buscar as leis em que a gente poderia se amparar.”
Ecologia
Sustentabilidade é palavra de ordem no Mercado Sul. A EcoFeira, por exemplo, é um dos principais eventos realizados pelo projeto e o bicicentro empresta bicicletas e possibilita a troca de peças, além de permitir que o público aprenda a consertar a própria bike.
Algumas das oficinas de artesanato também seguem o princípio. Móveis e instrumentos de papelão, por exemplo, são produzidos no espaço e há oficinas para quem quiser aprender a fazê-los.
Artesão e músico, Juraci Moura conta que os ensinamentos, às vezes, ultrapassam as fronteiras do Mercado Sul. “Eu realizei três oficinas em três escolas públicas recentemente, em Taguatinga, Ceilândia e Recanto das Emas. E agora eu vou realizar uma em Cavalcante (GO)”, lembra.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Vinicius Nader
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