Obcecada por cinema

Acervo de Berê Bahia conta a história do cinema em Brasília e no Brasil

Na pequena cidade baiana de Jacobina (na Chapada Diamantina) não há mais um cinema. Filmes passam apenas na concha acústica. Todas as salas exibidoras foram transformadas em igrejas. Mas foi lá, entre leituras de revistas como Realidade, Cruzeiro e Manchete, colecionadas por um tio semiletrado, que a pesquisadora Berê Bahia, assídua em sessões matinais e em matinês e soirées aos sábados e domingos, fomentava uma boa doença. “Lia tudo o que tinha a ver com cinema; lia – tirava da revista -- e comecei a arquivar”, explica.

No Cine Paiaiá, o mais frequentado, Berê via, na porta, uma lousa, com os pratos: vinha o nome do filme, o diretor e os principais atores. “Comprei, então, uma cadernetinha em que fichava, colocando o que tinha achado do filme e por quê. Não era crítica. Na verdade, era apenas a minha impressão”, conta. A idolatria por Glauber Rocha foi natural da época. “Quando cheguei em Brasília, em 1972 – empolgada pelo nascimento de uma nova capital – eu já tinha a fascinação por Glauber”, lembra. Dois volumes de coleção própria, com mais de 800 matérias, dão conta de informações sobre o ilustre baiano que, por sinal, foi homenageado no batismo do afilhado de Berê.

Filmes nacionais e internacionais dividem o espaço das prateleiras na casa de pesquisadora na Vila Planalto com biografias de personalidades da sétima arte. Ali, há desde catálogos de festivais locais até documentos coletados em hemerotecas. Infinitas camisetas estampam no peito o amor de Berê pelo cinema, a ponto de encherem literalmente um balaio no qual as roupas ficam dobradas, em plásticos, intactas. “Cinema, para mim, é minha religião. Tudo que tem a ver com cinema faz parte do meu interesse. Camiseta, por exemplo, não é apenas vestuário: assumo, com cada uma das peças, o significado de tomar parte do grupo Amigos do Cine Brasília”, conta.

Artista plástica e roteirista de cinema, a amiga Hercília Lopes assina o design de muitas das camisetas, com dizeres do tipo: “Eu amo o Cine Brasília; antes, durante e depois do Festival”. O acúmulo de informações desembocou num projeto extremamente ligado ao dito templo da sétima arte, o Cine Brasília. “Ainda ligada ao Ministério da Educação, fui indicada para a Embrafilme como programadora de filmes, especialmente 16mm, e fazia trabalhos junto a cineclubes, sindicatos, universidades e igrejas, como vice-presidente da ABD local (atual Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo), em meados dos anos 80. Levantava tudo que tinha a ver com cinema e a produção dos cineastas de Brasília. Nisso, surgiu o projeto 30 anos de Cinema e Festival, lançado em 1998, em parceria com Celso Araújo e muitos colaboradores”, explica Berê Bahia.

Com pé e paixões também pela cozinha, Berê guarda amplo acervo de livros de gastronomia, amplo ingrediente de informações até para o trabalho. Em 2003, ela lançou o livro Luz, câmera, mesa e ação: O cinema brasileiro na cozinha. No corredor para o quarto, em que prevalece decoração relacionada a cinema, ainda há prateleira reservada a publicações sobre Brasília.

Amor pela cidade

“Por meu trabalho ter a capital como foco, e não só na área de cinema, para falar sobre variados temas, tenho que saber do contexto”, reforça Berê, cercada por livros como Poeira & batom no Planalto Central – 50 mulheres na construção de Brasília (de Tânia Fontenele Mourão e Mônica Ferreira Gaspar de Oliveira); Brasília em 51 cartas (Ivany Câmara Neiva); O sonho candango – Memória afetiva dos anos 80 (de Alexandre Ribondi, Cláudia Pereira e Romário Schettino) e, claro, Festival 40 anos: A hora e a vez do filme brasileiro (de Maria do Rosário Caetano).

“São livros obrigatoriamente ligados à identidade de Brasília, em qualquer bibliografia”, reforça a pesquisadora. Seis anos depois de contagiada pela “loucura por cinema”, Berê Bahia, em 1972, chegou a Brasília, descobrindo “um mundo - uma cidade e o Cine Brasília”. A autoria de Brasília 5.2 – Cinema e memória (lançado em 2012) brotou, daí, naturalmente. “Fiquei contente e aturdida, quando levantei o dado de Brasília, entre 1965 e até 2012, ter participado com 511 filmes no Festival de Cinema. É impressionante este retrato da capital, nas mostras tanto competitivas quanto informativas e paralelas”, pontua a pesquisadora.

No meio da apresentação de coleções, como a reservada aos curtas-metragens de Brasília, e relíquias conseguidas por intermédio do Arquivo Público do DF, a eterna cineclubista Berê Bahia conta do atual desapego que cerca bens materiais. A doação de um lote com quase 400 filmes entra na conversa. “Chega uma época em que não há sentido apenas em acumular, temos que dividir. Meus pais moram em Cachoeira Grande, e lá tem um colégio sem biblioteca. Achei interessante entregar parte do meu acervo para a escola municipal. Foi um carreto para lá só com filmes. Doei, ao todo, 375 títulos”, conclui, com pontinha de orgulho.


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