Uma era de concertos

Coleção de Aloysio de Alencar conta história da música no Rio

Aloysio de Alencar Pinto era um homem organizado. Gostava de colecionar tudo que dissesse respeito à música. Talvez já soubesse, lá pelos anos 1930 e 1940, que guardar programas de concertos, partituras oferecidas por amigos, pedacinhos de papel com um ou outro autógrafo e fotografias poderia ser útil em um futuro próximo. Alexandre Dias, pianista, fundador do Instituto do Piano Brasileiro (IPB) e pesquisador obcecado pela história da música erudita no Brasil, ficou muito agradecido a Aloysio quando começou a abrir as caixas com material enviado do Rio de Janeiro pela família do músico e professor.

Em pacotes muito organizados e, sobretudo, muitíssimo bem preservados, o pesquisador, compositor e professor guardava preciosidades que, aos poucos, são catalogadas, digitalizadas e enviadas a especialistas para que possam comprovar a autenticidade do material. Cearense nascido em Fortaleza em 1911 e morto em 2007, no Rio de Janeiro, Aloysio de Alencar Pinto foi aluno dos pianistas Barrozo Neto, no Rio, e do virtuoso russo Nikolai Orloff, em Fortaleza. Nos anos 1930, mudou-se para Paris, onde estudou com o compositor francês Robert Casadesus e as pianistas Marguerite Long e Nadia Boulanger, alguns dos maiores nomes do piano internacional no século 20.

No Brasil, era amigo da nata da música carioca. Conviveu com nomes como Fructuoso Vianna, Jayme Ovalle e Pixinguinha. A convivência explica a diversidade e a preciosidade do acervo reunido durante décadas. Entre o material recebido por Dias, estão manuscritos de Toada nº 6 e Chula paroara, de Fructuoso Vianna. São partituras copiadas à mão e sem data, provavelmente feita pelo próprio compositor. Xangô, de Jayme Ovalle, é também um manuscrito. “Para mim, é uma peça inédita. Isso precisa de um trabalho musicológico pesadíssimo para comprovar, é preciso contactar o biógrafo do Jayme Ovalle, comparar caligrafia, verificar”, explica Dias, que quer deixar o material acessível para pesquisadores poderem realizar o trabalho de autenticação.

Do tango ao amor, de Pixinguinha, nem catalogado está. “A gente nem sabe se é dele mesmo”, avisa Dias, que já enviou a partitura para que o Instituto Moreira Salles (IMS) analise se foi feita de próprio punho pelo compositor. Na coleção, há ainda a Valsa nº 8 e a Sonatina, ambas de Mozart Camargo Guarnieri, a segunda autografada e dedicada a Aloysio pelo próprio compositor. Dedicatórias, aliás, há inúmeras no acervo.

A coleção é muito diversificada. Além de partituras, há centenas de programas de concertos que reconstituem a programação da música erudita no Rio de Janeiro da primeira década do século 20. Além de compositores brasileiros, é possível traçar a passagem de importantes nomes internacionais pela cidade. O polonês Arthur Rubinstein, um mito do piano no século 20, referência em gravações de Chopin, esteve no Rio em diversas ocasiões. Em um dos programas do acervo, ele divide o palco do Theatro Municipal com  dois outros mitos, Brailowsky e Joseph Hoffman. Em 1935, Guiomar Novaes tocou peças que nunca chegou a gravar e no ano seguinte, Alfred Cortot, outro mito do piano, se apresentou no Municipal. O escocês Frédéric Lamond, que foi aluno de Franz Liszt, também tocou na capital fluminense, assim como o violinista lituano Jascha Heifetz,considerado um dos mais importantes do século 20, e Fritz Kreisler, que tocava com Sergei Rachmaninoff. Até Igor Stravisnky tocou no Rio em 1936. No programa, o público é avisado de que o compositor, além de tocar, também daria uma palestra. “E isso tudo o Aloysio estava lá, ele foi assistir. Dá para contar a história dos concertos no Municipal”, acredita Dias.   

Entre as centenas de programas guardados pelo músico, um se destaca quando se trata de música brasileira. Com a capa vermelha, o programa original do show em homenagem a Pixinguinha e organizado por Jacob do Bandolim e Radamés Gnatalli, está intacto e bem preservado. O show aconteceu em 1968 e rendeu, dois anos depois, o disco Pixinguinha 70.

A mão de Pixinguinha

A flautista Dolores Tomé se empolga quando começa a retirar da prateleira as dezenas de álbuns com folhas de plástico. Ali, ela explica, está parte da história do choro em Brasília, mas não é esse o conteúdo mais precioso da coleção guardada em casa, em um condomínio próximo a Sobradinho. Em proteções plastificadas estão meia dúzia de partituras copiadas e assinadas por Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha. Entre uma e outra, recortes de jornais dos anos 1940 e 1950 contam histórias de compositor de Carinhoso. Pixinguinha passou por Brasília em 1971, a convite dos alunos de música da Universidade de Brasília (UnB) para ser o paraninfo da primeira turma formada pelo Departamento de Música. Mas não foi essa passagem rápida que fez as partituras originais irem parar nas mãos de Dolores. A história tem mais ramificações.

Filha do compositor João Tomé, Dolores chegou em Brasília com a família -pai, mãe e cinco irmãos, sendo um ainda na barriga - em 1960. Cresceu em meio à poeira e à cidade que tomava forma. Aprendeu flauta, estudou na Escola de Música de Brasília (EMB) e, na adolescência, começou a se interessar pelo choro. Nessa época conheceu Alcebíades Maia Barcelos, o Bide, sambista que tocava com Pixinguinha no Rio. O músico era funcionário do Ministério da Justiça e veio morar em Brasília quando o órgão foi transferido do Rio de Janeiro junto com a capital federal. Na bagagem, trazia também o fato de ser um dos melhores amigos de Pixinguinha. No Rio, vivia na casa dele e, de tão íntimo, se apaixonou pela cozinheira do compositor, com quem se casou.

Na época de Bide e Pixinguinha, choro e samba eram gêneros menores e partituras editadas, com direito a copistas e projeto gráfico, eram raridade quando se tratava desse tipo de música. Chorões e sambistas copiavam as partituras à mão: era a única maneira de trocarem as músicas entre si. Assim, volta e meia um manuscrito de um ia parar na mão de outro. Após a morte de Bide, em 1975, a esposa decidiu entregar a Dolores várias caixas com pertences do compositor. O casal não teve filhos e os dois meninos que criavam não se interessaram pelo material. Quando abriu as caixas, Dolores encontrou várias preciosidades.

Flauta e escrita em braile

Além das partituras assinadas de próprio punho por Pixinguinha - composições como Vaidosa, Oh Florinha e Adeus bohemios -, havia também cópias manuscritas de outros compositores, como o flautista Dante Santoro. Dolores herdou ainda a flauta de madeira pertencente a Pixinguinha, um presente do compositor para Bide. “Isso tudo veio parar na minha mão. Por que? Não sei”, conta a flautista. “O Bide meio que me adotou e os primeiros choros, foi ele quem me ensinou. Quando eu estudava música na UnB, o levava para dar depoimento sobre Pixinguinha. E sobrou pra mim esse tesouro.”

Dolores Tomé é filha do compositor João Tomé, chorão, multi-instrumentista de Uberaba que veio para Brasília em 1960 para fundar a Rádio Nacional no Cerrado. Se o acervo com partituras de Pixinguina é precioso, o deixado para a flautista pelo pai é igualmente valioso. Tomé era cego desde os cinco anos de idade. Perdeu a visão por conta de um problema congênito, mas se encantou pela música graças a uma sensibilidade excepcional. Partituras em braile eram raríssimas na época do compositor, durante a primeira metade do século 20. Mesmo assim, Tomé imprimia em braile suas próprias composições. Ganhava de conhecidos restos de papel-cartão, o único que possibilitava a impressão do alfabeto para cegos, e registrava as criações. Depois de acumular uma quantidade suficiente de obras, encadernava tudo. Quando encontrava um músico que enxergava e tinha certa disposição, ditava para que passasse tudo para uma pauta musical. Mas são os livros com as impressões em braile que Dolores guarda em uma das prateleiras da biblioteca de casa. São, no total, mais de 800 composições de João Tomé, originais, em braile, feitas pelo próprio autor.

É um material raro, já que, na época, esse tipo de partitura, especialmente com composições populares, mal chegavam ao mercado. Dolores acabou por se dedicar ao estudo da música para cegos e hoje faz doutorado na criação de uma plataforma digital destinada a facilitar o acesso à música de pessoas que não enxergam.

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