Brasília de outros carnavais

Sem folia em 2021, Correio relembra a história da festa na cidade

Correio Braziliense

Brasiliense adora um carnaval. Prova disso são as multidões que os bloquinhos têm arrastado nos últimos anos. Mas se engana quem pensa que a folia é coisa recente por aqui. Antes mesmo de a capital ser inaugurada tinha gente fazendo a festa acontecer: operários e autoridades que viviam nos acampamentos celebravam a data ao som dos tamborins no improviso.

As comemorações pré-inauguração ocorriam, principalmente, porque naquela época os candangos não tinham como viajar para passar o feriado fora. “Há relatos de comemorações de carnaval ainda durante a construção da nova capital, entre os anos de 1958 e 1960. Relatos de pioneiros fazem referência a festas que ocorriam nos salões de acampamentos e no Brasília Palace Hotel naquele momento. Além disso, trabalhadores também contam com entusiasmo como se organizavam para participar das festas em Luziânia e Planaltina”, explica Cristiane de Assis Portela, professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do projeto Outras Brasílias: ensino de história do DF a partir de fontes documentais.

No ano da inauguração da capital, os foliões também faziam festa no que hoje é o Núcleo Bandeirante. “Em 1960, um pouco antes da inauguração, alguns poucos foliões se reuniam na Travessa Dom Bosco, inaugurando a Festa do Momo na capital, e levando a leveza do carnaval para a Cidade Livre, diante de uma população que já se angustiava com a proximidade da data que prenunciava a extinção daquela cidade provisória”, acrescenta Cristiane.   

A tradição dos bailes

Após a inauguração da nova capital, em 1960, o espírito carnavalesco realmente tomou conta de Brasília. A então prefeitura começou a promover a festa de Momo no Baile da Cidade, que ocorria no Hotel Nacional, a partir de 1962.

A folia era tão grande que até atrações de Hollywood estiveram presentes nos primórdios do carnaval brasiliense. No primeiro ano, a atriz Rita Hayworth foi a atração de um baile de máscaras. No ano seguinte, esteve por aqui, no Baile da Cidade, o ator Kirk Douglas, conhecido por Spartacus, Glória Feita de Sangue e A Montanha dos Sete Abutres.

As festas em clubes, muito comuns até os anos 2000, ocorriam em vários locais, como no Brasília Palace Hotel,  na Travessa Dom Bosco e nas boates da Cidade Livre, atual Núcleo Bandeirante. Até o Teatro Nacional, ainda em construção, foi palco de celebrações momescas.

O samba presente

Em 1961, apenas um ano após  a inauguração de Brasília, um grupo de cariocas fundou a primeira escola de samba da nova capital, a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc). Com quase a mesma idade de Brasília, a escola é hoje Patrimônio Cultural Imaterial do DF e detém o título de octacampeã do carnaval.

O primeiro desfile veio no ano seguinte, com a W3 servindo de avenida. Além da Aruc, desfilaram outras quatro escolas: Alvorada em Ritmo, Brasil Moreno, Nós somos candangos. e Unidos de Sobradinho. Nos anos seguintes, os desfiles mudaram para a plataforma superior da Rodoviária. Em 1967 voltaram a ocorrer na W3. Em 2005, os desfiles das escolas de samba ganharam um local oficial, o Ceilambódromo, em Ceilândia.

Tragédia de carnaval

Porém, o carnaval de Brasília não ficou marcado na história só por momentos felizes. Em 1959, quando a capital ainda era construída, um episódio controverso deixou marcas até hoje. Em 8 de fevereiro de 1959, uma tragédia aconteceu em um acampamento de obras na Vila Planalto. O caso ficou conhecido como “Massacre da GEB” ou “Massacre da Pacheco Fernandes”.

Naquele dia, policiais foram chamados para atender a um desentendimento entre trabalhadores que reclamavam da comida ruim no refeitório. A versão oficial diz que a chegada da polícia resultou em um morto e alguns feridos. Os números, porém, são controversos. Ainda hoje, existe a versão de que, na verdade, teriam sido dezenas de mortos. “Podemos afirmar que o massacre ocorrido naquele momento é um fato histórico, já que apresenta indícios de sua ocorrência: pelo menos um telegrama, um inquérito oficial, duas reportagens de jornal da época, malas abandonadas no acampamento, algumas declarações de gestores que admitem a decisão por impor um silêncio oficial, e, como contranarrativas, relatos orais de muitos trabalhadores”, destaca a professora.

Cristiane pontua que aquele episódio foi um estopim das condições desumanas a que os candangos eram submetidos, como má alimentação, falta de água e exaustivas jornadas de trabalho. “Já que nem tudo é festa, o ‘Monumento aos candangos mortos’, em uma praça na Vila Planalto, nos lembra o que não devemos esquecer: que a memória importa e que as narrativas históricas estão ali para serem disputadas. As memórias de outros carnavais não nos dizem somente dos bons carnavais”, arremata.

Brasília como inspiração

Embora por aqui o carnaval ainda fosse pequeno no início dos anos 1960, Brasília marcava presença em uma folia bem maior, sendo cantada em marchinhas no Rio de Janeiro. A expectativa em torno da mudança da capital foi traduzida em versos nas folias da virada da década.

Em 1957, Wilson Batista, Antônio Nássara e Jorge de Castro cantaram sobre a aflição de deixar o Rio de Janeiro e partir rumo ao interior do país, no meio do Goiás. “Seu doutor, tá legal/ Chegou a hora de mudar a capital/ Ai meu Rio ... meu Rio de Estácio de Sá/ Adeus Pão-de-Açúcar e Corcovado/ Eu também, eu também vou pra lá/ Vou deixar velhos amigos/ Pois sempre fui um bom rapaz/ Adeus, minha Copacabana/ Meu amor também vai para Goiás.”

No ano seguinte, foi a vez de José Rosas e Jorge Veiga cantarem sobre as promessas de como seria a nova capital. “Ai Brasília/ Brasília é um mundo novo/ Você precisa ver JK falando ao povo/ Vou me embora e não levo saudade da Guanabara/ Vou me embora pra Brasília/ Pois Brasília é joia rara/ Aquilo é um paraíso, Leoni me falou/ Me leva, me leva, seu presidente que eu vou.”

E se o assunto é música, talvez 2021 seja um bom ano para relembrar o samba-enredo da Aruc em 1985: “Não adianta lamentar, temos mais é que sorrir. Levante a cabeça, olhe para cima, sacode a poeira e dê a volta por cima”.

Brasília pode não ser conhecida por ter o maior carnaval do Brasil, mas quem é daqui já sabe que nem precisa sair do quadradinho para curtir uma boa festa. Que toda essa alegria volte logo.

Para quem já se acostumou com as festas de carnaval na rua, misturado à multidão e ao som de um trio elétrico (pelo menos em tempos pré-covid-19), talvez possa ser uma surpresa, mas a celebração de Momo já teve uma vertente bem mais restrita — mas nem por isso menos divertida. Os bailes, geralmente realizados em hotéis e clubes, foram parte importante da história de uma das maiores celebrações populares do país, e ficaram na memória dos brasilienses que já se fantasiaram para pular nos salões da capital.

As farras carnavalescas no Distrito Federal datam dos primeiros anos da capital. Desde os pequenos grupos que celebravam a data em festas nas praças da cidades (que deram origem às associações recreativas de carnaval), o passar dos anos marcou importantes diferenças culturais sobre como festejar o carnaval na cidade. Embora tenham atingido o ápice na década de 1990 e início dos anos 2000, os bailes começaram a ganhar um cantinho no coração da capital a partir da década de 1970, como lembra Flávio Pimentel, atual Comodoro (título que designa o gestor responsável pelo espaço) do Iate Clube de Brasília.

Frequentador do clube desde os 16 anos, Pimentel, atualmente com 62, lembra como essas festas começaram a ganhar espaço na capital. “Na década de 1970 e 1980 já eram realizados sim os bailes. No começo eles aconteciam ali na garagem de barcos do clube, era um espaço enorme, cabia até 5 mil pessoas, eram festas muito animadas. Eu era muito garoto, comecei a frequentar em 1976, lembro que tinha muita marchinha, música feita para o carnaval... Me lembro que com 17 e 18 anos ia para ficar no meio das pessoas mais velhas, mas era sempre muito divertido.”

Apesar de ter grande destaque, os bailes do Iate não eram os únicos a embalar o carnaval da cidade. A população também tinha o costume de frequentar as festas da Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB), do Minas Tênis Clube, do Clube Primavera, do Clube Sodeso, do Clube Cite e, de forma mais exclusiva, do Brasília Palace Hotel e do Hotel Nacional.

O auge

Um dos que estavam no comando do Iate durante os anos áureos dos bailes de carnaval na capital era Ennius Muniz. Hoje com 73 anos, Muniz foi Comodoro do clube de 1991 a 1995 e de 1999 a 2001. Saudoso, ele faz um traço histórico do momento: “(Os bailes de carnaval) foram um grande sucesso a partir de 1978 e eu peguei o auge da folia nos clubes, na década de 1990. Já era um sucesso no galpão de barcos, e depois nós conseguimos trocar pelo ginásio de esporte, e aí foi o grande auge mesmo, porque conseguimos colocar uma praça de alimentação maior, um espaço maior, para caber mais gente, porque antes a gente tinha de limitar o número de pessoas, porque muita gente queria ir”.

Para quem nunca foi a um tradicional baile de carnaval da capital, Muniz compôs um lampejo da celebração. “A tradição que o Iate tinha era a de terminar (a festa) com um banho de piscina. (O baile) começava lá pelas 23h ou 0h e só terminava de manhã com um banho de piscina, lembro bem disso, foi assim até 1995. A banda começa a andar pelo clube, circular pelo espaço, a gente ia junto, por fim era todo mundo na piscina. Uma festa mesmo. As músicas eram mais marchinhas, aquelas com conotação política, e depois passou mais para as músicas baianas, lambadas, axé”, elenca.

Momento histórico do carnaval

Mais do que uma das formas de celebrar o carnaval, os bailes no Brasil — que remetem ainda à primeira metade do século 19 —, tiveram grande importância para a composição cultural das festas de Momo que são conhecidas até os dias de hoje. Pelo menos é o que defende o pesquisador-orientador do Observatório de Carnaval do Museu Nacional, jurado do Estandarte de Ouro (prêmio do carnaval do Rio de Janeiro) e comentarista de carnaval da TV Globo, Leonardo Bruno.

“O carnaval (no Brasil) já tem essa pungência antes das escolas de samba. As primeiras referências têm a ver com um entrudo, em que as pessoas jogavam coisas nas outras, como perfume, frutas, até uma coisa mais agressiva como tinta, lama ou excrementos. Essa brincadeira veio de Portugal e começa a diferenciar as práticas carnavalescas da elite e da população em geral, até a elite achar que essa não é uma forma de brincar. Quando fica mais violento, mais sujo, a elite acha que o entrudo não está tão civilizado e começa a querer se distanciar da festa, daí começam os bailes de máscaras”, explica.

Segundo Bruno, uma importante característica que os bailes ajudaram a montar para o carnaval em geral foi o uso de máscaras e, consequentemente, de fantasias: “Essa tradição começou nos bailes. Antes não tinha tanto, porque era um momento de brincadeira, jogavam farinhas uns nos outros, nas ruas mesmo, sem grandes ornamentos”.

Outro elemento solidificado pelos bailes de carnaval no país foi a música. De acordo com Bruno, “os bailes acabam trazendo de forma mais forte as músicas para o carnaval, o entrudo não tinha uma trilha sonora, a música entra no carnaval através dos bailes”. “Em 1950, a música é bem variada, desde tango, a valsa, polca, você não tinha uma música característica, e era bem eclética. Isso até o começo do século 20”, pontua.

Volta às ruas

Decretar o fim dos bailes de carnaval em clubes não é algo fácil, mas é visível que a vertente não tem mais tanta força como outrora. Umas das explicações para esta mudança pode estar na democratização da festa. “Existiu um renascimento muito forte dos carnaval de rua, voltaram a associar a festa à rua. Acho que atualmente esse é o destaque: existe uma associação muito forte da centralidade do carnaval na rua, e isso pode ter enfraquecido os bailes, por ser um lugar fechado, restrito. A festa ganhou essa figura da mistura, do encontro, da integração, porque lá na rua tudo pode acontecer. Acho que o carnaval reforçou um pouco esse ponto, e enfraqueceu um pouco a vertente dos bailes. Mas não é algo que acabou em definitivo, ainda tem o Baile da Vogue, o Baile do Copa, ainda existem, eles não desapareceram”, aponta Bruno.

Tendo uma visão estratégica sobre os passado e os novos tempos, Flávio Pimentel também aponta o acesso como ponto de virada para o carnaval na rua: “É a vontade de estar ao ar livre, é a música, ela se adapta melhor quando é uma coisa mais livre. No clube, os bailes ficavam uma coisa mais restrita, mesmo se você colocar o Chiclete com Banana em um clube atualmente, não ia ser a mesma coisa (do que estar na rua)”.

Defensor dos clubes, Ennius Muniz sugere pontos que contam a favor dos bailes. “Acho que tanto na rua quanto no clube, carnaval é carnaval. O que eu acho é que antes tinha um cuidado maior com a segurança. A gente tinha problemas de segurança dentro do clube, claro, mas acho que agora é uma preocupação muito grande. Na rua tenho a impressão de que pode ficar tudo fora de controle muito rápido”, argumenta.

Nas ruas ou nos clubes, o importante é se divertir. Isto, é claro, quando o carnaval voltar.

Em 2019, Brasília reuniu mais de um milhão de foliões nas ruas nos conhecidos blocos de carnaval. À época, havia grande especulação turística sobre o crescimento da capital brasileira como um importante polo carnavalesco, que foi freada, em 2020, quando as primeiras notícias sobre a pandemia causada pelo novo coronavírus começaram a ser divulgadas. Mas, se hoje, milhares de pessoas ocupam os espaços públicos para celebrar a grandiosa festa, é porque um grupo de pioneiros deu o pontapé inicial antes mesmo da inauguração oficial da cidade.

No fim dos anos 1950, em locais como o Brasília Palace Hotel e em acampamentos na antiga Cidade Livre — atual Núcleo Bandeirante —, já era possível ver comemorações durante a época festiva, com apenas alguns foliões solitários fantasiados pelas ruas. No entanto, oficialmente, o primeiro carnaval no quadradinho, inspirado na temática carnavalesca do Rio de Janeiro, ocorreu em 1961. Naquele ano, a farra tomou conta de clubes do Plano Piloto e da Cidade Livre. A festança era um desejo de Israel Pinheiro, o administrador de Brasília na época.

Em outubro do mesmo ano, foi fundada a primeira Escola de samba de Brasília, a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc). A iniciativa veio por um grupo de moradores do Bairro do Gavião, antigo apelido do que atualmente é o Cruzeiro. Eram, em grande parte, funcionários públicos transferidos do Rio de Janeiro para a nova capital, que, ao chegarem na região, sentiram falta de um espaço de lazer. Como a maioria era portelense, adotaram as cores azul e branco, e, em homenagem ao Bairro do Gavião, ficou este sendo o símbolo da associação. Logo a escola de samba foi projetada para que, já no carnaval seguinte, que ocorreria quatro meses depois, pudesse participar. Em 1962, a Aruc conquistou o 3º lugar no primeiro desfile da história, realizado na importante via W3 Sul. Em 2021, além de ser a única remanescente daquele evento, é reconhecida como a escola de samba brasiliense que mais acumula títulos.

Entre os anos 1970 e 1990, a apresentação das agremiações foi o ponto alto da folia brasiliense e serviu de base para o fomento do samba na cidade e para a disseminação do ritmo também em blocos de rua.

Palcos carnavalescos

No ano seguinte ao carnaval na W3 Sul, o palco da folia foi transferido para a plataforma superior da Rodoviária de Brasília, onde permaneceu até 1966. Até o começo da década de 80, as escolas de samba se apresentavam na região central do Plano Piloto. Em 1982, o desfile foi levado para a Avenida Comercial de Taguatinga, mas logo voltou ao Plano, saindo da área central apenas em 2005 com a construção do Ceilambódromo, em Ceilândia.

Mas as lembranças memoráveis da cidade denotam o tempo em que os foliões lotaram o Eixão Sul, entre os anos de 1980 e 1990, chegando a reunir 50 mil pessoas na noite de desfiles do Grupo Especial, formado por seis escolas.

Contudo, devido às reclamações de moradores e ao início das obras da linha do metrô na Asa Sul, as escolas tiveram que se apresentar em outros locais, como o Caldeirão da Folia — também conhecido como Passarela da Alegria, atrás da Torre de TV — Ceilândia e o estacionamento do Ginásio Nilson Nelson.

Ceilambódromo

A inauguração do Ceilambódromo foi um importante capítulo na história do carnaval de Brasília. Por sete anos seguidos o desfile ocorreu em Ceilândia, onde uma estrutura era montada exclusivamente para a folia. Hoje, porém, o local abriga uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

A noite do grupo especial chegava a reunir 40 mil pessoas, mas, apesar do público, os dirigentes das escolas reclamavam da falta de estrutura e da distância, tirando-os do centro da capital. De Ceilândia, a festa voltou para o estacionamento do ginásio Nilson Nelson, onde permaneceu por mais dois anos.

Legado da Aruc

Das escolas que surgiram com a capital — Unidos da Cruzeiro, Alvorada em Ritmo, Brasil Moreno e a Unidos de Sobradinho —, apenas a Aruc permanece ativa, ancorada no estímulo à cultura do quadradinho e no trabalho social que exerce no Cruzeiro e região. “As escolas de samba podem oferecer muito, não só no carnaval, mas ao longo do ano inteiro”, destaca o presidente da Aruc, Rafael Fernandes de Souza.

A agremiação completa 60 anos em 2 de outubro deste ano e possui na conta 31 títulos de campeã, dos 48 desfiles oficiais dos quais participou. O ‘auge’ foi o octacampeonato, uma sequência inédita de oito prêmios consecutivos, conquistados entre 1986 e 1993, quando, inclusive, superou a madrinha carioca Portela, heptacampeã nos anos 40. Na ocasião, a escola brasiliense levava para a avenida 1,2 mil componentes com fantasias luxuosas e carros alegóricos.

Em 2009, como forma de reconhecimento, o Governo do Distrito Federal, dirigido pelo governador José Roberto Arruda, concedeu à Escola o título de Patrimônio Cultural Imaterial do Distrito Federal. A Aruc firma-se como a maior vencedora de desfiles de carnaval no Brasil, uma hegemonia nunca vista.

Patrimônio em risco

Apesar do prestígio, as escolas de samba do Distrito Federal não desfilam na avenida desde 2014, quando contaram com repasse governamental para a folia. A festa do ano teve como vencedora a Acadêmicos da Asa Norte, escola fundada em 1969 e segunda maior detentora de títulos — sete, ao todo.

Após seis anos sem desfiles competitivos, as escolas lutam para pagar as dívidas e sobreviver ao ‘novo normal’, uma época de restrições e decretos que proíbem festas e aglomerações para evitar a disseminação da covid-19.

“Ano passado fizemos uma live em outubro, mês de nosso aniversário, para escolher o samba-enredo deste ano. Agora, em 2021, temos o samba gravado, mas não temos condições de realizar nenhuma atividade. Gostaríamos que o GDF tivesse destinado recursos pelo menos para apresentações on-line em nossa quadra. Mas o decreto publicado proibiu qualquer manifestação carnavalesca. Compreendemos que, com a pandemia, seria inviável fazer algo na rua, mas o formato virtual já é consolidado, e poderíamos ter realizado algo no período com o apoio do poder público. No mais, temos de nos virar para manter as contas em dia”, observa Fernandes.

O presidente se refere ao decreto publicado pelo governador Ibaneis Rocha (MDB), na quinta-feira (11/2), que proíbe festas, eventos e blocos de carnaval em Brasília. A medida, publicada no Diário Oficial (DODF), caso desobedecida, prevê multa de, no mínimo, R$ 20 mil.

Por isso, Fernandes conta que decisões para além do samba precisaram ser tomadas para garantir a continuidade da Aruc. “Ao longo de 2020, realizamos vaquinhas on-line e contamos com os próprios diretores e associados que se dispuseram a ajudar. Desde que houve maior flexibilização para atividades, temos alugado nosso salão para aulas e reuniões que permitem manter o distanciamento e garantir a segurança sanitária, embora arrecadando menos do que precisamos para nos manter”, diz e completa: “O apoio do Estado é fundamental, afinal é até previsto na Constituição. É dever fomentar a cultura”.

“A sociedade mudou e o carnaval de escolas de samba de Brasília precisa mudar também, se adaptar. Só não podemos permitir que ele morra. Já se vão sete anos sem desfiles na cidade. Foi uma de nossas primeiras manifestações culturais, desde 1962. Ele tem público, tem relevância e precisa ser olhado com mais carinho pelas autoridades e pela sociedade também”, finaliza.

Brasília tem se consolidado como um dos principais pólos carnavalescos do país. A afirmação, que pareceria absurda poucos anos atrás, é sustentada pelos dados: a capital federal reuniu no ano passado, segundo projeções, 1,2 milhão de foliões e já chegou ao recorde de 1,5 milhão em 2017. Apenas para se ter uma ideia, o público em Recife (PE) foi de 2 milhões em 2020, de acordo com o Ministério do Turismo.

Os grandes responsáveis por alterar o status do Distrito Federal em relação às festas momescas são os blocos de rua. Todos os anos, mais de uma centena deles invadem as avenidas, eixos e tesourinhas da capital, arrastando uma multidão eufórica.

Nem sempre foi assim. A primeira grande vertente da folia brasiliense foi o desfile de escolas de samba. As agremiações saíram às ruas pela primeira vez em 1962 — quatro meses após o nascimento da Aruc, maior campeã do carnaval do DF. Entre idas e vindas e algumas mudanças de locais da passarela, a tradição se manteve até 2014, quando o desfile foi suspenso, não sendo retomado até hoje.

Do fim dos anos 1990 até o início da década de 2000, foi a vez de os bailes de carnaval fazerem a cabeça dos brasilienses. A folia tomava conta de clubes como o Primavera, em Taguatinga, e Iate e Minas, no Plano Piloto.

Mas, na segunda década do século 20, a festa ganhou as ruas e se espalhou por todos os cantos com os blocos carnavalescos. “Acho que passa muito por esse movimento cada vez mais crescente do direito à cidade. O brasiliense vinha começando a ocupar espaços públicos com outros eventos e foi muito natural esse movimento chegar ao carnaval. Tomarmos as ruas com blocos muito diversos, que vão desde as tradicionais marchinhas e frevo, até a música eletrônica e o rock, por exemplo. Sem dúvidas, o carnaval do DF é um dos mais democráticos. Tem para todo mundo”, pontua Dayse Hansa, produtora de 4 blocos — Rebu, das Caminhoneiras, Vamos FuGil e o infantil CarnaPati — e integrante do coletivo Blocos Fora do Armário, que reúne 32 deles.

Origem política

Apesar da crescente nos últimos anos, os blocos de rua não são uma ideia exatamente nova no Distrito Federal. Um dos mais antigos, o Pacotão, foi fundado em 1978 por um grupo de jornalistas — diversos deles do Correio. O intuito dos participantes era fazer uma crítica política bem-humorada. O nome da agremiação, inclusive, é inspirado em um pacote de medidas anunciado pelo então presidente Ernesto Geisel.

“Era época de ditadura. A primeira marchinha não ficou tão conhecida, mas a segunda, já no governo de (João) Figueiredo, composta por Moacyr de Oliveira e Salomon Cytrynowicz (então repórter e fotojornalista da revista Veja) é lembrada até hoje: ‘Geisel, você nos atolou/ Figueiredo também vai nos atolar/ Aiatolá, aiatolá venha nos salvar/ Que esse governo já ficou gagá’”, lembra Irlam Rocha Lima, repórter do Correio e um dos fundadores do bloco.

De uma brincadeira entre jornalistas, o Pacotão logo se transformou em um movimento que arrebatou diversos brasilienses. “Houve adesão das pessoas e virou uma coisa gigante, que chegou a ser divulgada nacionalmente. Era um bloco com proposta de ser uma coisa mais de protesto, mais politizada. Isso em plena ditadura. Foi uma sensação”, acrescenta Irlam.

O tom de sátira política, aliás, ainda se mantém. No ano passado, o Pacotão saiu embalado pela marchinha Contra o fascismo na contramão, de Maria Sabina, Assis Aderaldo e José Sóter, que, entre outros versos, diz: “O Pacotão vai escrachar no carnaval/ Essa milícia e também o laranjal/ Ô, seu Queiroz/ Que vida boa/ Só engordando a rachadinha da patroa”.

Persistência e desafios

Presidente da Liga dos Blocos de Brasília — que reúne algumas das entidades mais célebres da capital, como Galinho, Raparigueiros e Baratona, esta fundada em 1975 — Paulo Henrique de Oliveira atribui o recente sucesso das manifestações de rua à persistência das agremiações tradicionais. “Já chegamos a sair com 100, 200 pessoas. Conseguimos trazer a tradicionalidade de outras capitais para Brasília, com muito trabalho e muito suor. Era um sonho e a gente sabia que uma hora ia expandir”, afirma.


E o sonho pode chegar ainda mais longe. Tanto para Paulo quanto para Dayse, a folia no DF tem potencial para crescer. O desafio, porém, é lidar com os problemas atrelados a esse crescimento. A segurança é o principal deles. Para o presidente da Liga, a solução passa por uma mudança nas leis: “A polícia tem feito seu trabalho e nós gastamos quase 50% (do orçamento do bloco) em segurança, em vez de estarmos atrás de atrações melhores, por exemplo. Agora, estamos fazendo uma carta pedindo para o governador editar um decreto para que a pessoa flagrada com arma em um bloco fique detida pelo menos até o fim do carnaval”.



Outra barreira a ser superada é a infraestrutura. “Os serviços precisam ser redimensionados. Não é possível fazer o carnaval com a métrica de 5 anos atrás. É muito estratégico os realizadores sentarem com o Estado para planejar essa grande festa. É uma operação praticamente de Copa do Mundo, de Olimpíada”, avalia Dayse. Paulo, por sua vez, conta que a Liga tem planejado descentralizar os eventos, levando-os a outras Regiões Administrativas, para fazer com que a folia “seja grande em todo o quadradinho, não apenas no Plano Piloto”.

Pós-pandemia

Depois de um ano atípico, sem carnaval por conta da pandemia de covid-19, a expectativa de todos os produtores é de uma grande festa em 2022 — ou quando a realização for considerada segura, seja isso antes ou depois de fevereiro do próximo ano. “Nosso slogan para o próximo ano é 2 em 1. Vamos comemorar 2021 e 2022 no mesmo carnaval”, enfatiza Paulo.

“As pessoas estão com saudade do carnaval e a pandemia ampliou isso. E isso é muito bom. A gente está na expectativa de que 2022 seja o carnaval do século. No início do século 20, também tivemos um problema sanitário (a pandemia de gripe espanhola) e o carnaval que veio depois foi o maior de todos os tempos. Mas para ser o carnaval do século tem que vir com muita responsabilidade na organização. Precisamos nos preparar. A gente vê como um grande gancho para uma demanda antiga, que é pensar a folia, no mínimo, 6 meses antes da realização”, arremata Dayse.

Aos foliões brasilienses, resta esperar. Aos de fora, que tal dar uma chance para esse novo carnaval de Brasília?

Brasília de outros carnavais
  1. Tradição que nasceu com a capital
  2. Bora para o baile?
  3. Escolas de samba: a estagnação cultural de Brasília
  4. Blocos de rua: o motor do crescimento do carnaval do DF
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