Patrimônio brasiliense
Onice Moraese e Ana Cristina Ramos são donas de escultura e croquis que estão na origem de Brasília
Os croquis do Itamaraty
Milton Ramos tinha ciúmes dos croquis recebidos de Oscar Niemeyer para realizar o projeto executivo do Palácio do Itamaraty. O conjunto de folhas em papel vegetal, muito finos e transparentes, trazem os desenhos do arquiteto realizados em 1963 e estão guardados em um rolo de papelão no qual Ramos pregou um papel explicando como recebeu os desenhos e com qual propósito. É um tesouro que Ana Cristina Ramos, filha do arquiteto, guarda com carinho na casa projetada por ele no Lago Sul. “A esses desenhos, quase ninguém teve acesso”, explica a também arquiteta.
Há muito Ana Cristina procura uma forma de preservar e tornar mais acessível o material. Hoje, como estão, os croquis não serão cedidos nem para exposição pois a cada manuseio podem ser deteriorados. Em casa, ela guarda dezenas de caixas com plantas feitas pelo pai para projetos na capital e faz questão de disponibilizar o acervo para estudantes de arquitetura. Os croquis do Itamaraty são muito frágeis, estão desgastados e podem rasgar com facilidade, por isso costumam ficar guardados, mas a arquiteta gostaria que eles também estivesse acessíveis em algum formato digital. “A preocupação existe porque é um material que vai se deteriorar. A forma de preservar é fotografar. Digitalizar é até perigoso”, lamenta.
Milton Ramos integrava a equipe de Niemeyer na construção dos monumentos de Brasília. São dele tanto o detalhamento do Itamaraty quanto o projeto de reforma do Teatro Nacional, além do anexo do mesmo e de vários prédios residenciais nas 400 e alguns nas 200. Os desenhos de Niemeyer para o Itamaraty são uma espécie de ponto de partida. “O croqui é um risco básico que vai dar origem a uma obra. É a primeira ideia que você joga no papel em forma de rascunho para dar origem ao projeto”, explica Ana Cristina. “Do croqui, vai evoluindo para um projeto básico que depois se torna um projeto executivo. Meu pai teve uma participação muito importante no desenrolar.”
Além dos croquis, o acervo conta com as plantas detalhadas do projeto e uma série de fotografias históricas e raras feitas pelo próprio Milton Ramos. São imagens em preto e branco realizadas ao longo da obra, de vários ângulos e com perspectivas inéditas impossíveis de serem repetidas com o edifício já concluído. Vê-se, por exemplo, as obras do Congresso Nacional através dos arcos frontais do então esqueleto do Itamaraty e um conjunto de luzes e sombras possíveis apenas porque o concreto ainda não havia sido preenchido com vidros e revestimentos. Ramos também chegou a produzir uma maquete dos arcos em tamanho original, em madeira. Ana Cristina guarda os recortes de jornais com as notícias da empreitada monumental.
A família de Milton Ramos já fez algumas tentativas para doar parte do material para arquivos públicos e universidades, mas ninguém se interessou. “Não os croquis, porque meu pai tinha muito ciúmes, mas o resto sim, pensamos em doar. Mas, por incrível que pareça, é muito difícil alguém ter interesse. É estranho porque isso é de interesse público”, conta. “O que eles alegam é que não tem espaço. É uma pena porque, tem muito material que poderia ser utilizado por outros arquitetos.”
O anjo de Ceschiatti
O escultor Alfredo Ceschiatti fez, pelo menos, dois múltiplos das cabeças de dois dos três anjos que hoje pairam sobre os fiéis na Catedral Metropolitana. Um era de propriedade de Athos Bulcão e a outra foi entregue ao arquiteto Marcos França em uma permuta. A peça carrega um valor histórico evidente, mas também tem uma importância plástica. Como não está pendurada a metros do chão, permite que o observador compreenda todos os detalhes da escultura, assim como as intenções do autor.
O olhar cândido do anjo tem traços simples e o penteado é muito delicado. Segundo as contas de França, a cabeça deve pesar cerca de 30 Kg. Oca por dentro, a peça fabricada em alumínio veio do mesmo molde usado por Ceschiatti para fazer os anjos da Catedral. Escultores têm o direito de produzir até três múltiplos de suas peças. É o máximo para que não percam o valor, mas Ceschiatti não chegou a fazer tantas.
Formado em artes visuais, Marcos França foi aluno do escultor no Instituto Central de Artes na Universidade de Brasília (ICA/UnB). Ficou amigo do mestre, de quem alugou um apartamento que decorou com luminárias recuperadas da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Ceschiatti gostava tanto das luminárias que pediu a França para não levá-las embora quando deixou o imóvel. O escultor prometeu dar algo em troca, mas morreu em 1989, antes de cumprir a promessa.
Pouco tempo depois, França ajudou o dono da oficina que fundia as peças de Ceschiatti a realizar um serviço de restauro de esculturas públicas em Brasília e, em retribuição pelo auxílio, recebeu em casa a cabeça do anjo. “Poucos reconhecem Ceschiatti na grandeza que ele teve. É pouco falado mas considero uma dos grandes escultores que o Brasil já teve. E os anjos são muito marcantes para a cidade”, diz França.
Logo depois, em meados dos anos 1990, ele decidiu se desfazer da peça para terminar a construção de uma casa e procurou a galerista Onice Moraes, que deixou a escultura em exposição por alguns meses. Logo, um colecionador se interessou e levou a cabeça do anjo, mas como teve dificuldade em pagar, devolveu a peça à galerista. Onice decidiu então comprar a escultura, que hoje repousa em uma base de vidro na sala de sua casa, no Lago Norte. “Para nós, de Brasília, essa peça faz parte da história da criação da cidade”, diz.