Receber cuidados médicos é desafio para transexuais
Enquanto, na rede pública, faltam serviços e profissionais em quantidade suficiente para atender a população trans, nas clínicas privadas, poucos médicos têm o conhecimento necessário para ajudar esse público
A saúde negada
Fred Sóter nasceu em um corpo feminino, mas sempre teve fascinação pelo universo masculino. A voz aguda e os traços delicados o incomodavam e, mesmo criança, sentia-se diferente das três irmãs. Ao chegar à adolescência, percebeu com clareza que não era habitante do próprio corpo.
Hoje, aos 22 anos, Fred é um homem transexual, casado e feliz com sua condição. Até chegar a esse ponto, contudo, houve um longa jornada. Aos 16, ele passou a se apresentar como trans socialmente, mas precisou de mais dois anos para falar sobre o assunto com a família. A partir daí, começou seu processo de transição, com a terapia hormonal e, mais tarde, com a cirurgia de mastectomia (retirada dos seios). “Foi libertador”, lembra.
Ele, no entanto, sabe que é privilegiado. Depois de não conseguir atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), obteve o tratamento na rede particular. Mas o serviço privado não eliminou as dificuldades. “O maior problema foi achar um especialista que receitasse hormônios. Há muita falta de informação. A maioria dos endocrinologistas que procurei alegava que não podia me acompanhar porque não sabia o que fazer”, conta.
Precária
A atenção à saúde de transexuais e travestis é recente e ainda precária no Brasil. Até 1997, por exemplo, a cirurgia de redesignação sexual (adequação dos genitais ao gênero com o qual a pessoa se identifica) era proibida no país. E a oferta do processo transexualizador — que inclui atendimento psicológico, hormonioterapia e cirurgias — pelo SUS só começou em 2008, apenas dois anos antes de Fred assumir sua identidade masculina.
Desde então, a expansão da rede acontece de forma muito lenta para a demanda existente. Embora não haja levantamentos precisos sobre quantos transexuais existem no Brasil, estudos mencionados em junho passado pela revista especializada The Lancet apontam que entre 0,4% e 1,3% das pessoas com mais de 15 anos não se identifica com seu sexo biológico, o que permite estimar em pelo menos 25 milhões o total de trans no mundo. Utilizando esses índices para a população brasileira, é possível afirmar que há entre 752 mil e 2,4 milhões de trans vivendo no país.
Para toda essa população, porém, só existem ambulatórios especializados em 11 cidades (veja mapa abaixo). Já as instituições habilitadas pelo Ministério da Saúde para realizar a cirurgia de adequação sexual são quatro, localizadas em Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo — até recentemente, o procedimento era realizado também no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), mas o serviço foi interrompido. Os dados mais recentes do governo federal mostram que, entre 2008 e 2014, apenas 243 procedimentos cirúrgicos (leia quadro abaixo) foram realizados.
Procurado pelo Correio, o Ministério da Saúde se pronunciou por meio de nota na qual descreve os procedimentos oferecidos pela rede pública e ressalta que o governo federal “financia os procedimentos necessários, mas a implantação/credenciamento de novos serviços, bem como a ampliação do número de cirurgias e acompanhamentos ambulatoriais, é de competência dos gestores locais”.
Clandestinos
Esse quadro, aliado ao alto custo do serviço na rede particular (um processo completo custa cerca de R$ 40 mil), resulta em um grande número de transgêneros que usam hormônios e fazem procedimentos médicos como implantes de silicone sem acompanhamento, colocando suas vidas em risco. “Cerca de 80% das pessoas que atendo se hormonizavam clandestinamente antes de chegar aqui. E eles fazem isso de qualquer maneira, porque o acesso à saúde é dificultado, mesmo para quem busca a rede particular”, afirma a psicóloga Isabel Amora, uma das profissionais que atendem o público transgênero no ambulatório do Hospital Universitário de Brasília (HUB), um dos dois centros de referência em Brasília.
Foi no HUB que Rafaella Coelho, 22 anos, recebeu, recentemente, a chance de realizar um tratamento adequado pela primeira vez, embora tenha começado sua transição aos 16. Depois de procurar o hospital, ela foi encaminhada para sua primeira consulta com um endocrinologista. “Dá para contar nos dedos as trans que eu conheço que têm acompanhamento médico”, conta a jovem, que admite ter se “entupido de hormônios” nos últimos anos. Agora, com maior acesso a um tratamento adequado, Rafaella espera cuidar melhor de seu bem-estar, quer correr menos riscos e sonha com a cirurgia de adequação.
Segundo a coordenadora do Grupo de Transexuais do HUB, a psicóloga Sandra Studart, o projeto serve de porta de entrada para que as pessoas trans tenham acesso a acompanhamento médico adequado e se informem sobre seus direitos. Além disso, há a oferta de atendimento psicológico, outro importante serviço da área de saúde para transexuais e travestis. “Aqui é um espaço de troca, de fala e de compartilhamento de experiências. Eles se aproximam uns dos outros”, descreve.
Em um desses grupos de apoio, Bernardo Mota, 19 anos, encontrou ajuda. Para o jovem, ter um corpo de mulher sempre foi uma espécie de tortura psicológica. “Descobri minha transexualidade com mais ou menos 15 anos. Antes disso, eu me sentia desconfortável com minha suposta identidade feminina, mas não sabia que podia fazer algo a respeito”, conta.
Bernardo toma hormônios há cerca de um ano e, graças a um financiamento coletivo na internet, conseguiu realizar a mastectomia, livrando-se das desconfortáveis e insalubres faixas que usava para pressionar e esconder os seios. Mesmo esclarecido, ele conta que, no início, também começou a se automedicar, devido à dificuldade de encontrar atendimento especializado. “Pela necessidade psicológica de mudar nosso físico, a gente acaba consumindo coisas sem segurança, o que aumenta os riscos”, diz.
Risco de suicídio
O rapaz transexual ressalta a importância do acompanhamento psicológico. “Eu preciso, não porque tenho uma doença, mas porque estou exposto a violências cotidianas, simbólicas e físicas”, afirma. Ele também relata um medo constante quando está em espaços públicos, que frequentemente se transforma em crises de pânico, algo muito comum entre os trans brasileiros.
A discriminação, a violência e a incompreensão tornam as pessoas transgêneras um dos grupos mais vulneráveis ao suicídio no mundo. No material da revista The Lancet, aponta-se que os índices de depressão entre transexuais chegam a 60% em alguns países, sendo que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), essa taxa gira em torno de 5% na população em geral. Outro estudo, também de junho deste ano, publicado on-line pela revista especializada LGBT Health, indicou que 42% dos respondentes da Pesquisa Nacional de Discrimininação de Transgêneros, nos Estados Unidos, relataram ao menos uma tentativa de se matar.
Números assim chamam a atenção para a importância de políticas públicas voltadas para a população trans. Análise da Universidade de Houston, publicada na revista Psychology of Sexual Orientation and Gender Diversity, constatou alguns fatores que reduzem consideravelmente o risco de suicídio nesse grupo, com destaque para o apoio de amigos, familiares e profissionais de saúde e a possibilidade de fazer a transição e viver de acordo com a identidade de gênero. “Isso ressalta o importante papel que os serviços de saúde desempenham no bem-estar das pessoas transgêneras”, afirmou, na ocasião da divulgação dos resultados, Nathan Grant Smith, coautor do trabalho.
Direitos humanos
A inclusão de políticas voltadas para a população transgênera no SUS foi celebrada pelos movimentos organizados, que sempre defenderam o atendimento a essa parcela da sociedade como uma questão de direitos humanos. Em 2008, mesmo ano em que o processo transexualizador foi incorporado aos procedimentos oferecidos pela rede pública, o governo federal publicou o Plano nacional de promoção da cidadania e direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, compilando as propostas aprovadas na primeira conferência nacional sobre o assunto.
Mais tarde, chegou-se à Política Nacional de Saúde Integral de LGBTs, lançada em 2013. Entre o que está escrito e o que se tornou realidade, porém, há um abismo, e não só por questões orçamentárias, analisa a psicóloga Isabel Amora, do Hospital Universitário de Brasília (HUB). A discriminação, aponta, prejudica a implementação das ações. “Há transfobia no nível de gestão em todos os órgãos”, avalia. “O trans não tem espaço para ser atendido, mesmo com uma política prevendo saúde para pessoas LGBT. Não é uma questão de fazer favor para ninguém. Todo mundo paga imposto, todos precisam de atendimento igualitário”, denuncia.
Ela ressalta que a cirurgia não é uma questão de opção, mas principalmente de necessidade para a pessoa viver com bem-estar. “Dessa perspectiva, é totalmente plausível que o tratamento seja oferecido pelo SUS, pois é um problema real de saúde pública minimizado por muito tempo”, argumenta.
Sem doença
Para a psicóloga e doutora em psicologia social Tatiana Lionço, especialista no tema, há diversas demandas que até hoje não foram incorporadas na política nacional. “Um deles é a despatologização das identidades trans”, destaca, referindo-se à luta dos trans por não serem mais considerados, em documentos médicos oficiais, pessoas doentes. “Esse tema estava em discussão no Brasil antes mesmo da campanha mundial pela despatologização no Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM) e Classificação Internacional das Doenças (CID)“, diz.
Editado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e considerado a Bíblia da psiquiatria, o DSM, em sua mais recente edição, deixou de considerar a insatisfação com o sexo biológico um transtorno mental. No entanto, explica Isabel Amora, o Brasil segue a CID-10, da Organização Mundial de Saúde, que considera a transexualidade um transtorno de identidade de gênero. O documento não é atualizado desde 1992. “Alguns países não falam mais que é uma doença, mas usam o termo disforia de gênero, ou seja, quando a pessoa não se reconhece com o sexo com o qual foi assinalada na hora em que nasceu.”
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Fotos: Daniel Ferreira/CB/D.A Press, arquivo pessoal, Hugo Gonçalves/Esp.CB/D.A Press, Ministério da Saúde/Divulgação