Discriminação rouba de transexuais o direito ao estudo

Agressões, ameaças e diversos tipos de violência simbólica fazem com que as pessoas trans sejam especialmente suscetíveis à evasão educacional

Correio Braziliense

Expulsos da escola

Wellington Hanna*

Em 1999, a goiana Rafaela Damasceno foi uma das primeiras transexuais a entrar em uma universidade pública no Brasil. A estudante, que tinha na época 23 anos, ingressou no curso de geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG) cheia de esperanças e com o objetivo de seguir na carreira acadêmica. O preconceito e a intolerância de colegas e até de professores, porém, a obrigaram a abandonar o sonho e a sair da faculdade sem diploma.

“Se não fosse o ódio, eu não tenho dúvidas, hoje, eu seria doutora”, desabafa. Rafaela conta que, logo nas primeiras semanas de aula, percebeu que seriam tempos complicados. “No começo, era só eu passar que as pessoas se cutucavam, apontavam. Como se eu fosse um bicho.” As manifestações de preconceito se tornaram mais frequentes, e a dor de Rafaela aumentava. “Me chamavam de aberração”, diz, com a voz embargada, mesmo depois de tantos anos.

A gota d’água, que a fez desistir do sonho de ser uma educadora, foi motivada pela atitude de uma professora. “Durante uma aula, ela falou que tinha gente na sala que deveria estar em um salão de beleza ou em uma cozinha, não em uma universidade”, conta a hoje ativista dos direitos humanos. O trauma foi tão grande que Rafaela nunca se sentiu capaz de retomar os estudos. “Lembro de tudo e sinto medo. Não sei se consigo voltar a uma sala de aula.”

Violência e evasão

Apesar do difícil relato, Rafaela sabe que muitos transexuais têm uma experiência educacional ainda mais difícil que a dela, o que os faz abandonar a escola no ensino básico. Constantes manifestações de preconceito, bullying, ameaças e agressões físicas fazem parte da rotina de alunos LGBT nas escolas brasileiras.

Estudo realizado pela Secretaria de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT), divulgado em dezembro de 2016, mostra que 73% dos estudantes que não se declaram heterossexuais no Brasil já foram agredidos verbalmente na escola. Já as agressões físicas ocorreram com um a cada quatro desses alunos. Dos 1.016 jovens ouvidos na pesquisa, 55% afirmaram ter ouvido, ao longo do ano anterior, comentários negativos especificamente a respeito de pessoas trans no ambiente escolar, e 45% disseram que já se sentiram inseguros devido à sua identidade/expressão de gênero.

Com um ambiente tão hostil, é quase um milagre que um adolescente transgênero termine o ensino médio. Pesquisa conduzida pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), estima que o país concentre 82% de evasão escolar de travestis e transexuais, uma situação que aumenta a vulnerabilidade dessa população e favorece os altos índices de violência que ela sofre.

Foi a percepção clara de que a escola estava longe de ser um lugar acolhedor que levou a brasiliense Rafaella Coelho, 22 anos, a largar os estudos aos 16. “A escola nunca me deu nenhum tipo de proteção”, conta a jovem transexual. “Chegou uma hora em que estava insuportável. Tinha menino que falava que ia cortar meu cabelo, que ia me bater, que me xingava de viadinho. Até que chegou ao ponto em que eu reprovei, meio que propositalmente, porque eu não me imaginava passando por aquilo tudo mais um ano”, lembra.

Nessa época, Rafaella começava a amadurecer a ideia de iniciar sua transição e não queria passar pelo processo dentro da escola. Pediu, então, aos pais para fazer um curso de cabeleireira, o que lhe daria uma opção de trabalho, e abandonou os estudos. “Foi uma carta de alforria, foi uma libertação aquela reprovação”, define hoje.

Apartheid

O que leva uma jovem a considerar a evasão escolar uma forma de libertação? Para Jaqueline de Jesus, professora de psicologia social do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), os transexuais vivem no Brasil um apartheid de gênero. “Alguém que não pode usar nem a própria identidade civil (por indicar um gênero e um nome com os quais a pessoa não se identifica) não pode ser visto como humano. E aqui, infelizmente, é assim”, afirma.

A especialista aponta que faltam políticas públicas eficientes para combater o que ela chama de “expulsão dos transexuais da educação formal no Brasil”. “Os transgêneros, especialmente as mulheres, são obrigadas a deixar os estudos. Elas não têm um espaço de respeito e acolhimento”, lamenta. Segundo Jaqueline, apesar de o Brasil ser signatário de vários acordos que propõem a maior inclusão de transexuais, o governo insiste em não executá-los, em sua avaliação, por preconceito.

A falta de políticas públicas é evidente. Questionado pelo Correio sobre iniciativas de inclusão de transexuais em universidades e escolas públicas, o Ministério da Educação se limitou a afirmar, em nota, que as “redes de educação básica são de gestão dos estados, e as universidades são de gestão das reitorias”.

Ao fim de seu estudo sobre a situação dos estudantes brasileiros, a ABLGBT lista uma série de ações que poderiam ser implementadas pelos três níveis de governo, como a produção e distribuição de materiais pedagógicos para auxiliar professores, a realização de campanhas de sensibilização e o mapeamento e a divulgação de experiências exitosas no combate à LGBTfobia nas escolas. Não há, porém, uma diretriz nacional clara nem ações efetivas em número suficiente para enfrentar o problema. “Enquanto isso, os transgêneros sofrem com a deficiência na educação, o que vai refletir por toda a vida, principalmente na busca por um emprego”, diz Jaqueline de Jesus.

Acolhimento

A produtora de vídeo Jessica Tauane, 24 anos, responde rapidamente por que não há transexuais entre os membros do famoso Canal das Bee, página do YouTube direcionada à comunidade LGBT: “Esse é um projeto de conclusão de curso da minha faculdade. E a gente sabe que, em geral, trans não chegam à universidade”, lamenta. Mesmo sem um representante no grupo, ela faz o que pode para ajudar transexuais e travestis em situação de risco. Por email, os administradores do canal recebem vários tipos de desabafo e de pedidos de ajuda. “Temos alguns casos muito tensos, como automutilação, violência dentro de casa, pessoas que querem cometer suicídio”, descreve.

As mensagens que chegam ao canal foram respondidas por uma psicóloga voluntária por três anos. Agora, com a ajuda de um crowdfunding, um profissional vai receber salário para continuar o acolhimento. “É muito importante que esse projeto continue. Eu vivo em São Paulo, que é um lugar mais aberto, mas a maior parte da população vive em cidades onde se sente errada e suja”, relata Jéssica.

Para ela, um dos principais motivos para o Brasil apresentar dados tão robustos de assassinatos de transexuais e travestis é a falta de acesso à educação. “Se uma pessoa vai a uma escola e não pode usar o banheiro, ela vai parar de ir. Conheço casos de pessoas que têm incontinência urinária depois da idade adulta por causa disso”, conta.

Leia: a dificuldade de acessar serviços de saúde >

Fotos: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press; arquivo pessoal, Hugo Gonçalves/Esp.CB/D.A Press; arquivo pessoal

* Estagiário sob supervisão de Humberto Rezende

Discriminação rouba de transexuais o direito ao estudo
  1. Expulsos da escola