Um cemitério tóxico

Levantamento exclusivo feito pelo Correio mostra que o Brasil produz cerca de 5,6 milhões de toneladas de sucata automotiva por ano. Sem reciclagem, esses carros tornam-se resíduos com propriedades tóxicas que serão jogados no meio ambiente

Aline Brito e Pedro Grigori Publicado em 7 de agosto de 2022

Costuma-se medir o impacto que um automóvel causa no meio ambiente pelas emissões de gases de efeito estufa que ele produz. Um carro popular corretamente regulado, por exemplo, libera, em média, 12 toneladas de gás carbônico (CO2) na atmosfera a cada 100 mil quilômetros rodados. No entanto, este não é o único impacto que a indústria automobilística causa no planeta.

Entenda o número

Com orientação de especialistas da engenharia automobilística, chegamos a um peso médio de 1.079kg para os automóveis vendidos naquele ano. Para calcular este valor, multiplicamos o número de unidades comercializadas dos 50 veículos mais vendidos em 2012 pelo peso de cada um deles. Os resultados foram somados e divididos pelo total de unidades comercializadas. Confira a tabela completa.

Há um outro valor que precisa ser adicionado a essa conta: 1.079 kg. (HIPERTEXTO: Entenda o número) Este é o peso médio dos automóveis vendidos no Brasil em 2012. Há 10 anos nas estradas, esses carros já superam a idade média da frota brasileira — de acordo com a edição de 2021 do Relatório da Frota Circulante, do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças) — e agora começam a percorrer um caminho fúnebre em direção ao fim da vida.

Mesmo após a “morte”, um carro não deixa de ser um problema para o planeta. De acordo com a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), 5.195.582 de automóveis foram vendidos no Brasil apenas em 2012. Levantamento inédito feito pelo Correio mostra que, a partir deste ano, um cronômetro é acionado, e esses veículos passam a se transformar em cerca de 5,6 milhões de toneladas de sucata automotiva. Caso nada seja feito, essa montanha de entulho pode parar nos aterros brasileiros — o que significaria 7% de todos os resíduos sólidos produzidos anualmente no Brasil.

Como a venda de carros no país continuou em alta na última década, essa quantidade milionária de sucata seguirá crescendo a cada ano. O único modo de impedir que toda essa frota se torne lixo é reciclando os automóveis.

Crédito: Valdo Virgo/Editoria de Arte/CB

Hoje, é possível reciclar até 99% do peso de um carro. Mas o Brasil ainda está longe de atingir esse patamar e, em média, se recicla apenas 70% do peso total, o que ainda deixaria um entulho de cerca de 1,6 milhão de toneladas para serem descartadas no meio ambiente a cada ano.

Para dimensionar o tamanho do problema que uma frota de carros inutilizados pode trazer para o meio ambiente, o Correio Braziliense publica a série Autópsia da sucata: para onde vão os carros após a morte?

Em quatro reportagens, mostraremos o impacto que cada peça de um automóvel causa no planeta, o cenário da reciclagem de carros no Brasil e os desafios e soluções que o setor de transporte apresenta para resolver um problema escondido em depósitos, ferros-velhos e desmanches.

Ferro velho no Centro de Ceilândia | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press
parte 1

As barreiras da reciclagem

Não há legislação a nível federal que disponha especificamente sobre o processo de reciclagem de veículos, mas a categoria pode ser enquadrada na Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010, que estabelece a logística reversa.

Quando se pensa no carro como um todo, no entanto, ainda não há uma cadeia de reciclagem preparada para dar destinação a uma das maiores frotas automotivas do planeta. “O principal gargalo está associado a unir uma série de atores que possam efetivar essa cadeia de reciclagem, que é um setor interessante, um setor que pode trazer um retorno econômico, social e ambiental”, explica o doutor em química Harrison Lourenço Corrêa, professor de engenharia mecânica da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Como essa cadeia de reciclagem não existe, cerca de 98,5% da frota nacional termina em desmanches e depósitos, segundo estimativa do Sindicato do Comércio Atacadista de Sucata Ferrosa e Não Ferrosa (Sindifesa). A partir deste ponto, não é possível ter dados oficiais sobre o destino dos veículos em final de vida.

Doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e consultor da Invento Consultoria, Alexandre Aguiar produz artigos acadêmicos sobre reciclagem de veículos há mais de uma década. Em um dos trabalhos, ele pontua que o ciclo de vida dos automóveis está cada vez menor, o que aumenta ainda mais a quantidade de veículos a serem reciclados. “A demanda por produtos novos e mais modernos tem implicado em um grande custo para nossos recursos naturais, como excessiva utilização de matérias-primas, água e energia, durante a produção, uso e final de ciclo de vida destes bens”, pontua.

“Isso significa que, num futuro próximo, teremos quantidades cada vez maiores de veículos em fim de vida útil para serem destinados. Separar os materiais, classificá-los e buscar diferentes soluções de destino final dessa sucata pode se tornar, portanto, um desafio considerável”, explica.

Não existe um consenso sobre qual a vida útil de um automóvel. De acordo com pesquisadores e trabalhos acadêmicos analisados pela reportagem, a média fica entre 10 e 20 anos, a depender de fatores como o modelo do automóvel, as condições climáticas a que ele é exposto e a conservação dada pelo motorista.

Alexandre Aguiar diz que o tempo de uso de um veículo está ligado a diversos fatores, como as situações econômicas e culturais de um país. “Mesmo que se observe essa troca mais rápida de veículos, notamos também que o avanço da tecnologia fez com que partes de um carro durem mais tempo. Um motor, antigamente, rodava 100 mil km. Hoje, ele supera os 200 mil”, diz.

Ferro-velho em Taguatinga | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press

Capítulo 1. Um corpo com 15 mil peças

Um carro é como um quebra-cabeças de 15 mil peças. Em um único automóvel de passeio há, ao menos, duas dezenas de diferentes materiais que podem variar do plástico à platina. E essa grande variedade de elementos é um dos principais obstáculos para a reciclagem. “Temos peças pequenas em um veículo que são compostas da união de materiais com elementos diferentes”, explica o doutor em química Harrison Lourenço Corrêa.

Em média, 65% do peso de um automóvel é constituído de aço e outros materiais ferrosos — que são os melhores elementos para se reciclar. Com baixo custo e alta produção, são inúmeras as possibilidades do que fazer com esses materiais, incluindo transformá-los em novas peças, que depois podem retornar para a indústria automotiva.

No entanto, nos últimos 50 anos, a quantidade de ferro nos veículos começou a cair. A partir da crise do petróleo, na década de 1970, as montadoras passaram a buscar modos de deixar os carros cada vez mais leves, o que os tornaria mais econômicos, já que quanto mais pesado é um veículo, maior é a quantidade de combustível necessário para movê-lo.

O plástico foi o principal material usado para substituir o metal, por ser mais leve, barato e versátil. Mas logo se percebeu um prejuízo nisso. Ele é também um dos elementos de reciclagem mais problemáticos. Além de perder “nobreza” no processo e passar a ser destinado apenas a usos menos exigentes, diversos tipos diferentes de plásticos são empregados em uma mesma peça, o que torna difícil a reciclagem, já que eles precisam ser separados.

O professor Ademyr de Oliveira, do curso de engenharia mecânica da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que a problemática do plástico se dá também pela baixa valorização do material. “Quando pegamos a família dos plásticos, só é possível reciclar quatro tipos: o PET, o PVC, o polietileno e o polipropileno. Os restantes não são capazes de serem reciclados, mas é possível dar uma outra finalidade, ambientalmente mais correta, como a produção de energia, a queima”, diz.

Quando vão parar em aterros sanitários, os plásticos demoram cerca de 450 anos para se decompor. E, em muitos casos, nem vão para lá. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), os plásticos representam entre 60% e 80% de todo o lixo presente no oceano.

Capítulo 2. Exumando um automóvel

Nem só de plástico e de ferro é feito um carro — ao contrário: quanto mais moderno um veículo é, maior a variedade de materiais usados para compô-lo. E, do ponto de vista ambiental, isso é uma faca de dois gumes. Se, por um lado, os veículos novos são menos poluentes, por outro, os mais velhos eram mais fáceis de serem reciclados.

Carcaça de Kombi sendo retirada das ruas de Samambaia-DF | Felipe Oliveira/Ascom - SSP/DF

O primeiro carro fabricado pela Volkswagen no Brasil, a Kombi, de 1957 , era quase todo formado por aço — carroceria, pára-choques, rodas e tanque de combustível. Tudo produzido com algum material ferroso, o que facilitava a reciclagem.

Já um dos carros mais modernos do momento, o Tesla Model X P100D Long Range, um veículo elétrico, é composto por uma série de materiais, como vidros climatizados anti-UV, ligas de alta resistência, rodas com acabamento em fibra de carbono e uma enorme gama de materiais eletrônicos que tornam o veículo mais tecnológico.

A variedade de elementos em um automóvel mostra que o problema do descarte incorreto deve ser avaliado não apenas pela quantidade de resíduos que vão parar no meio ambiente, mas pelo quão perigosos eles podem ser. Dentro de um carro comum há metais pesados, ácidos corrosivos e líquidos contaminantes que podem transformar as sucatas em armas químicas.

Alexandre Aguiar, doutor em Saúde Pública pela USP, classifica os sistemas eletrônicos como um dos que causam maior dano ao planeta caso descartados incorretamente. “A eletrônica embarcada tem na composição materiais muito complicados. No Brasil não temos tanta restrição para uso de materiais complicados, como o chumbo, que são bastante perigosos”, explica.

Crédito: Thiago Fagundes/Editoria de Arte/CB

O chumbo também está presente na bateria dos carros, que ainda tem na composição o eletrólito — uma mistura de ácido sulfúrico com água. São produtos extremamente tóxicos, que ao serem manipulados sem proteção podem causar de intoxicações crônicas à corrosão da pele humana.

Em alguns componentes eletrônicos, como interruptores de iluminação, desembaraçantes, telas de entretenimento e navegação, faróis de alta densidade e sensores de air bag, é encontrado até mesmo mercúrio. Ao entrar em contato com o corpo humano, o mercúrio pode ficar acumulado nos rins, fígado e sistemas digestivo e nervoso e causar uma série de doenças que vão desde depressão e ansiedade até perda de visão e doenças cardíacas.

Um carro abandonado — seja em uma garagem, um depósito ou um ferro-velho – pode se tornar uma bomba relógio. Se, a olho nu, só é possível assistir a tintura do veículo desbotando e dando lugar à ferrugem, por dentro, os componentes do carro começam a se desfazer ou a vazar. Metais pesados do motor, resíduos de gasolina, óleos e fluídos hidráulicos, de freios e do ar-condicionado, tudo isso pode ir parar no solo e, posteriormente, nos lençóis freáticos.

O professor Harrison Lourenço Corrêa alerta para o risco dos materiais que ficam em contato direto com os fluidos do veículo — combustíveis, óleos de arrefecimento e lubrificantes. Entre eles, estão o tanque de gasolina e as mangueiras. “São materiais plásticos que estão contaminados. É preciso fazer um tratamento de descontaminação e uma disposição adequada para esses materiais. Jamais deve ser feito um descarte inapropriado”, explica.

O filtro de óleo de um automóvel, por exemplo, pode reter até 250ml do produto. Se esse objeto não for descontaminado, o líquido pode parar no meio ambiente. Um litro de óleo é capaz de poluir 20 mil litros de água.

Outro fluido perigoso é o gás utilizado nos sistemas de ar condicionado dos veículos. “Em geral, para essa finalidade são utilizados gases halocarbonetos (CFC´s). Esses gases, além de contribuir para o aumento do efeito estufa, têm uma ação destruidora da camada de ozônio, que limita a entrada de radiação ultravioleta na atmosfera terrestre”, explica Daniel Castro, professor de engenharia da energia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) e autor do livro Reciclagem & Sustentabilidade na Indústria Automobilística.

Na obra, lançada em 2012, ele detalha possibilidades de reciclagem para o fluido. “Eles podem ser retirados dos sistemas de ar condicionado dos veículos e armazenados em tanques para sua posterior reutilização em sistemas de ar condicionado de veículos novos ou para recarregar sistemas de ar condicionado de veículos em funcionamento”, detalha.

Parte 2

As sucatas ganham uma nova vida

Ao sair da concessionária com um carro cheirando a novo e a chave de um sonho em mãos, o último desejo de um motorista é se desfazer daquele bem. As alternativas parecem uma realidade distante, até que os problemas começam a aparecer: uma peça que precisa ser trocada, o contato do guincho que torna-se indispensável na agenda e as constantes idas ao mecânico que acabam virando um peso no bolso.

Quando não é mais possível ignorar os sinais de que aquele automóvel está no fim da vida útil, chega o momento de vendê-lo e comprar outro. De mão em mão, uma hora esse veículo precisará ser aposentado e, tratando-se de um carro brasileiro, as chances são de 98 em 100 de que ele termine em um desmanche ou ferro-velho, de acordo com o Sindicato do Comércio Atacadista de Sucata Ferrosa e Não Ferrosa (Sindifesa).

O primeiro passo para se desfazer desse que se converteu em um problema sobre quatro rodas é indo ao Departamento de Trânsito do estado. Lá será iniciado o processo para dar baixa no veículo — uma espécie de certidão de óbito do carro.

Quando o processo é finalizado e o chassi e a placa retirados, o carro passa oficialmente para o status de sucata.

Crédito: Valdo Virgo/Editoria de Arte/CB

Capítulo 1. O trabalho essencial dos ferros-velhos

Com cerca de uma tonelada de carcaça em mãos, a opção mais vantajosa para o proprietário é procurar um lugar de desmanche ou ferro-velho, que vai comprar aquele “corpo de metal” por um preço de sucata e retirar dele tudo que ainda pode ser usado em outros carros.

Um dos profissionais que faz esse trabalho é Henrique Dias, 40 anos, dono da Recicragem do Magaiver, no bairro Pedregal, no Novo Gama (GO), a cerca de 44km de Brasília.

Dono de um ferro-velho no Novo Gama, Henrique Dias tira o sustento da sucata automotiva | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press

Em um galpão escuro, o local recebe, em média, 500 carros por ano. Por lá, pilhas de peças e fluidos de automóvel pelo chão mostram o que parece ser um cenário recorrente para quem tira o sustento da sucata.

O empresário explica que a maioria dos veículos que chega à loja tem entre 20 e 30 anos de circulação. “Às vezes, acaba chegando um veículo um pouco mais novo, mas proveniente de uma batida que deu uma grande perda, então ele não tem mais condição de rodar e acaba parando aqui. A gente reaproveita as peças dele e, o resto, mandamos para uma fundição, que usará o aço”, detalha Henrique.

A principal atividade comercial do ferro-velho é a venda de peças usadas de veículos, que também é considerado um modo de reciclagem e será explicado nos próximos capítulos da série.

O trabalho realizado nos ferros-velhos está envolto em uma série de riscos. Mesmo em final de vida, os automóveis ainda abrigam componentes e fluidos perigosos que precisam ser retirados antes de o processo de desmontagem ter início. Entre eles, estão os combustíveis remanescentes nos tanques; o óleo lubrificante do cárter; o óleo hidráulico do freio e do sistema de direção; e os gases do sistema de ar-condicionado.

O professor Ademyr de Oliveira, do curso de engenharia mecânica da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que existe uma normatização que regulamenta a atividade de ferros-velhos e desmanches para garantir que o trabalho seja feito com segurança. “Existe lei, mas não existe fiscalização. Quando você vai a grandes ferros-velhos, na maioria das vezes você tem contaminação do terreno, do lençol freático.”

De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), estabelecimentos de desmonte de veículos precisam ter registro junto aos órgãos de trânsito estaduais, os Detrans, que também ficam encarregados de fiscalizar as atividades.

A Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) informou ao Correio que não compila dados a nível nacional sobre registros de ferros-velhos, e que a atividade é feita pelos departamentos estaduais. No entanto, ao ser questionado pela reportagem sobre o número de empresas registradas na capital federal, o Detran-DF disse que não era responsável pela atividade. Levamos o questionamento à assessoria de imprensa do Governo do Distrito Federal, que não respondeu até a última atualização desta reportagem.

Capítulo 2. O abandono dos carros em fim de vida

“Se não existisse o ferro-velho ou se os carros fossem simplesmente largados na rua, o mundo seria como um The Walking Dead. Seria um monte de carro abandonado e de carcaça poluindo o mundo”, diz Henrique, referindo-se ao seriado americano em que o planeta enfrenta um apocalipse zumbi.

E ele não está errado. Nos últimos 20 anos, a frota de carros no Brasil mais que dobrou. Em 2002, existiam cerca de 23 milhões de automóveis em circulação no país. Hoje, de acordo com dados da Senatran, são 59.752.601 carros. Os mais de 20 milhões de veículos que circulavam pelo país no começo do milênio estão agora chegando à reta final da vida, ou já chegaram. Isso significa que toneladas de sucata precisam de um destino.

Tendo em vista que a maioria dos carros que chegam aos ferros-velhos têm em média 20 anos de existência, daqui a mais duas décadas, os quase 60 milhões de veículos que hoje rodam pelas estradas brasileiras também precisarão de um lugar para “descansar em paz”. E estamos falando de uma frota tão grande que, se comparada ao público de uma partida de futebol, seria capaz de lotar 757 estádios do Maracanã.

“A reciclagem e os ferros-velhos são um serviço de utilidade pública. A gente retira carros que não têm mais condições de rodar na rua, que oferecem risco à vida das pessoas, à segurança viária. Aqui a gente faz um reaproveitamento de peças, a gente tira motor de partida, alternador, parte mecânica do carro, tudo aquilo que pode ser vendido, porque também existem aquelas que não podem ser comercializadas por oferecerem riscos, como vidros e suspensão”, esclarece Henrique.

Mesmo com a existência de ferros-velhos, até hoje carros que deixam de ter serventia acabam em estacionamentos públicos, esquinas e matagais. E é nessa posição em que há mais chances de um automóvel tornar-se uma ameaça ao meio ambiente e à saúde pública, já que a sucata fica exposta a condições climáticas que aceleram o processo de contaminação ambiental.

Trata-se de um problema que ainda ocorre em todos os cantos do Brasil, até mesmo na capital federal. Em fevereiro de 2020, diversos órgãos de segurança, saúde e mobilidade do Governo do Distrito Federal iniciaram a Operação DF Livre de Carcaças. Até o momento, eles retiraram cerca de mil sucatas de veículos das ruas do DF e levaram ao depósito do 3º Distrito Rodoviário do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-DF).

“Na verdade, estimamos que cerca de 1.500 carcaças foram retiradas das ruas do DF, porque, além das recolhidas, temos casos em que, ao serem avisados da operação, os proprietários mesmo retiram o veículo da área pública”, explica o coordenador do Conselho Comunitário da Secretaria de Segurança do DF, Marcelo Batista.
Carro abandonado sendo retirado de uma quadra do Sudoeste-DF | Ascom/SSP-DF Sucata deixada em um matagal em Arniqueiras-DF | Ascom/SSP-DF

A operação não tem um viés apenas ambiental. Segundo Marcelo Batista, a ação nasceu dentro da área da saúde pública, após a publicação de um decreto emergencial sobre aumento de casos de dengue no DF.

Isso porque, além da contaminação ambiental, um carro abandonado torna-se um criadouro para mosquitos, como o Aedes aegypti. E, algumas vezes, segundo as forças de segurança, também são usados como esconderijos para criminosos.

Batista conta que as operações são feitas semanalmente e já ocorreram em 23 das 33 regiões administrativas do DF. “No Paranoá, por exemplo, abrimos 10 vagas em um estacionamento que estava sendo preenchido por carcaças. Elas ficam ali ocupando a área pública por cinco anos, prejudicando a mobilidade, a segurança e a limpeza da cidade.”

No depósito do DER, os agentes de Vigilância Ambiental aplicam soluções na sucata e fazem o controle vetorial – esse processo tem como objetivo atrasar o processo de degradação e de contaminação.

O calcanhar de aquiles do projeto é que não há uma destinação para a sucata que chega ao depósito. Ao perceber esse gargalo, Marcelo Batista conta que o GDF fez uma minuta de projeto de lei para apresentar à Câmara Legislativa. A proposta pretende construir uma cadeia de reciclagem para os automóveis.

Capítulo 3. A segunda etapa de reciclagem

Depois de passar pelas mãos de profissionais como Henrique, da Recicragem do Magaiver, o que sobra desses carros e não tem mais como ser aproveitado em sua forma original, segue — ou deveria seguir — para a reciclagem. É a partir desta etapa que pessoas como Rafael Sousa, 32 anos, aparecem para prestar um serviço que vai muito além de “enterrar” os veículos.

Com óleo e graxa espalhados pela roupa e pela pele, os sapatos empoeirados de uma terra avermelhada e fina, a aparência dele poderia facilmente ser confundida com a de um mecânico, o profissional que se dedica a encontrar um conserto para veículos. No entanto, ele entra em cena quando os carros já não oferecem mais serventia aos proprietários.

Rafael Souza trabalha em uma oficina especializada em reciclagem de veículos inservíveis | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press

Rafael é um dos donos da Reciclagem R&F, localizada no Setor H Norte, em Taguatinga, o maior e mais conhecido ponto de venda de autopeças usadas do Distrito Federal. Entre as incontáveis lojas que vendem as mais variadas partes de carros, sejam elas novas ou não, está o terreno com óleo pelo chão, pilhas de sucata e contêineres com restos do que, um dia, foi um automóvel.

Neste terreno chegam, em média, 30 carros por mês. Mas, diferentemente das outras lojas, a Reciclagem R&F não é voltada para a compra e venda de peças, a atividade dela é dar um destino mais sustentável à sucata.

Ao serem colocados sobre aquele chão de terra crua, esses automóveis passam por uma seleção onde são separados por partes e, então, seguem para a reciclagem. Noventa e nove por cento do veículo é reciclado, segundo Rafael. Entre pneus, rodas, vidros, partes de couro, metal, plástico, quase tudo tem um proveito.

O que não foi vendido antes como peça usada, agora é prensado e reutilizado para fazer materiais de construção ou para fabricar outros automóveis. “Essa é a nossa forma de ganhar dinheiro, de viver e também de ajudar a natureza. Somos o estágio final do carro, a reciclagem. Tudo que não serve mais, as peças que estão estragadas, a carcaça, tudo é separado de acordo com o tipo de material e prensado”, esclarece.

O ganha pão de Rafael é selecionar e encaminhar essas toneladas de sucata a um local adequado. O sustento dele e da família vem da venda dos materiais por quilo. O mais valioso deles é o cobre, que custa cerca de R$ 30 o quilo.

A venda é feita para empresas que reutilizarão esse material para a fabricação de outros elementos. “A gente faz a separação do ferro fundido, da sucata pesada, lata, material fino, plástico, enfim, tudo é reciclado. O que vai para o lixo é muito pouca coisa. Depois que a gente separa, uma empresa recolhe esse material e prensa, para vender para fora ou derreter e fazer vergalhão, que é usado na construção de casas e prédios, ou para fazer peças de outros carros também. Até o óleo do carro é reciclado. Ele passa novamente por uma refinaria e volta como novo”, explica Rafael.

Capítulo 4. O impacto ambiental

O processo realizado por Rafael vai muito além de recuperar peças. Um dos pontos de destaque da reciclagem é diminuir a necessidade da produção de novos materiais. Os metais, por exemplo, são adquiridos a partir da extração de minérios, uma atividade com grande emissão de gases de efeito estufa.

“A indústria do aço é cara e poluente. Você tem que minerar, e a quantidade de energia que se usa para transformar o minério na composição do aço é enorme. Mas o trabalho do ferro-velho e da reciclagem traz um benefício ao meio ambiente, porque, ao invés de minerar, você reprocessa o aço daquela sucata, um fim muito mais fácil, barato e inteligente”, explica Ademyr de Oliveira, da UFG.

Dados do Instituto de Indústrias de Reciclagem de Sucatas Metálicas dos Estados Unidos indicam que a reciclagem de materiais metálicos pode reduzir de 300 a 500 milhões de toneladas de dióxido de carbono da atmosfera emitidos pela indústria norte-americana.

Uma plataforma criada pelo projeto Save Motors, iniciativa que busca propiciar o desenvolvimento de centros de reciclagem de veículos, quantifica os benefícios ambientais do reaproveitamento de materiais usados na composição do carro.

De acordo com o sistema, 46 carros reciclados equivalem a 40,5 toneladas de recursos naturais poupados, 511.007,92 megajoules de energia economizados — que equivale ao consumo médio mensal de 932 residências brasileiras —, 41.973,97 quilogramas de emissões gasosas eliminadas, além de reduzir a emissão de CO2 correspondente à captura de carbono de 5.145 árvores da mata atlântica.

“A vantagem da reciclagem não é somente dos metais ou materiais e, sim, do impacto ambiental. Nós estamos falando de economia de energia e, consequentemente, de verba, de dinheiro. Com a reciclagem, é possível reaproveitar aço, por exemplo. Com isso, não é necessário extrair mais minério e, assim, poupa-se muito dinheiro, muita energia e deixa-se de emitir carbono, por conta do processo industrial que é eliminado”, reforça Daniel Castro, idealizador do Save Motors e professor de Engenharia da Energia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG).

Capítulo 5. Meio ambiente em último plano

“Nosso único incentivo é a sobrevivência”, diz Rafael Souza | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press

Quem dedica a vida a reciclar veículos esbarra em incontáveis obstáculos. O empreendedor Rafael e seus irmãos, que tocam a reciclagem R&F juntos, sobrevivem da sucata há mais de dois anos. Nesse tempo, passaram por dificuldades causadas pela falta de valorização que o serviço tem no país.

“Essa é nossa única forma de sobreviver. Querendo ou não, nós estamos ajudando o governo, a população, o planeta, já que tiramos das ruas um material pesado que poderia ir para o lixo ou causar danos, e o reciclamos, de forma que ele volta para nós como algo que vai ter, de novo, uma utilidade”, reforça Rafael. “Nosso único incentivo é a sobrevivência.”

Não existe no Brasil uma lei que regulamente a reciclagem de veículos, bem como não se disponibiliza algum tipo de incentivo para quem decide trabalhar no ramo. De acordo com Daniel Castro, essa falta de atenção é um reflexo da cultura do brasileiro de não se importar com a destinação do lixo. “Nós precisamos conscientizar a sociedade quanto a isso, a população em geral, sobre como descartar um carro, mas também as montadoras, para que elas tenham maior responsabilidade com os veículos que fabricam quando chegam ao final da vida”, ressalta o professor

Parte 3

Carros viram doadores de peças

Venda de peças usadas é o principal negócio de ferros-velhos | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press

O automóvel em fim de vida serve como doador de peças para veículos que ainda têm condições de continuar nas estradas. Durante a desmontagem, desde o motor até os bancos têm a oportunidade de ganhar lugar em um novo corpo de metal. E se por um lado o Brasil ainda patina na reciclagem da sucata, por outro, o comércio de peças usadas tem um lugar consolidado dentro da indústria automotiva.

A sala de cirurgia onde esses transplantes tem início é, na grande maioria das vezes, o pátio dos ferros-velhos espalhados pelo país. O reaproveitamento das peças também é considerado um modo de reciclagem, e é de extrema importância do ponto de vista econômico, já que reduz gastos com a produção de equipamentos novos; e também do ambiental, por diminuir a quantidade de resíduos automotivos que vão parar em aterros sanitários.

No entanto, essa prática tão comum no Brasil é envolta por regras rígidas para tentar coibir uma ação criminosa que ocorre em todos os cantos do país: o roubo de carros.

Capítulo 1. Um mercado cheio de vantagens

As partes mais visadas pelas lojas de peças seminovas são os materiais mecânicos e de performance, como motores e equipamentos de injeção e alimentação. “São essas partes mais específicas que costumam ser mais reaproveitadas. Às vezes, você pode ter um carro inabilitado para estar no trânsito, mas que tem dentro dele um cabeçote ou um motor de partida que estão nas suas integridades e podem ser colocados de volta ao mercado”, explica o doutor em química Harrison Lourenço Corrêa, professor de engenharia mecânica da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

O reúso de peças é regulamentado pela Lei nº 12.977, de 2014, e pela resolução nº 611 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que estipulam quais peças podem ou não serem reutilizadas. Os itens de segurança, como airbags e cintos, por exemplo, não podem ser reaproveitados por não ser possível garantir a funcionalidade deles.

Crédito: Thiago Fagundes/Editoria de Arte/CB

O professor Ademyr de Oliveira, do curso de engenharia mecânica da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que, além das questões legais, as peças precisam passar por uma avaliação profissional que vai dizer se elas têm ou não condições de voltar ao mercado. “Nem todas podem ser usadas de novo. Algumas já passaram da vida útil, outras podem trazer trincas e rachaduras que diminuem a segurança”, diz.

“É preciso destacar que as peças são projetadas com uma vida útil estipulada e, passado este período, a segurança diminui. Por isso é necessário realizar uma inspeção. No entanto, esse não é um procedimento simples, e muitas vezes não é feito em ferros-velhos espalhados pelo país”, completa Ademyr.

O reúso de peças é ainda mais essencial para condutores de carros antigos — seja um veículo de colecionador ou não —, uma vez que a maioria dos fabricantes deixa de produzir peças sobressalentes quando os modelos ficam ultrapassados. A partir daí, sempre que o veículo precisa de alguma troca, os condutores precisam recorrer ao mercado de peças usadas.

Carros e carcaças no Setor H Norte, em Taguatinga | André Violatti/Esp. CB/D.A Press - 6/8/2015

O professor Ademyr de Oliveira, do curso de engenharia mecânica da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que, além das questões legais, as peças precisam passar por uma avaliação profissional que vai dizer se elas têm ou não condições de voltar ao mercado. “Nem todas podem ser usadas de novo. Algumas já passaram da vida útil, outras podem trazer trincas e rachaduras que diminuem a segurança”, diz.

“É preciso destacar que as peças são projetadas com uma vida útil estipulada e, passado este período, a segurança diminui. Por isso é necessário realizar uma inspeção. No entanto, esse não é um procedimento simples, e muitas vezes não é feito em ferros-velhos espalhados pelo país”, completa Ademyr.

O reúso de peças é ainda mais essencial para condutores de carros antigos — seja um veículo de colecionador ou não —, uma vez que a maioria dos fabricantes deixa de produzir peças sobressalentes quando os modelos ficam ultrapassados. A partir daí, sempre que o veículo precisa de alguma troca, os condutores precisam recorrer ao mercado de peças usadas.

É o caso do mecânico Murilo Santos, 35 anos, dono de um Volkswagen Gol, ano 2000. “Como meu carro é antigo, geralmente não encontro nas lojas peças originais novas, então a melhor alternativa é o ferro-velho. Não é nem pelo preço, porque muitas vezes peças usadas não são mais em conta por estarem sendo vendidas em ferro-velho, muito pelo contrário. Quanto mais antigo o carro, mais caras são as peças usadas”, explica.

Os amantes de carros antigos são os principais clientes de ferros-velhos, mas não são o único público. Donos de veículos mais recentes, com até cinco anos de uso, também estão sujeitos a recorrerem às peças usadas. Mesmo antes da pandemia, alguns equipamentos não eram fáceis de achar e, depois da covid-19, com a escassez de matéria-prima e as dificuldades que a indústria enfrentou, encontrar certas partes de um carro virou uma tarefa ainda mais trabalhosa.

“Eu bati meu carro e precisei comprar um farol novo. Não estava encontrando em lojas de autopeças, então recorri às peças usadas. Como era uma peça externa, tinha que ser exatamente para o modelo do meu carro, um Peugeot 308 Active. Se fosse de outros modelos, até da mesma marca, não encaixaria. Então, eu fui a um ferro-velho e encontrei a peça usada por mais ou menos R$ 400”, relata o aposentado Antônio de Oliveira, 61 anos.

Com a falta de artefatos novos, formou-se também um comércio de peças paralelas, que chegam a ser vendidas em autopeças, mas não são fabricadas pelas montadoras de carros. O motorista Ary da Silva, 60 anos, explica que esses materiais não apresentam uma boa qualidade, e que é mais vantajoso apostar em peças seminovas. “Certa vez, quando eu tinha um Kadett, precisei trocar o coxim do amortecedor. Comprei uma peça nova, mas paralela, e tive que trocar duas vezes logo após a compra”, relata.

Klevister Sodré, 31 anos, compra peças usadas há mais de 13 anos. Acostumado a restaurar e arrumar seus próprios carros, ele tem o ferro-velho como referência quando o assunto são peças de qualidade. “Geralmente, são peças que não se acha mais em loja, dependendo do modelo do carro. Quanto mais antigo, mais difícil de achar”, conta.

Formado em gestão de pessoas, Klevister sempre foi um amante de carros de época. Desde criança coleciona carrinhos de brinquedo, da marca Hot Wheels e, conforme a idade avançava, a paixão crescia e o sonho de se tornar colecionador de carros antigos se fortaleceu. “Eu amo carros desde que me entendo por gente, mas quando fui piloto de kart, dos 11 aos 13 anos, me apaixonei mais ainda. Sempre gostei de arrumar meus próprios carros e também de ajudar meus amigos a arrumar os deles”, confessa.

Hoje ele faz curso técnico de mecânico para aprender a mexer em seus próprios carros. “Eu já tive um Opala, Uno, Audi, Peugeot, Subaru, tudo antigo. Agora, estou restaurando um Chevette ano 1977, e a maioria das peças eu compro usada”, revela.

Capítulo 2. A atuação criminosa no mercado de peças seminovas

O cenário de reaproveitamento de peças também abre brecha para um problema grave de segurança pública: o roubo de carros. Os desmanches ilegais são um dos principais destinos para esses automóveis. Mais de 1 milhão de carros foram roubados no Brasil entre 2019 e 2021, de acordo com levantamento feito pela plataforma Hello Safe Brasil a partir de dados de todos os Detrans do país obtidos pela Lei de Acesso à Informação. O Distrito Federal registrou a maior taxa de roubos por 100 mil habitantes, com 280,35 casos.

177

carros foram roubados a cada hora no Brasil entre 2019 e 2021

32,2 mil

automóveis foram roubados ou furtados no DF em três anos

Diante desse cenário, a então presidente Dilma Rouseff (PT) sancionou, em maio de 2014, a Lei do Desmanche. De acordo com a norma, os Departamentos de Trânsito estaduais ficavam com a responsabilidade de fiscalizar e de controlar os desmanches de veículos. Essas empresas são obrigadas a emitir uma nota fiscal a cada carro desmanchado, e todas as peças retiradas devem ser colocadas em um banco de dados com código de identificação.

Mesmo após a legislação, no entanto, desmanches ilegais continuam em operação no país. No último dia 5 de julho, a Divisão de Repressão a Roubos e Furtos da Polícia Civil do Distrito Federal realizou uma operação em um ferro-velho de Santa Maria que resultou em três prisões. Os agentes apreenderam R$ 181 mil em espécie e quatro armas de fogo em situação irregular.

Entre os presos, está um casal que era dono de um grande ferro-velho em Santa Maria. Segundo a PCDF, eles vendiam produtos furtados, que eram encaminhados para outros estados em caminhões não rastreados e vendidos como sucata automotiva.

Ferro-velho em Santa Maria (DF) foi fechado por vender peças roubadas | Divulgação/PCDF

O casal é dono do Ferro-velho do Galego, um empreendimento de grande porte e muito conhecido na região. A PCDF informou que a empresa movimentava um intenso comércio de desvio e receptação de diversos materiais, entre eles concreto e grande quantidade de cobre. Inicialmente, seriam cumpridos apenas mandados de busca e apreensão. Mas, diante do material encontrado, os suspeitos foram presos.

“Normalmente, os veículos roubados são encaminhados para os locais de desmanche. As peças em bom estado são adulteradas para eliminação dos sinais de identificação e, então, comercializadas em ferros-velhos, lojas de autopeças ou ainda utilizadas em carros batidos ou que estão em péssimo estado de conservação, somente para o aproveitamento dos seus números do chassi”, explica Daniel Castro, que discorreu sobre os problemas dos desmanches ilegais no Brasil no livro Reciclagem & Sustentabilidade na Indústria Automobilística.

Capítulo 3. Revendas especializadas em peças usadas

Os Estados Unidos também contam com leis que regulam a revenda e o uso de peças semi-novas. Segundo a Associação de Empresas de Reciclagem de Veículos (ARA, na sigla em inglês), que representa o setor, cerca de 500 mil peças usadas são vendidas por mês para motoristas, oficinas e até mesmo revendedores de automóveis.

“As peças automotivas genuínas e recicladas desempenham um papel econômico importante no mercado, oferecendo aos consumidores uma escolha para suas necessidades de reparo de veículos. Sem a existência de peças recicladas, muitas vezes não haveria opções de peças alternativas”, explicou a ARA à reportagem.

De acordo com a associação, as peças precisam passar por processos de controle de qualidade para identificar quais produtos não atendem aos padrões aceitos pela indústria.

Uma empresa brasileira faz um processo semelhante ao dos norte-americanos, a Renova Ecopeças, com sede em São Paulo. O estabelecimento recebe veículos inservíveis e faz o processo de retirada das peças, avaliação e revenda.

Sede da Renova Ecopeças, em São Paulo. | Divulgação/Renova Ecopeças

Um dos destaques da empresa é o rigor com a documentação. Para garantir que veículos roubados não parem nas prateleiras da loja, os condutores precisam apresentar a documentação de baixa do Detran para vender as sucatas.

Depois disso, os veículos passam por descontaminação, desmontagem das peças e por uma avaliação que dirá quais partes poderão ser vendidas. “Nossos técnicos fazem a avaliação das peças, verificando a integridade e o bom funcionamento. As peças destinadas à comercialização são marcadas utilizando nanotecnologia. Cria‐se uma marcação única, inviolável e que não danifica as peças. Esta identificação é associada à nota fiscal de venda, o que garante a rastreabilidade e a legalidade da peça”, informa a Renova Ecopeças.

As peças são classificadas em três grupos. No “A” ficam as partes em ótimo estado; no “B”, aquelas com danos leves, mas que podem ser vendidas por um valor mais baixo; e no “C” ficam as peças que não podem ser vendidas, seja por defeitos ou por serem itens de segurança.

“Utilizando um processo de desmontagem sustentável, a Renova reaproveita e recicla quase todas as peças e componentes de um carro. As peças em ótimo estado ou com pequenos defeitos voltam para o mercado, com procedência e garantia. Já as peças e os componentes que não podem ser reaproveitados são reciclados por parceiros especializados”, detalha a empresa. A última etapa feita pela empresa é a venda das peças semi-novas, na sede, em São Paulo, e pela internet.
Parte 4

Na rota correta para a reciclagem

Para fazer rodar uma frota de mais de 113 milhões de veículos, incluindo automóveis, ônibus e caminhões, o Brasil também se tornou um dos 10 maiores produtores de pneus do planeta. Apenas em 2021, 56,7 milhões de unidades foram comercializadas no país, segundo a Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos (Anip).

Pneus de carros abandonados em Santo Antônio (GO) | Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

No entanto, o custo ambiental de uma demanda tão grande é alto. Primeiro, pela quantidade de resíduos produzidos. Se todos os pneus vendidos no ano passado fossem colocados em posição horizontal e empilhados um em cima do outro, eles alcançariam uma altura total de 10.773km — quase a mesma marca da circunferência da Lua.

Além de demorar ao menos mil anos para se decompor no meio ambiente, a queima de pneus gera uma fumaça negra em que são liberados químicos pesados e poluentes, classificados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) como uns dos mais tóxicos produzidos pelo homem.

Entre eles, está o óleo pirolítico, formado por tóxicos capazes de produzir efeitos adversos à saúde, como perda de memória, deficiência no aprendizado, supressão do sistema imunológico, além de danos nos rins e fígado. Mas a destinação de pneus anda na contramão da sucata automotiva. Com leis rígidas e um setor atuante, o Brasil conseguiu virar um exemplo a nível global da reciclagem destes artefatos.

Capítulo 1. Brasil tem leis rígidas sobre reciclagem de pneus

Os pneus são artefatos que chamam a atenção do poder público desde o fim da década de 1990. Além do problema ambiental, o controle desses rejeitos é essencial para o combate ao Aedes aegypti, inseto transmissor da dengue e de outras doenças infecciosas. Isso porque a rugosidade deles facilita o depósito do ovo pelo mosquito, e a cor escura faz com que a água fique aquecida, o que facilita o desenvolvimento das larvas.

A primeira legislação sobre pneus inservíveis veio mais de 10 anos antes da Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010. Em 1999, a Resolução nº 258 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabeleceu que as empresas fabricantes e importadoras de pneumáticos tornavam-se obrigadas a coletar e a dar destinação final ambientalmente adequada aos pneus inservíveis existentes em território nacional.

Crédito: Thiago Fagundes/Editoria de Arte/CB

A partir daí, a indústria teve que se organizar para encontrar uma solução. A Anip – que representa as indústrias de pneus e câmaras de ar instalada no Brasil, que compreende 11 empresas e 20 fábricas – ficou responsável pela operação, iniciada em 1999 e batizada de Programa Nacional de Coleta e Destinação de Pneus Inservíveis.

O objetivo era servir de suporte para que os produtos usados pelos condutores brasileiros voltassem para a indústria, que seria a responsável por dar a destinação final do artefato. O programa foi ampliado e, em 2007, tornou-se a Reciclanip, que até hoje faz esse trabalho de logística reversa.

Klaus Curt Müller, presidente executivo da Anip, conta que, hoje, a Reciclanip tem 1.053 pontos de coleta espalhados pelo país. “Consumidores, donos de oficinas e borracheiros, carcaceiros, todos podem levar para os pontos os pneus que não têm mais serventia. A partir dali, nós fazemos a destinação”, explica.

Em 2009, veio uma nova regra, a Resolução nº 416 do Conama. A partir dali, os fabricantes e importadores de pneus novos, com peso unitário superior a 2kg, ficavam obrigados a coletar e a dar destinação adequada aos pneus inservíveis existentes no território nacional.

No ano seguinte, a partir da Política Nacional de Resíduos Sólidos, os comerciantes e distribuidores passaram a fazer parte do ciclo de reciclagem, tendo a responsabilidade de efetuar a devolução dos produtos aos fabricantes e importadores.

De acordo com a Reciclanip, ainda há uma ausência na atuação de comerciantes e distribuidores, conforme determina a lei de 2010, e por isso os pontos de coleta são desenvolvidos por meio de parcerias com empresas privadas e com as prefeituras.

Klaus explica que as legislações tiveram grande impacto, mas destaca também a criação de uma cadeia de reciclagem como um fator de destaque no sucesso do trabalho. “No passado, aparecia muito pneu na rua. Hoje, você não vê”, diz. Segundo Klaus, um dos motivos é o fato de o pneu ter ganhado valor. “Uma tonelada custa, em média, R$ 200. Lá em 1999, era o setor que pagava para darem uma destinação aos pneus”, lembra. De acordo com a Reciclanip, desde o começo da operação, em 1999, até 2020, foram coletados cerca de 1,1 bilhão de pneus.

Capítulo 2. Regras também para a queima de pneus

Os pontos de coleta da Reciclanip são apenas o primeiro destino dos pneus inservíveis. No ano de 2020, por dia, cerca de 90 caminhões contratados pela Reciclanip recolheram uma tonelada de pneus inservíveis dos pontos de coleta. “A partir daí, temos uma empresa comercial que faz a venda dos pneus para cimenteiras. Por serem operações de grande volume, é mais viável que tenham um destino único”, explica.

O método de reciclagem dos pneus envolve a trituração. A partir dali, formam-se granulados de borracha que podem ter várias destinações. A principal, que é adotada pelas empresas que compram os resíduos da Reciclanip, é a geração de energia em fornos de siderurgia e cimento. Devido às propriedades do material, o pneu tem ação de queima semelhante à do carvão.

Mas, como a queima de pneus é extremamente tóxica, a reciclagem energética precisa seguir uma série de regras, estipuladas pela Resolução nº 264 de 1999 do Conama, como a adição de filtros aos fornos de alta temperatura. “Hoje, o uso das cimenteiras é completamente de acordo com o regramento das agências estaduais e do governo federal”, diz Klaus.

Pneus são utilizados para construir barreiras no Autódromo Internacional Nelson Piquet | Minervino Junior/CB/D.A Press

O trabalho feito pela indústria tem que cumprir metas estipuladas pela legislação. A principal delas é que 70% de todos os pneus colocados no mercado devem ser recuperados. “Da meta é retirado o que a indústria vende para o montador, que é considerado o produto original, e só vai virar um resíduo a partir da primeira troca de pneu”, explica Klaus. “As metas são medidas por peso. Então, entendemos que 30% do peso do pneu foi perdido pelo fator do desgaste. Por exemplo, se era um produto de 10 quilos, a expectativa é de que no fim da vida ele tenha 7kg”, completa.

Klaus destaca que, mesmo operando em um país com dimensões continentais, a reciclagem de pneus no Brasil é tão bem-sucedida quanto em algumas nações europeias. "De acordo com dados da Associação Europeia dos Fabricantes de Pneus e Borracha (ETRMA), ficamos à frente, em números absolutos, de países como França, Itália, Polônia, Turquia, Espanha, Suécia, Holanda, Portugal, Reino Unido e Alemanha”, diz.

Capítulo 3. Brasil tem primeiro centro de reciclagem da América Latina

Apesar da longa estrada que o Brasil tem que percorrer para conseguir reciclar uma maior quantidade de carros, algumas iniciativas mostram que o país está no caminho certo. Inspirado no modelo adotado pelo Japão, o Centro Internacional de Reciclagem Automotiva (Cira), inaugurado em Belo Horizonte em 2019, é o primeiro local na América Latina a reciclar veículos de uma forma mais específica.

Resultado de anos de estudos, o centro promove conhecimento acerca do sistema necessário para reutilizar peças e carcaças. O Cira usa equipamentos de alta tecnologia, financiados pelo governo do Japão, por meio da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica), que destinou US$ 1 milhão para a implementação do centro.

Instalado em Belo Horizonte, o Cira foi construído com investimento do governo japonês | Divulgação/Cira
“Em 2010, eu fiz uma visita ao Japão, fui convidado para participar de um treinamento sobre reciclagem de veículos, e eu fiquei tão interessado por esse tema que comecei a ver se a gente conseguia implementar isso aqui no Brasil”, relata Daniel Castro, professor de engenharia da energia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) e fundador do Cira.

Diferentemente dos pontos de reciclagem espalhados em solo brasileiro, o Cira faz o processo completo desde a desintoxicação do veículo até a destinação final de cada parte e, assim, consegue aproveitar 95% do peso total do carro. Hoje, o centro tem parceria com a Fiat, que envia veículos de teste para serem reciclados no local; e com empresas de Belo Horizonte que buscam dar destino às frotas em fim de vida útil. Inaugurando em 2019 em Minas Gerais, o método foi expandido para São Paulo.

A ideia é fazer com que o Brasil alcance o patamar do Japão, exemplo quando o assunto é reciclagem. De acordo com Daniel, no país oriental o setor de reutilização de peças e carcaças de automóveis envolve mais de 10 mil empresas, o que resulta em menos de 5% do veículo, em peso, descartado. “O Japão é a nossa referência. Lá, eles estão trabalhando há 20 anos para conseguir esse grau de aproveitamento. Vamos trabalhar para chegar a reaproveitar até 100%. Existe lucratividade nesse ramo. Precisamos despertar esse interesse nas empresas brasileiras”, garante o professor.

Capítulo 4. O exemplo que vem de fora

Usado como exemplo para o centro do Brasil, o Japão tem a lei de reciclagem de veículos mais elaborada do mundo, de acordo com avaliação de Daniel Castro. Nos anos 1990, as autoridades do país asiático notaram um problema que aumentava a cada dia: a sobrecarga dos aterros sanitários. Desde então, uma série de legislações foi aprovada para impor regras sobre a destinação de alimentos, eletrodomésticos, resíduos da construção civil e etc.

Dificuldade na reciclagem de veículos faz sucatas em áreas públicas ainda serem comuns no Brasil | Edy Amaro/Esp. CB/D.A Press

Sancionada em 2005, a legislação que versa sobre automóveis coloca metas ambiciosas de reciclagem, visando chegar a 95% do peso do veículo. Desde então, as montadoras ficam obrigadas a receber e a tratar adequadamente os resíduos provenientes dos veículos em final de vida, os airbags e os gases utilizados nos sistemas de ar-condicionado.

Já os consumidores que compram um veículo novo pagam uma taxa estabelecida pelo governo que é destinada à reciclagem dos automóveis. No futuro, quando o condutor decidir trocar o carro velho por um novo, o valor é devolvido para ele. Na União Europeia, o parlamento aprovou, em 2001, uma lei sobre o tema. De acordo com a legislação, que vigora em 27 países, as montadoras são responsáveis pelo ciclo de vida dos automóveis e devem incentivar o desenvolvimento de um mercado de materiais reciclados. O objetivo é fazer com que os materiais reciclados de um veículo inservível aumentem de valor, o que tornaria essa indústria atraente do ponto de vista financeiro.

Já nos Estados Unidos não existem leis a nível federal sobre o tema. No entanto, a reciclagem atinge números expressivos devido à atuação de uma cadeia produtiva formada ao redor do tema. Fundada em 1943, a Associação de Empresas de Reciclagem de Veículos (ARA, na sigla em inglês) reúne mais de mil empresas associadas que trabalham junto a órgãos governamentais na elaboração de projetos e na execução da reciclagem de veículos

A ARA informou ao Correio que os Estados Unidos contam, atualmente, com 9 mil locais que fazem reciclagem de veículos, empregando 140 mil funcionários. Por ano, a média de automóveis reciclados está na casa dos 4 milhões – no entanto, os números englobam também veículos canadenses que terminam a vida em centros de reciclagem nos EUA. De acordo com a ARA, em 2010, a taxa de reciclagem dos veículos era de 75% do peso total. Neste ano, o número chegou a 86%.

Para que um modelo semelhante ao destes países funcione no Brasil, é necessário existir um envolvimento da sociedade, interesse do poder público e, principalmente, engajamento de empresários. De acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, o país tem total condição de caminhar para um futuro mais sustentável e, para isso, só é preciso comprometimento com a pauta ambiental.

“Com a implementação de um modelo como o do Japão, tanto no Brasil quanto em outros países do mundo, nós estaríamos limpando o planeta, eliminando muitos problemas ambientais e reduzindo o uso de energia”, explica Daniel Castro.
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Este especial foi publicado de 4 a 7 de agosto, em quatro reportagens no jornal impresso, e em 7 de agosto, no site do Correio Braziliense.