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Crônica: As voltas que a cidade dá

Nesse momento, já sabia que carregava no ventre a primeira filha. Passava por uma transformação que só depois do nascimento dela entenderia totalmente

Mariana Niederauer

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De quantas voltas se faz uma cidade? Se é assim que se conta a duração de um ano, por que não usar a metáfora para um monumento concreto, porém poético? Acordei numa madrugada com essa inquietação. O clima era de deserto. Essa aridez da seca de Brasília unida à pasmaceira de uma noite sem agitos. E percebi que aqui a vida dá voltas, a começar pela localização mais central e nobre de seu desenho.

A inspiração fez nascer talvez o texto de minha autoria mais belo que povoou as páginas deste jornal. A modéstia realmente ficou à parte, mas se me acompanhar pelas próximas linhas talvez entenda a viagem que me fez embarcar nesse sem-fim de sensações que apenas guiaram as mãos intuitivamente pelo papel, na tela do smartphone e nas teclas do computador.

Eu contava como a vida dá voltas no Parque da Cidade. Brinca de ciranda no Ana Lídia. Passeia na roda gigante do Nicolândia. Pedala o camelo nos caminhos cíclicos ou o pedalinho sobre o espelho d’água. Deixa uma jura de amor sobre a ponte. Refresca a sede com água de coco. Saca os problemas e corta a tensão numa quadra de vôlei.

Nesse momento, já sabia que carregava no ventre a primeira filha. Passava por uma transformação que só depois do nascimento dela entenderia totalmente, e seguia sendo levada por essa inspiração que se chama Brasília, onde a vida pega carona nas asas do Plano. Exibe a beleza pela passarela da Esplanada. Esbanja cerrado pelos canteiros de Ozanan e nos braços não menos candangos de operários dedicados de sol a sol. Exala elegância nos traços livres de Niemeyer. Organiza-se entre os eixos de Lucio Costa.

Sob os prédios, pilotis erguidos e habitados por meus avós, pais, tios e tias. A primeira e segunda geração de uma cidade que nasceu com muitos irmãos, na esteira e na leveza da vida que mergulha num lago artificial. E encanta-se com sua beleza natural. É crepúsculo na Ermida e Alvorada sobre a Terceira Ponte. Derrete-se no brilho mágico dos amantes que reflete sobre a água. Diverte, exercita e renova energias nessa imensidão Paranoá.

Depois de viver a infância entre os blocos de histórias pujantes, encontrei o mais belo e puro amor no mais escancarado clichê. À la Eduardo e Mônica, nos apaixonamos nos primeiros semestres de UnB. Calouro, veterana. A menina ingênua e estudante aplicada, com o rapaz alto e bonito, o mais popular das festas populares.

E então a vida fez preces na Catedral, sob os anjos de Ceschiatti e o azul intenso de Marianne Peretti. Casou-se com o primeiro namorado na Igrejinha. Pediu bençãos na Praça dos Orixás. Saiu em procissão com tapetes e velas. Regozijou-se com o pôr do sol na Praça do Cruzeiro.

Desde aquele encontro, a gente trata de viver se rebelando como Renato Russo. Vivendo a vida que canta a Legião Urbana na calçada. Faz fila do Karim à 106 Sul. Sintoniza o rádio na estreia do Drive-in. Assombra o Teatro Nacional. Escandaliza o público no Mané. Monta picadeiro no ginásio. Toma café da manhã na Torre e embarca no museu-aeronave do Complexo Cultural da República. Viaja galáxias e desvenda buracos negros no Planetário.

Com a segunda vida a caminho, no corpo exausto pelos efeitos de uma pandemia cruel, mas alma plena e ansiosa por mais desafios, a vida chega a se perder entre as quadras geométricas da Octogonal. Encontra história e samba no Cruzeiro. Bronzeia-se nos clubes. Brinda nos bares. Desfaz esquinas. Perverte a lógica na matemática do Plano Piloto. Invade as agulhinhas e, em breve, pulará carnaval nas tesourinhas.

Tanto esforço pelo caminho e a vida decide embarcar num voo no aeroporto e respirar novos ares. Vira turista. Inebria-se. Transforma choro em estrela cadente. Explora encanto e luta em Ceilândia, Taguatinga, Itapoã, Samambaia ou perto de Goiás. Encontra verdades periféricas. Desmascara injustiças. Sofre. É muitas vezes esquecida. Mas vira haikai e não perde a poesia. Ergue-se do barro. Constrói. Realiza sonhos.

Aí, quatro gerações e 62 anos depois, a vida se completa em uma só Brasília, aquela que integra os moradores com seus vãos abertos em pilotis, os mesmos que convidam às brincadeiras de criança ou a um bate-papo no fim de tarde. Afinal, a minha, a nossa Brasília, a cidade dos eixos, das tesourinhas, das agulhinhas, das quadras e das controvérsias de esquina, tem charme de metrópole e gosto de café passado no coador de pano em casa de vó.