Primeiros moradores de Brasília contam do que mais sentem saudade
Encontros no Gilberto Salomão, espetáculos marcantes no Teatro Nacional e Michael Jackson no Ginásio Nilson Nelson. As primeiras décadas de Brasília foram marcantes e fizeram uma geração de pessoas terem a certeza de que a nova capital era mais do que um centro político: um verdadeiro lar
Talita de Souza
Há 62 anos, Brasília era inaugurada como a nova capital do país. Entre um presidente orgulhoso de cumprir a promessa eleitoral e centenas de trabalhadores que ergueram prédios e monumentos em tempo recorde, a história da cidade começava como uma folha em branco onde cada morador poderia escrevê-la junto com a nova capital.
As primeiras décadas da cidade foram como a adolescência de qualquer um: ousada, cheia de descobertas e primeiras vezes. Foram os primeiros moradores e nascidos aqui os responsáveis por marcar a cidade com memórias e lugares que fizeram da capital um lar. De uma asa a outra, do lado de cá e do lado de lá do Lago, entre teatros que não existem mais e movimentos punks que marcaram a história nacional, o legado que a primeira geração da cidade deixou ressoa até hoje na cidade.
Ao Correio, alguns estreantes da cidade lembraram como era a capital e revelaram do que mais sentem falta aqui. Confira!
De 6 km a pé para ver o Rei do Pop até ajudar o “primeiro” morador de rua
Ginásio Nilson Nelson, nas primeiras décadas de Brasília. O local já era o point para receber shows e entreter moradores da cidadeA frase “quem quer dar um jeito” nunca foi tão adequada para definir um dos momentos mais marcantes da vida de Orlando Trindade, 61 anos, na capital. Morador de Brasília desde os seis meses de idade, Orlando lembra de um dos momentos que parou a história dele: um show de ninguém mais e ninguém menos que o Rei do Pop, em 1974. Na época, no entanto, Michael Jackson ainda era apenas um dos Jackson’s Five, grupo que tinha com os irmãos e que o revelou ainda na infância.
Morador da 410 Sul, Orlando soube que a banda estadunidense que já havia aparecido de vez em quando na TV de tubo dele iria estar em Brasília, no Ginásio Nilson Nelson. O problema era que o show era muito caro e a turma aceitou que não poderia viver o momento.
Mas a sorte mudou e, por um imprevisto, a banda não pôde chegar no dia marcado e a gestão do evento decidiu abrir o show para todos os moradores de Brasília. Essa foi a chance do grupo de amigos que, agora, só precisava superar um pequeno obstáculo: a distância de 6 km entre a quadra deles e o local do show.
“Não tinha ônibus para lá. Eles abriram de graça para todo mundo e eu e minha turminha só pensamos em ir. Fomos a pé, da 410 sul até o Ginásio. Eu tinha acabado de machucar meu pé, mas a gente não pensava em nada disso, a gente só pensava em ir e ver o show. E a apresentação marcou a minha vida. Caramba! Que coisa maravilhosa! Eles ali, cantando, dançando, em inglês. Caramba! Um amigo meu teve que me carregar nas costas, mas foi incrível”, lembra Orlando, aos risos. No total, o grupo teve que percorrer 12 quilômetros a pé para viver o momento e voltar para casa.
No entanto, esse foi apenas um momento de uma geração que, segundo Orlando, era viciada em viver e fazer viver. Prontos para tudo, poderiam dizer. Inclusive para um possível resgate.
“Por volta da mesma época, o Correio e o telejornal da época deram a notícia de que havia um mendigo na cidade. Meus amigos e eu juntamos comida, roupas e saímos por Brasília inteira para achar e ajudar essa pessoa. A gente não achou”, conta. “Mas era comum a gente fazer aquilo. Hoje, a gente tem milhares de mendigos na cidade e ninguém tá nem aí para ninguém”, lamenta Orlando.
Do acampamento dos construtores vieram os amigos e o amor eterno
Um amor arrebatador. Oneide Soares, de então 19 anos, não imaginava que vir do Piauí com a família, para atender um desejo da mãe em conseguir mais trabalhos como costureira, iria fazer com que ela encontrasse o amor da vida dela, bem no meio de um acampamento improvisado para construtores de Brasília.
Ela chegou à capital na década de 1970 e se instalou em uma espécie de quitinete na Candangolândia, no Acampamento dos Engenheiros, destinado a engenheiros, construtores e qualquer outro tipo de trabalhador que viesse para a construção de Brasília.
Logo conheceu o vizinho, que veio de Minas Gerais. Ele contou que o irmão dele morava com ele na Capital, mas decidiu voltar. Quando ela viu José Roberto pela primeira vez, em 1980, teve a certeza que era alguém especial. Entre as ruas que não eram asfaltadas e apoiados nas paredes de madeira do Acampamento, os dois trocavam olhares, algumas conversas…
Por um ano inteiro, não se desgrudaram. “Éramos inseparáveis. Eu estudava à noite e ele me buscava. No tempo livre, íamos para o clube do grêmio, que era nossa diversão, a gente ia lá, de manhã era piscina e à tarde, churrasco. Íamos andando, não tinha tempo ruim”, lembra. “Em outros domingos, a gente ia ao cinema, no Conjunto Nacional, mas só se a sessão acabasse antes das 22h, porque se não não teria ônibus para voltar”, conta aos risos.
A rotina, no entanto, não era suficiente. Oneide e José Roberto queriam dividir uma vida juntos. “Um ano depois, a gente já estava casado. Foi amor. Amor à primeira vista. E amor que não coube só na gente. Em 1982, eu já estava ganhando meu primeiro filho”, conta emocionada.
Juntos, os dois fizeram da casa deles e, do acampamento, uma espécie de grande família. “Todo mundo era amigo de todo mundo. Todos viviam na casa um do outro, não tinha isso de individualismo. Tudo era festa. A gente fazia festa junina, barraquinha, concurso de quadrilhas”, lembra com felicidade.
Hoje, Oneide afirma que não imaginava viver uma vida tão boa em Brasília. “E eu sinto falta. Hoje, todo mundo tem que trabalhar, trabalhar e trabalhar, e não tem tempo”, diz. Mas ela ainda afirma que a capital continua sendo um lar para ela, os filhos, os netos e para o grande amor da vida dela, José Roberto. “Estamos juntos até hoje, graças a Deus, né?”
Do Gilberto Salomão a entrar de penetras em festas
Marco Jardim pode dizer que não só conhece a essência de Brasília, mas também é parte dela. O brasiliense foi um dos primeiros bebês a nascer na nova Capital, em novembro de 1960. O pai dele, de Diamantina (MG), veio para a cidade em 1959, um verdadeiro pioneiro.
É com esse espírito desbravador, herdado dos pais, que Marco viveu os primeiros anos da vida dele. Desde cedo, é apaixonado por conhecer todos que cruzam o caminho dele. A missãonunca foi muito difícil, já que na mesma época ele lembra que todos tinham o mesmo pensamento.
“Até entrar de penetra a gente entrava. Se a gente estava na 111, conversando com as pessoas, sabíamos que tinha uma festa na casa de alguém na 113 e a gente ia, empolgado, chegar até lá e tentava entrar de penetra”, lembra aos risos.
“Sexta, sábado e domingo era o Gilberto Salomão, o point da época. A gente sentava com todo mundo e sempre conhecia gente nova”, lembra Marco. Para ele, a maior riqueza de Brasília é conviver com diferentes culturas.
“Eu sentava em uma mesa com três, quatro pessoas e perguntava de onde eram. Numa mesma mesa tinha quatro estados, quatro culturas e a troca de conhecimento era enorme. Isso é riqueza”, lembra, empolgado.
“É um privilégio conviver com pessoas diferentes e eu sei que não teria isso em outros lugares do Brasil. Eu até brincava que eu era mineiro, gaúcho, paulista, porque na época o brasiliense não tinha uma identificação própria, nós éramos todos”, conta. “Essa vivência de comunidade, de todos se conhecerem, é o que eu sinto mais falta”, suspira.
O teatro que apresentava o Brasil, o mundo, e marcava vidas
Do interior baiano, Antonilia Marra sempre aspirou descobrir o Brasil além dos limites de Barreiras (BA), uma cidade que, na década de 1960 oferecia apenas um viés da agricultura. Por esse motivo, quando ela viu que a tia e duas irmãs dela viriam a Brasília, logo avistou uma oportunidade de encontrar um novo lugar para alcançar o que ela nem mesmo sabia na época: viver a plenitude do mundo, da cultura e da poesia.
“Na minha cidade, dependia muito de agricultura, não tinha outras oportunidades. Minha vida ia ser muito diferente lá e eu tinha uma ambição de não ficar na mesmice, queria crescer. Apesar de não ter muito conhecimento do que era aqui, eu queria e precisava fazer algo para viver outras coisas”, lembra.
Ela contou ao pai que a cidade era uma oportunidade de trabalho e, apoiada por ele, chegou à capital aos 16 anos, em 1976. Logo Antonilia se encantou com o design da cidade, os ares modernos e “o clima super agradável”.
Entre passeios no Parque da Cidade e no Conjunto Nacional, ela se satisfazia em ver que a vida poderia ser mais do que só trabalho. No entanto, foi apenas quando pisou no Teatro Nacional que teve a certeza de que encontrou o que buscava: um lugar que a levaria a conhecer o mundo e a ser inspirada pela arte.
“Era o lugar que eu mais gostava de ir. Era uma oportunidade de ver coisas novas, de descobrir o mundo. Eu não conhecia cultura e ali eu vi muitos espetáculos. Era um outro mundo”, conta, emocionada.
Cerca de 42 anos depois, Antonilia ainda se lembra do dia em que a vida dela foi marcada naquele Teatro. Ela assistiu ao espetáculo A Chorus Line, no qual Claudia Raia protagonizava uma história de superação de um grupo de artistas que corriam atrás do sonho de estrelar na Broadway.
“Era um musical, uma versão de um espetáculo americano. Foi muito bonito e uma mensagem muito forte. Me marcou demais”, lembra Antonilia. O espetáculo também marcou a carreira da atriz Claudia Raia: aos 16 anos, ela estreou nos palcos com a obra, que marcou o começo de uma nova era dos musicais brasileiros.
Além de Cláudia, Antonilia assistiu a Chico Anísio e outros grandes atores da época. Ela lembra que o teatro também era palco de diversas exposições, até mesmo de plantas.
“A cada seis meses, no saguão, tinha uma enorme feira que ficava lá. Era uma oportunidade de conhecer mais coisas e por isso eu gostava muito”, lembra. Apesar do fechamento do Teatro, Antonilia afirma que “Brasília ainda é o melhor lugar para morar, trabalhar, estudar, viver e constituir família”.
“A energia de Brasília não tem igual. Eu já fui para vários estados do Brasil, observo as pessoas e as cidades e é muito diferente. Aqui, as pessoas cuidam de onde moram, são conscientes e têm um bom convívio”, finaliza.
Dos dias de pesca no Paranoá para os de carona até o heavy metal
“Eu tive a infância e a adolescência mais felizes do mundo”, declara, empolgada, Rosane Galvão. Hoje com 51 anos, a brasiliense diz ter certeza de que em nenhum outro lugar, a não ser em Brasília, ela teria a oportunidade de viver tão bem.
Criada no Lago Sul, Rosane e a família moravam na QI 19. “A rua era descalça, só tinha duas casas, não tinha nenhuma das pontes ainda e ali fizemos um lar. Meus pais eram perfeitos, eles nos ensinaram a viver”, lembra a taquígrafa.
Com os quatro irmãos e os pais, a família fez do Lago Sul um mundo deles. Amavam ir até o Lago Paranoá pescar, aproveitavam a água da chuva para curtir uma “piscina” e inauguraram o primeiro clubinho de futebol do local. “Papai gramou um lote do lado de casa, chamou os moradores do Lago e fez até carteirinha. Era muito divertido”, lembra Rosane.
Na adolescência e no início da juventude, a brasiliense passou a explorar a cidade do outro lado do Lago. “A gente não conseguia ficar em casa. Queríamos sair, sempre. Viver o encontro, o presencial, o olho no olho. Viver”, declara. Nem mesmo a falta de carro a atrapalhava. “Minha irmã e eu íamos para a pista, colocava o dedo pra fora e pegava carona para ir para o Plano. Tudo era carona para irmos aonde queríamos. O importante era ir para a rua”, lembra.
Assim como Rosane, outras centenas de jovens procuravam todos os cantos de Brasília para ocupar e deixar com a cara deles. Foi assim que nasceram os diversos movimentos musicais, principalmente o heavy metal, paixão de Rosane.
Estudante da Escola de Música de Brasília por sete anos, ela foi convidada a tocar em uma banda só de mulheres em 1987, onde tocava baixo. “A Flâmia é, tenho quase certeza, a primeira banda de heavy metal só de mulheres do Brasil”, conta, orgulhosa.
De sobrelojas na Asa Norte até as cidades do Entorno, a banda divertiu outros amantes do estilo musical. “A gente reunia muita gente, nós vivemos tudo o que poderíamos viver. Desde rixas entre os punks, metaleiros e carecas, tentativas de sabotagem de uma banda que a gente era ‘inimiga’ até a apresentação na Concha Acústica”, lembra.
Nos anos 2000, Rosane integrou a Rarabuchuebas, onde era a única mulher. Ela lembra que a banda tocou nos grandes festivais de rock da capital, como o Brasília Fest Rock e o Gran Circo Lar, que não existe mais.
A brasiliense guarda na memória e ainda hoje toca, ao lado das filhas, músicas de rock. Ela diz ter saudade da efervescência da capital e a prioridade que todos tinham em estar juntos.
“Brasília tinha a ver com movimento e contato físico. A gente era solto na cidade, a gente vivia muito. As pessoas eram mais tolerantes. Hoje é inimaginável você fazer uma banda para tocar em uma sobreloja, ninguém ia aceitar ouvir. Antes, as pessoas eram mais tolerantes e tinham respeito pela energia e vitalidade da juventude. Eu lamento pelas minhas filhas, que não vão viver o que já vivi um dia”, lamenta.