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MEMÓRIA

Veja as reclamações “curiosas” sobre Brasília na década de 1960

O Correio estava lá quando a cidade nasceu e em todos os anos seguintes. O jornal serviu de apoio aos novos moradores reivindicarem as mais urgentes — e curiosas — necessidades da época

Falta de iluminação que dava um lugar para que casais promovessem “escândalo” no escurinho da superquadra 107, uma cadela raivosa mas com um dono “muito mais perverso” que fazia os cabelos dos moradores da quadra 17 se arrepiarem, e a falta de variedade no cardápio de um restaurante perto da Igrejinha eram algumas das variadas e curiosas reclamações recebidas pelo Correio no quadro Coluna do leitor, em abril de 1962. 

Há apenas dois anos do nascimento da capital, os poucos moradores que apostaram em Brasília e vieram doar as vidas para o projeto e para o futuro da cidade não perdiam tempo ao exigir melhorias. Com tom de seriedade, irritação e até mesmo deboche, os candangos rechearam as páginas do jornal com o que eles desejavam que fosse notícia: uma capital melhor e digna para todos. 

Confira uma seleção dessas reivindicações preparada pelo Correio em comemoração aos 62 anos de Brasília:

Comida “racionada e intragável”

Em uma terça-feira de abril, no dia 3 daquele mês em 1962, a página 6 do Correio recebeu uma reclamação deveras válida: um trabalhador que não aguentava ter a principal refeição do dia composta por alimentos “racionados e intragáveis”. 

Reinaldo J. Vieira foi o dono da reclamação contra o restaurante Americana, localizado, à época, perto da Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima. O homem afirma que a comida era servida no prato e, por isso, era feito como os donos desejavam — a contragosto de Reinaldo. De acordo com ele, o menu da casa não era variado, era sempre “um pouquinho de arroz, feijão preto e dobradinha”. “A comida que servem aos fregueses, além de ser racionada, é intragável”, disse na carta.

De acordo com o reclamante, a falta de variedade e o fato de ser “pouco substanciosa” torna a comercialização do restaurante uma “exploração e caso de polícia”. “Convenhamos, é exploração e caso de polícia. Urge, portanto, providências adequadas das autoridades competentes”, concluiu ele. 

Dois dias depois, mais uma vez a página 6 foi tomada por uma carta do senhor Reinaldo, que parecia ser um guardião do paladar dos trabalhadores brasilienses da época. Em 5 de abril de 1962, a reclamação se dirigiu ao restaurante do Grupo de Trabalho de Brasília (GTB), órgão responsável pela construção de prédios habitacionais na capital. 

Nesse, Reinaldo provou o que ele chamou de “arroz sem tempero” e um “feijão mal preparado”. A carne? Não tinha. “A comida vem piorando dia a dia, pois, antigamente ainda era servido o bife, mas agora deixaram de servir esse insubstituível prato”. 

O Correio se pergunta se Reinaldo conseguiu tornar os horários de almoço dele e dos colegas em um período agradável e saboroso. Esperamos!

Cadela perigosa, dono perverso: o terror da Quadra 17

Imagina não poder circular pelas ruas da quadra em que mora porque a qualquer momento uma cadela pode te atacar sem motivo ou, ainda, a mando do próprio dono? Essa era a realidade vivida em abril de 1962 pelos moradores da Quadra 17, de acordo com Luiz Fernando Alves. O homem escreveu ao Correio para pedir às autoridades “providência” para o caso. 

De acordo com Luiz Fernando, a cadela, que é descrita como muito bonita, vivia solta pela quadra e sempre atacava as pessoas do local. O temperamento da cachorrinha também era utilizado pelos interesses do dono, classificado como “muito mais perverso” que o animal.

Luiz afirma que o tutor da cadela obrigou-a a atacar “um grupo de rapazes” que conversavam na quadra. Ele pedia que a polícia e outras autoridades intervissem para que o fato não se repetisse e para que “crianças inocentes não sejam também mordidas”. 

Um galinheiro e uma bananeira: a receita para estressar vizinhos

A vizinhança do Bloco 5 da Superquadra 412 era uma calmaria até o momento em que um deles teve a ideia de cultivar um galinheiro em frente à entrada em que mora, em um espaço que era destinado ao jardim do bairro.

A carta, feita pelos moradores indignados, dizia que o homem tinha “a mania de fazendeiro” e chegou a plantar uma bananeira no local, além de alguns legumes e outras coisas em frente ao apartamento dele.

Os vizinhos insatisfeitos pediam que as autoridades fizessem algo para acabar com o “cocoricó” das galinhas, com a justificativa de que a pequena fazendinha do homem prejudicava “completamente o plano urbanístico da cidade”.

Lambretista abusado na 409 tira o sossego dos pais da quadra

A coluna do leitor de domingo, 15 de abril de 1962, trouxe uma história um tanto curiosa, digna de reality shows que tratam sobre problemas entre familiares e vizinhos. Tratava-se de uma reclamação dos moradores do Bloco 29 da Superquadra 409, que reclamavam do que chamaram de “um abusado lambretista” que passeava pela calçada do local “sem respeitar quem ali passa”. 

Imprudente, o lambretista foi acusado de “quase matar um menor”, chamado de Francisco da Cunha Filho, de 4 anos, que brincava na entrada do apartamento em que morava. Além de quase causar o acidente, o lambretista “ainda achou-se no direito” de ir até a casa da criança e falar para o pai não deixá-la em frente à casa porque era o local onde ele passava com a lambreta. 

Na carta, os moradores apelaram ao então chamado Serviço de Trânsito da capital para “que baixe determinação com a finalidade de coibir abusos dessa ordem”. Será que a sagaz lambreta recebeu uma multa? 

Mulher despejada sem estar em casa perde herança de família

Uma moradora da Superquadra 412 usou a Coluna do Leitor para denunciar o despejo dela, que lhe custou mais do que um lugar para morar. Em 19 de abril de 1962, a carta de Elza Ramos contou o drama que viveu. Ela havia sido despejada há dois meses do apartamento em que morava na 412, enquanto trabalhava. Quando chegou em casa, além de não ter acesso ao local, não sabia onde estavam todos os móveis. 

A saga de Elza para encontrar as suas mudinhas de roupa e o restante dos bens durou dois meses, até que os encontrou. O problema é que a ex-moradora da Superquadra 412 diz ter perdido diversas jóias, roupas de cama e ate mesmo uma radiola, “de alta fidelidade”, que “ficou inteiramente estragada”. 

No entanto, há um objeto que Elza fazia questão de reaver: um crucifixo, herança de família. Na carta, ela reclama de ter sido furtada “numa terra de gente civilizada” e que o que ocorreu com ela, os móveis e os bens “é obra de pessoas sem princípio, indigna de funcionar como servidores de um órgão judiciário, que tem obrigação de dar bom exemplo”.  

Na reclamação, ela se dirige diretamente ao Juiz da Primeira Vara da Fazenda Pública, que emitiu a ordem de despejo, “para que tome uma providência enérgica para punir os culpados” e fazer com que o crucifixo apareça. 

Pombal inacabado? Leitor confunde traço artístico de Oscar Niemeyer

Reclamação pombal inacabado
Leitor reclamou do Pombal criado por Oscar Niemeyer para a Praça dos Três Poderes

Em 24 de abril de 1962, dois dias após Brasília completar dois anos, o leitor Darcy Viana trouxe uma reclamação que, hoje, pode ser vista como uma crítica ao trabalho de Oscar Niemeyer. O morador do Bloco 6 da Superquadra 409 afirmava que o Pombal da Praça dos Três Poderes, erguido e inaugurado em 1961 durante o governo de Jânio Quadros, estava inacabado. 

Ele afirmava que as autoridades tinham duas alternativas: “Ou se retira aquela coisa horrível que o governo de Jânio Quadros construiu (a única obra que fez em Brasília) ou então se termina dando-lhe a complementação digna da suntuosidade da Praça dos Três Poderes”. Darcy ainda chamou a obra de um dos arquitetos mais renomados do mundo de “monstrengo” que enfeia a paisagem do local. 

O Pombal, na verdade, não estava inacabado. Ele foi inaugurado em 1961, pronto, logo após a primeira-dama, Eloá Quadros, fazer o pedido para Niemeyer. Ela dizia que todas as praças deveriam ter pombos — o Pombal é uma maneira de atrair pombos para o local.

De acordo com historiadores, Niemeyer não gostou da ideia, por achar que a praça deveria continuar plana, ou seja, sem nenhum outro monumento no meio dela. Mas precisou atender o pedido “irrecusável”. Fato engraçado: a obra é conhecida por alguns brasilienses como “prendedor de roupa”. 

Mosquitos causam insônia aos moradores da 206

Maria Pereira dos Santos não aguentava mais perder noites de sono quando decidiu escrever uma reclamação ao Correio, que foi publicada em 27 de abril de 1962, uma sexta-feira. Moradora do bloco 1 da Superquadra 206, ela afirma que uma “onda de mosquito” ronda o local, insetos “tão fortes e violentos que impedem o sono dos habitantes do edifício”.

Maria ressalta, na carta, que os mosquitos podem ter relação com “fossas anti-higiênicas” que ainda existiam no local. Por fim, ela pedia que as autoridades corrigissem o problema, porque “não se justifica que numa cidade com todos os recursos da técnica moderna, seus moradores tenham seu sono cortado por uma onda perturbadora de mosquito”. 

Asa Norte preterida? Morador reclama de falta de bancas

Considerado um dos locais com melhor qualidade de vida de Brasília, a Asa Norte parece não ter sido sempre preferida pelas autoridades locais na década de 1960. Pelo menos não para Meyer Wakimin, morador do Bloco 16 da Asa Norte, que escreveu ao Correio em 11 de abril de 1962 para reclamar que “as autoridades, decididamente, não dão a menor importância pela sorte dos que vivem no conjunto residencial”. A revolta de Meyer é a falta de bancas de jornal.

“Por que a Novacap só não construiu Banca de Jornaleiros na Asa Norte?”, questionou o morador. O homem afirma que “não há motivo justificável” para a inexistência desses estabelecimentos que promoviam a comercialização de jornais, revistas e outros itens de conhecimento e entretenimento dos moradores. 

“Em outros conjuntos residenciais, menos populosos, foram construídas bancas dotadas de todos os requisitos modernos.” Será que o seu Meyer conseguiu ter a oportunidade de comprar o jornalzinho diário pela manhã perto de casa, antes de ir ao trabalho?

Leitor pede que polícia limite uso de “farol alto”, que causou acidente

Leitor reclama de farol alto
Leitor reclama de farol alto

Em 15 de abril, foi publicada a reclamação de Marcelino Luís de Oliveira, que registrou a insatisfação pessoalmente na redação do Correio, no SIG. O morador da Quadra NE 30 denunciou o uso da luz do farol por motoristas que atrapalham os “colegas” que andam no sentido contrário da avenida. 

Na quinta-feira anterior ao domingo em que registrou a reclamação, Marcelino conta que atropelou um garoto após “perder a visão” quando um carro o ultrapassou com farol alto. O fato, que deixou Marcelino indignado, fez com que, além de uma reclamação no jornal, ele organizasse um abaixo-assinado para “solicitar das autoridades um providência contra tais abusos a fim de evitar outras vítimas nas estradas”. 

Falta de luz promove um lugar para “amantes” se encontrarem

Nada de encontros “apaixonados” na Superquadra 107! Para Walter Luís, morador do bairro, a falta de iluminação no local não trazia insegurança, mas sim propiciava um ambiente para que casais “promovessem escândalos”. A reclamação dele, publicada em 1º de abril de 1962, pedia para que as autoridades tomassem “uma providência enérgica a fim de colocar um ponto final nesta irregularidade”. 

Todas as histórias retratadas aqui foram retiradas do Centro de Documentação (Cedoc) do Correio Braziliense, que se orgulha de fazer parte da história de Brasília!