No começo, tudo era poeira: a amizade que acompanhou Brasília crescer

Pedro Almeida*

Maria Elisa e Suely em frente ao Bloco D da 106 Sul: histórias compartilhadas

Por entre os galhos secos e tortuosos do Cerrado, em 1960, o Brasil ergueu uma nova capital. Àqueles que chegaram no início de tudo, restava abrir-se para o novo e construir laços numa cidade empoeirada e ainda quase deserta. Em um mesmo prédio residencial, cheio de desconhecidos vindos de várias regiões do país, havia a possibilidade de novas relações. Esse foi o caso de Suely de Roure e Maria Elisa Stracquadanio, que dividem o mesmo pilotis desde meados dos anos 1970.

Para a carioca Maria Elisa, 71 anos, servidora pública aposentada, a poeira da cidade e as lembranças se misturam. Com a mãe transferida para a nova capital em 1960, a então garota de 8 anos lembra-se de de ficar diante de um projeto de cidade tomado pelo solo escavado e com a terra vermelha à mostra. No primeiro dia, a família composta por mãe e filha se deparou com um apartamento vazio. A mudança havia se perdido no caminho. Com o frio que assolava a cidade naqueles invernos secos dos anos de 1970, e sem muitos prédios levantados para frear o vento, o jeito foi alojar-se dentro do guarda-roupas embutido para passar a noite. A história que se seguiu nos 62 anos de Brasília, contudo, se provaria muito mais calorosa.

No caso da paulista Suely, 74 anos, professora aposentada, o calor ardia. Moradora da Cidade Livre, local criado para abrigar os primeiros trabalhadores que erguiam Brasília e que viria a se tornar o atual Núcleo Bandeirante, ela conta que, por ser construída à base de madeira, a cidade sofria com incêndios. O temor pela segurança dos filhos tomou conta da mãe de Suely, que resolveu levar a família para Goiânia. Alguns anos se passaram até que ela decidisse dar uma segunda chance à nova capital. Desta vez, na 106 Sul, a mãe encontraria, na sombra atípica de um pinheiro, o frescor da tranquilidade e um local para que Suely chamasse de lar.

A menos de um ano da inauguração de Brasília, Juscelino Kubitschek havia cortado a fita do primeiro prédio residencial da cidade. O bloco “D”, da quadra 106 Sul, estava pronto e preparado para que, pouco mais de uma década depois, em 1975, a dupla desse início à duradoura amizade. Suely viu Maria Elisa constituir família e rememora os filhos e netos dela baterem à porta no dia de Cosme e Damião para pedir doces; Maria Elisa viu Suely crescer na Secretaria da Educação e, por amor, tomar a frente do prédio como síndica. Ela pode ser encontrada na pequena saleta ao lado da portaria. Maria Elisa diz, em tom de brincadeira, que o cargo é vitalício por direito.

Recepção

Quando juntas, as duas divagam por uma gama de assuntos de forma fluida. As questões da idade são intercaladas por memórias de 40 anos contadas com a precisão de quem as viveu semana passada. Das piadas aos assuntos sérios, não há meias palavras. A dupla detém, de cor, o mapa dos apartamentos distribuídos no corredor de cobogós. O nome dos moradores atuais, bem como os antigos, está na ponta da língua. Basta dizer os três dígitos referentes ao apartamento. Os moradores vindouros, claro, são muito bem-vindos e recebidos com flores e comida, como de costume.

A intimidade, porém, é uma via de mão dupla. Com quatro décadas de amizade, Maria Elisa e Suely têm abertura suficiente para discordarem, o que traz um tempero a mais nas reuniões de condomínio. Com posições, às vezes, distintas, as duas confessam que o clima pode esquentar. Tudo pelo bem comum, que é o amor pelo local que elas, há tanto, habitam. É claro que, do salão de reuniões para fora, reina o amor que elas construíram ao longo do tempo. Não demora e a dupla já está compartilhando confissões, pomadas e canjica mais uma vez.

 *Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira