Lia Zanotta Machado | Professora emérita de antropologia da UnB
Brasília: centro político ou cidade habitada e vivida? Centro político parece casar bem com os estereótipos de cidade planejada e fria, cidade monumental, sem esquinas e sem socialidade. A cidade vivida pode se tornar invisível para os que aqui não moram em Brasília. Brasília, ao longe e de longe, se torna sinônimo do governo instalado, amando-a ou rejeitando-a, sem sequer dar-se conta que o projeto se tornou uma cidade e já completa 62 anos. Planejada nas linhas de uma cruz concebida por Lucio Costa, é vista como o desenho de um avião, do alto da Torre de TV, com suas duas grandes asas: a Asa Norte e a Asa Sul unidas verticalmente pelo corpo do avião: o chamado Eixo Monumental.
O projeto original de Brasília previa apenas 500 mil habitantes no ano 2000. Incluía Plano Piloto e arredores que sequer previam moradia para os candangos e pioneiros que construíram Brasília. Muito menos que ela se constituiria em importante polo de atração de migração. Brasília possui uma população estimada total de 3.094.325 de habitantes, o que faz da capital a terceira maior cidade do país, atrás de São Paulo e Rio de Janeiro.
Nem cruz, nem avião. Para os habitantes de Brasília, as linhas que demarcam Brasília são hoje outras: são as linhas quadradas do contorno do Distrito Federal que abriga suas 33 regiões administrativas. O Quadrado, ou melhor: o Quadradinho é cantado em verso e prosa. O Quadradinho é afeto. É viver a cidade. “Derrubar muros e erguer pontes, unir pessoas e lugares” dentro do “quadradinho”, é um mote que antagoniza e enfrenta a anterior percepção de “Brasília como Plano Piloto cercado de cidades satélites”. É uma percepção abrangente, democrática, diante de uma cidade que cresce sem parar por todos os lados. Um “quadradinho todo num só” é possível?
A inovação é a tecla que articula a percepção de Brasília projeto e Brasília cidade que cresce e se expande. Os meios para isso seriam e devem ser muitos. Necessário mais infraestrutura urbana, mais transportes e cada vez mais cuidado com a sustentabilidade e meio-ambiente.
Contudo a construção da identificação dos brasilienses com Brasília como um todo, com o seu “quadrado”, se dá pelas redes de sociabilidade: redes de vizinhança que se constroem em espaços próximos entre oriundos de diversas origens do Nordeste ao Sudeste. E pelas redes sociais de parentes que atravessam e articulam diversas e diferentes regiões administrativas. Mas não só.
De quantas origens podemos falar sobre os habitantes de Brasília? Hoje, de acordo com as estimativas do IBGE, estamos pela primeira vez com maioria simples de nascidos na cidade versus migrantes. Em 2011, 51,8% eram migrantes. Brasília é formada por gente de todos os lugares, todas as idades e de muitas gerações. É uma mistura de sotaques e culturas do Nordeste, Sudeste, Norte e Sul do país e de estrangeiros.
A identificação abrangente de Brasília se vem fazendo, não só pelas redes sociais, mas pela produção cultural musical e artística, chamada incessantemente para pensar e construir a percepção de Brasília.
Renato Russo é pioneiro. Canta e conta Brasília em seus diversos pontos e locais, muito além do Plano Piloto. Produzir memória cultural significa em Brasília, produzir memórias e sotaques das mais diversas partes do Brasil, mas sempre com inovação. Seu Teodoro havia trazido o Boi-Bumbá do Maranhão para Sobradinho e para a Universidade de Brasília em 1962 e aí permanece. Chico Simões, trouxe o Mamulengo Presepada em 1985 para Taguatinga e Tico Magalhães trouxe para Brasília em 2004 o Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro (foto), que criou o mito do Calango Voador com personagens do Cerrado e do Planalto Central a partir do maracatu e o cavalo marinho de Pernambuco. Entre tantos outros. A inovação e a criatividade se impõem. Porque há que se mesclar, articular diversidades e produzir sincretismos.
O Clube do Choro busca introduzir a brasilidade e sua diversidade para Brasília. Foi fundado em 1977, mesmo ano que eu chegava em Brasília como professora de antropologia da UnB. Sua fundação se deu na casa da premiada flautista e também professora da UnB, Odete Ernest Dias, tornando-se seu primeiro presidente o citarista Avena de Castro. Em 1993, foram retomadas as atividades do Clube do Choro, conseguindo novo espaço projetado para o Clube e criada a Escola Brasileira do Choro. Hoje, há já 15 anos o grupo Samba Urgente nascido dessa escola, inova e afirma que a cidade de Brasília é muito mais. Não é uma cidade de político. É uma cidade vivida, solidária, vivaz, esperançosa e construtora do futuro. Uma cidade síntese cultural como já dizia meu amigo e grande antropólogo Roque Laraia.