Pedro Almeida*
Para afastar o tédio e quebrar o silêncio que ecoava na superquadra, da 105 Norte, durante a pandemia, a comunidade transformou o passeio público em palco musical e as janelas dos prédios, em camarotes. O projeto Música Solidária, concebido pelo prefeito da quadra, impactou e uniu os moradores, além de colaborar com os músicos locais.
Jeann Cunha, 35 anos, nasceu e se criou na quadra 105 da Asa Norte. Ao longo dos anos, nas andanças como morador de Brasília, se encantou com o trabalho produzido nas quadras que contavam com uma prefeitura comunitária ativa. O zelo e o senso de comunidade eram evidentes. A quadra em que morava, porém, não era uma delas. Determinado a mudar este paradigma, Jeann resolveu liderar o movimento de reativação da prefeitura da 105 Norte. À frente do posto, ele começou a agitar o espaço com eventos e arte. O amor pela superquadra natal se alinhou ao trabalho de agente sociocultural que ele já desempenhava fora dali.
O trabalho foi um sucesso. Os primeiros projetos deram resultados, mas foram seguidos de um hiato gerado pela pandemia, que havia acabado de chegar em 2020. Unir os moradores de uma quadra em tempos de distanciamento era uma tarefa árdua, mas não impossível. Sem desistir, Jeann reuniu amigos da cena cultural brasiliense e desenvolveu o projeto Música Solidária. A ideia consistia em fazer serenatas musicais para os moradores. Sem sair de casa, bastava abrir a janela e aproveitar a música do conforto do lar. Um primeiro evento-teste foi feito, e o resultado foi positivo.
O prefeito logo contatou os músicos que conhecia para dar corpo ao projeto. Não bastava simplesmente tocar uma ou duas músicas, Jeann queria realizar um verdadeiro festival. Os prédios receberam, um por vez, os shows particulares de vários gêneros musicais distintos. Os moradores ganhavam o alento da música em tempos tão difíceis e davam, em troca, uma doação em dinheiro para os músicos locais e suprimentos para instituições de caridade.
Todos ganhavam. Os residentes, com uma forma de espairecer e acalmar o coração; os músicos, que estavam parados, arrecadavam recursos; por fim, as pessoas carentes ganhavam mais um aliado na luta pela sobrevivência. Acima de tudo, o mosaico de bustos à beira das janelas, como uma coleção de namoradeiras, afastou a solidão e provou que, ainda que no pior dos tempos, o senso de comunidade estava presente na 105 Norte.
Foi justamente a ausência de um clima comunitário que assustou Alessandra Lima, 38. A carioca designer de interiores chegou a Brasília há aproximadamente quatro anos. O marido militar foi transferido para a capital e trouxe a família. Criada no Rio de Janeiro, ela conta que o clima de união entre os moradores do bairro em que cresceu fazia jus à alcunha de “comunidade”. O calor humano, típico do carioca, faz parte da vida de Alessandra, que se confessa “faladora”. O que ela encontrou por aqui, contudo, foi diferente.
A calmaria da 105 Norte acabou por ser propícia para a criação dos dois filhos pequenos, mas deixou uma lacuna no desejo de se relacionar com os vizinhos. Em 2020, a vontade de estreitar laços teria de ser adiada ainda mais tempo. O convite de Jeann Lucas à janela, por sorte, tratou de resolver o problema. Alessandra conta que, ao escancarar os vidros da janela, reviveu o clima que a marcou na infância e se emocionou. Sentiu-se ali, pela primeira vez, parte da comunidade. Ela faz questão de apontar a importância das artes e, em especial, da música, no enfrentamento da pandemia; foi o que a salvou, de acordo com ela. Hoje, ela se sente mais próxima dos vizinhos e admira o empenho de Jeann em transformar a superquadra em um grande lar.
O projeto Música Solidária, mesmo que não tivesse essa grande ambição de início, tornou-se uma forte alternativa de captação de recursos para o setor musical. Iniciada na 105 Norte, a ideia foi potente a ponto de tomar dimensões maiores do que o local em que nasceu. A iniciativa foi replicada em 10 quadras e engajou 70 atrações musicais brasilienses.
Pedro de Castro, 28, foi um dos músicos participantes. No Dia das Mães de 2020, ele estreou no projeto. Hoje, serenatas já se tornaram parte do repertório do saxofonista. Ao perceber o impacto do projeto, ele investiu em equipamento próprio para poder oferecer o serviço. Ele relata, também, que tem retornos positivos ainda hoje da divulgação que conseguiu à época.
Não há, afinal, vida sem música. Ainda que o mundo pare e as pessoas se recolham, a 105 Norte provou que a música pode ir a quem não pode ir ao encontro dela. E onde há música, há calor humano, há vida e história sendo escrita. Há, enfim, comunidade.
*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira