Confraria Noroeste leva afeto a quem se sente sozinho na pandemia

Renata Nagashima

Vizinhos do Noroeste
Luana Batista com o cão João e Paula Navarro ( loira ). As mulheres fazem parte de um grupo que tem o objetivo de aproximar os vizinhos do Noroeste. | Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Durante a quarentena, a internet e as redes sociais trouxeram muitos benefícios para uma grande parte da população. Enquanto surgiam possibilidades para o trabalho, de forma remota, as aulas on-line, de adotar novas estratégias de comércio, manter relacionamentos afetivos e até desfrutar do lazer e da cultura foi um desafio. Smartphones e computadores intermediaram um maior contato entre as pessoas durante a pandemia e isso se potencializou para que certas rotinas fossem mantidas.

Nesse período, a tecnologia tem sido fundamental, não só para passar o tempo navegando em redes sociais e em streaming, mas também — e principalmente — para dar continuidade às interações humanas. Grupos de mensagem instantânea uniram, ainda mais, amigos e desconhecidos para minimizar o isolamento.

O grupo Confraria Noroeste veio para trazer afeto para aqueles que se sentiam sozinhos no Noroeste durante a pandemia. A Confraria acabou se tornando um local para fortalecimentos dos laços de amizades e uma rede de apoio entre os vizinhos.

Uma das responsáveis pela criação e administração do grupo é a economista Ana Luiza Champloni, 35 anos. Ela conta que o espaço funciona como uma rede de apoio. “Durante a pandemia, as pessoas estavam muito sozinhas, então o grupo foi um escape. Muitas amizades se formaram e é maravilhoso ver esse laço e bom convívio entre os vizinhos, que vai além de reclamações ou ‘bom dia’ e ‘boa tarde’, quando se esbarram em algum lugar”, afirma.

Ana Paula se mudou para o Noroeste. em 2015, e entrou em um grupo chamado “Girafonas”, onde conheceu as primeiras amigas do bairro. “O grupo foi crescendo e era muito legal, porque acabamos nos aproximando, fazíamos encontros e piqueniques juntas”, recorda. No entanto, com a pandemia, as conversas paralelas aumentaram e Ana Paula teve a ideia de criar um novo grupo apenas para conversas e trocas de vivências. Assim nasceu a Confraria.

“A gente troca muita ideia, indicação e tem muita ajuda. Esse é um canal importante para as pessoas se comunicarem, ainda mais durante um período em que ficavam muito sozinhas em casa”, explica. Por causa da quarentena, muitas mulheres se ofereciam para fazer compras para as pessoas que corriam mais riscos ao saírem de casa. “Amizades surgiram e contribuiu para fortalecer os laços entre as moradoras. Certa vez, uma moça fez aniversário e estava sozinha em casa, mas, mesmo a distância, conseguimos fazê-la se sentir amada. E é a razão de tudo isso”, acrescenta a economista.

Durante as datas comemorativas, as mulheres do grupo organizaram festas de Páscoa e junina on-line, com tudo que se tem direito. Em junho, um trio elétrico com música caipira e quadrilha de dança desfilou entre os prédios do Noroeste. “Foi uma ideia sensacional e ajudou para que, aos poucos, a gente fosse sentindo que as coisas estavam voltando ao normal”, completa.

Portuguesa, Paula Navarro, 50, mora no Noroeste desde 2014 e ela conta que o grupo ajudou bastante a aproximar as pessoas. “O grupo da confraria é basicamente de conversa e ajuda. É interessante a amizade entre elas, porque o que precisar, elas ajudam e você consegue nesse grupo. Fomos criando amizade e nos engajando para ajudar o próximo também”, detalha a empresária.

Ela destaca que iniciativas como essa no bairro resgata o tempo antigo de Brasília, em que as pessoas viviam em comunidade, na porta das casas e nos pilotis dos blocos. “As pessoas de fato convivem entre os vizinhos, as crianças brincam umas com as outras, o pessoal marca eventos e piqueniques, hoje em dia isso é raro”, diz Paula.

Busca

A servidora pública Luana Vieira Batista, 37, hoje é muito grata por essa rede de apoio que encontrou nos vizinhos. João, seu cachorro de estimação fugiu e, graças ao empenho e ajuda que recebeu dos moradores, ele foi encontrado seis dias depois. “Eu tenho certeza que se não fosse essa ajuda, nunca teria encontrado o João”, conta.

Em março ela estava passeando com o animalzinho quando, assustado por causa de outros cachorros, ele fugiu e desapareceu. “Foi desesperador”, recorda Luana. Após o episódio, ela começou a divulgar a foto no Instagram e no grupo do condomínio onde mora. “Os meus vizinhos começaram a mandar para outros grupos do Noroeste e começou uma corrente enorme”, conta. Os moradores do bairro se organizaram para ajudar a servidora pública a encontrar João.

“Eu fiquei chocada com toda essa rede de apoio. Nunca tinha feito parte de grupos de vizinhos e fiquei surpresa e muito comovida com a união e a rede de apoio que os vizinhos formaram. Aqui o pessoal tem esse diferencial, as pessoas procuram se unir e se ajudar”, diz Luana. Agora, os vizinhos querem combinar um piquenique para conhecer o João, que ficou conhecido.

Amizade além do tempo: companheirismo e respeito que atravessa décadas

Edis Henrique Peres

Amizade além do tempo
Kátia Kouzak (D) e Vera Hildebrand: momentos de alegria e de tristeza. | Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Uma amizade que viu Brasília nascer e que esteve presente nos momentos mais alegres e nos mais solitários e desesperançosos uma da outra. Assim se define o vínculo de quase 62 anos entre Vera Hildebrand Pires da Cunha, 75 anos, e Kátia Abudakir Kouzak, 76. As duas se conheceram na adolescência, quando chegaram à capital do país, inaugurada no mesmo ano. Desde então, o laço segue firme e inquebrantável entre as duas amigas, que são “praticamente irmãs”. Religiosamente, aos domingos, Vera deixa sua casa na Asa Norte, passa na padaria, e vai para o Lago Sul, visitar Kátia.

“Chamamos de café da manhã da Vera”, conta Kátia, aos risos, sobre o banquete que a amiga traz da panificadora. Na mesa de varanda, elas montam a refeição e batem papo. O hábito de compartilhar lanches entre as duas é antigo, e vem ainda da juventude, na época em que estudavam juntas na Comissão de Administração do Sistema Educacional de Brasília (Caseb). “A gente comia a mesma coisa no intervalo: um sonho e um Grapette (refrigerante de uva)”, lembra Kátia. “Esse era o nosso lanche das 10h”, acrescenta.

Vera foi a primeira das duas a chegar em Brasília. “Dia 13 de abril de 1960, tinha 13 anos, era uma quarta-feira, quando vim para cá. Fiquei encantada, porque Brasília estava lotada de barraquinhas de acampamento”, conta. Já Kátia chegou dois meses depois, em 12 de julho do mesmo ano. “Na época morávamos na SQS 107, uma no Bloco A e outra no Bloco D. E íamos juntas para o colégio. A amizade começou porque estudávamos na mesma sala”, diz Vera.

Para as duas amigas, as lembranças ainda são vívidas e enquanto relatam as memórias, elas sorriem com o revisitar dos dias de infância. “Aproveitamos muito a nossa juventude”, salienta Vera, que recorda do tratamento que realizou no hospital Sarah Kubitschek. “Como nasci com paralisia cerebral, eu fiz acompanhamento por muitos anos no hospital, comecei por volta dos 14 e segui até uns 20 anos, ia cerca de três vezes por semana”, conta.

Kátia revela que acompanhava a amiga nessas consultas até que foi proibida. “Brincava tanto (no hospital), assanhava os velhinhos, jogava peteca e fazia de tudo. Até que fui proibida de ir”, conta, entre risos. “A Vera chegou para mim nesse dia toda triste, dizendo: oh, Kátia, a direção não quer que você vá mais não”, diz.

O que mantém o laço até os dias de hoje, é a “amizade pura”. “Geralmente as pessoas têm algum interesse, quer alguma coisa. Mas a nossa amizade dura tanto tempo, porque ela é constante. E na hora que a gente precisar, sabemos que podemos contar uma com a outra”, ressalta Vera. Kátia acrescenta que as duas buscam simplesmente a companhia uma da outra, pois é isso que as fazem bem.

Amor e admiração

Ao longo das seis décadas de companheirismo entre Kátia e Vera, as duas passaram por momentos marcantes. Mesmo em cursos de graduação diferentes, Kátia estudando ciências contábeis, e Vera, psicologia, o vínculo se manteve. Kátia garante que a união entre as duas vem de um pacto de muito amor e admiração. “Não temos o mesmo sangue, mas somos que nem irmãs. E olha que somos bem diferentes na personalidade”, diz.

No espírito de companheirismo, quando Kátia estava no hospital para ganhar o primeiro filho, Vera foi chamada, de madrugada, para acompanhar a amiga. “Eu era muito jovem, tinha 25 anos, era o meu primeiro filho, me sentia despreparada. Estava assustada e a Vera era a pessoa que eu queria do meu lado para me acolher, porque eu estava perdida”, detalha. Vera não só acompanhou o parto de Kátia como é madrinha do filho dela, Solon Kouzak.

Mas além dos momentos de alegria, as duas são um suporte nos desafios e dificuldades. Kátia lembra que quando o marido ficou muito doente, Vera ia ao hospital visitá-la. “Meu esposo ficou um ano e quatro meses muito debilitado. Nesses grandes momentos, nas coisas que mudaram a nossa vida, ela (Vera) estava do meu lado. Quando meu marido estava doente e depois quando ele partiu eu enfrentei todo tipo de problema, com sócio e doença — fiquei cardíaca —, e foi a Vera que me apoiou”, se emociona Kátia.

Vera também enfrentou a perda do esposo e conseguiu superar o luto graças a ajuda da amiga. “Meu marido teve câncer de pulmão, ficou três meses muito ruim e depois partiu. Agora faz quatro anos, o tempo passa muito rápido. Quando ele foi embora, foi a Kátia que me lembrava que a vida não acabou, que ele não ia querer que a minha vida parasse. Em razão disso, a gente ficou mais unida. Foram esses momentos, os essenciais e que fizeram toda a diferença”, avalia Vera.

“Eu vi Brasília nascer”

Para Kátia, foi “puro destino” que viesse para a capital e encontrasse aqui uma amizade de uma vida. “Meu tio era militar da Aeronáutica e eu queria estudar na capital federal. Sou paulista e primeiro fui morar no Rio de Janeiro, que era a capital do país, com os meus tios. Depois, meu tio foi transferido para Brasília e eu vim com eles, como meus tutores”, afirma.

Já Vera veio do Rio de Janeiro, porque o pai era da Fundação Educacional e foi o responsável por trazer os professores do país e criar o modelo de ensino da capital. “Quando eu cheguei, Brasília estava cheia de barraquinhas e todo mundo tinha no carro um adesivo escrito ‘Eu vi Brasília nascer’. Nas noites de sábado, a gente descia para baixo dos prédios com violão e vitrolas e ficava cantando e dançando. Lembro até hoje, da festa da inauguração (da cidade), que me marcou muito, em que fizeram uma dança ao lado das conchas (do Senado e da Câmara) e soltaram tecidos que chegavam quase até embaixo. Eu me lembro muito disso”, afirma. Vera arremata: “Na próxima encarnação, já pedi para nascer aqui, em Brasília”.