Severino Francisco
Arquiteto e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Holanda chegou a Brasília em 1962, em um Fusquinha, envolvido nas nuvens de poeira. Teve a impressão de entrar em uma cidade intergaláctica. Nunca mais parou de pesquisar a cidade. Os elogios de Frederico a Brasília têm credibilidade, porque ele é um crítico agudo do que chama espaços de exceção, espaços que isolam funções da cidade em Brasília. E, nesta entrevista, ele mostra como Brasília é o modernismo transformado em cidade, espicaça os espaços de exceção, sustenta que o Itamaraty é o prédio mais importante da história da arquitetura e fala do que é moderno e do que é eterno no desenho de Lucio Costa.
Brasília é o modernismo transformado em cidade?
Sim, mas Brasília não é a primeira. Chandigard, projetada por Le Corbusier, na Índia, é de um pouco antes. Mas Corbusier brigou com os indianos, a cidade projetada não é exatamente a que está lá. Eu diria que Brasília é a primeira grande materialização inteira, exaustiva e completa do modernismo transformado em cidade. Os europeus e os norte-americanos têm uma dor de cotovelo do cão por causa disso. Nunca fizeram nada parecido.
O título de um livro seu é Brasília cidade moderna, cidade eterna. O que é moderno e o que é eterno em Brasília?
É um título provocativo, falam que Brasília é a cópia, escarrada e cuspida, da Carta de Atenas, manifesto da arquitetura modernista internacional. Sim, Brasília tem muita coisa da Carta de Atenas, de Le Corbusier: a unidade de vizinhança, os equipamentos públicos próximos da casa, a separação radical do fluxo de veículos da área residencial e a farta disponibilidade de área verde. Tudo está lá. Mas quando Lucio Costa cria a Esplanada dos Ministérios e as quatro escalas (monumental, residencial, a gregária e a bucólica), ele se afasta dos princípios da Carta. A famosa escala monumental era um anátema para os arquitetos modernos porque eles equacionavam esse conceito com fascismo e nazismo. Lucio Costa manda às favas esse tipo de preocupação e cria um espaço monumental por excelência, simbólico, que representa não só a ideia de capital, mas a da própria cidade. A gente pode apreciar esse cartão-postal do deck superior da plataforma da Rodoviária ou do mirante da Torre de TV. É isso que faz o link com o eterno.
O senhor formulou o conceito de espaço de exceção para descrever Brasília. Mas, ao longo do tempo, parece que a sua visão se relativizou…
Criei esse conceito durante a minha tese de doutorado. É a ideia que Brasília tem um espaço isolado para as funções da sociedade: a política, a cultura, a moradia. A Esplanada é um penduricalho na cidade, com vista privilegiada pela plataforma da Rodoviária. Não tem a cidade ao redor, como Washington ou o Champs-Élysées. É espaço livre, prédios, galpões e um pouco de embaixadas. A Esplanada é o espaço de exceção por excelência. E por que isso é criticável do ponto de vista ético? Porque isolo um determinado conjunto de práticas e conjuntos sociais que não favorece uma manifestação urbana. O que a gente vê é que tem uma apropriação subversiva nas margens pelo comércio ambulante que “macula” o espaço de exceção, pelo menos nos cinco dias úteis da semana. A minha crítica é do ponto de vista da urbanidade desejável.
Que espaços cumprem essa função?
Gosto de citar a Vila Planalto e o bairro de Copacabana. Você tem uma diversidade de classes sociais, trabalhadores manuais, classe média. É completa no sentido da urbanidade. Você tem toda a diversidade social em um bairro como tem na cidade. No espaço de exceção, só tem barnabé, alguma coisa de cultura no Museu, no Teatro Nacional defunto, nos rituais religiosos na Catedral Metropolitana. Ponto, acabou. Exceto, a pequeníssima subversão dos vendedores ambulantes.
E qual o aspecto que você julga importante no projeto de Lucio Costa para a escala monumental?
Ele resgata a dimensão dos espaços que os estetas chamam do sublime, monumental, é algo que causa assombro. Gosto muito do livro A arte de viajar, do Alain Botton, em que o autor fala sobre o espanto das pessoas em relação aos espaços amplos. Não cita Brasília; cita Versailles, Wasghinton, a paisagem de gelo dos polos, as areias do deserto, as montanhas nevadas, diante das quais não nos sentimos diminuídos ou massacrados, mas, sim, impelidos a realizar o melhor de nós. Isso está na base da explicação do nosso encanto ou assombro ou deleite com os espaços monumentais. Um espaço como a Esplanada dos Ministérios retira da cidade a vitalidade dos espaços públicos. Mas tem o outro lado, a monumentalidade nos causa deslumbramento, respeito, pasmo. O exemplo mais impressionante, que deu um nó em minha cabeça, é o de Teothioacán, no México. A chamada Avenida dos Mortos, construída 300 anos antes de Cristo, é extremamente parecida com a Esplanada dos Ministérios. O centro abriga palácios, templos e edifícios governamentais. Quando bota o pé, você arrepia e chora. É esse arrepio que a gente sente na Esplanada dos Ministérios.
Em discurso, ao receber o título de professor da UnB, você afirmou que o Itamaraty era o prédio mais importante da história da arquitetura. Gostaria de rever a opinião?
Não renego nada, repito o que disse em todos os lugares por onde passo. Para mim, o Itamaraty é edifício mais importante da história da arquitetura, é uma espécie de síntese de todos os aspectos. Primeiro, é um prédio ímpar, não só em relação aos palácios de Brasília, não só pelo concreto aparente. Como ocorre no Palácio do Alvorada, é uma mescla do Oscar dionisíaco com o apolíneo. Tem uma variedade estonteante de espaços no mesmo edifício. Quando você entra no Itamaraty passa pelo vestíbulo, sobe aquela escada solta no ar, passa por um jogo de contrastes que eu nunca vi. Eu me meto a dizer isso porque andei um bocado o planeta. Não conheço um edifício que te surpreenda a cada cinco metros do percurso. Tudo vem junto com uma edificação absolutamente simétrico, com quatro fachadas idênticas, rigorosamente moduladas por intercolunas, erigidas em uma planta quadrada. Por isso, digo que é um edifício clássico, faz esses resgates todos na tradição da arquitetura. O Palácio do Itamaraty é o Parthenon. Ao mesmo tempo, com inovações. Tem uma varanda, que é um espaço tradicional de socialização. Só que Oscar bota a varanda no terceiro piso, com um foco luminoso sobre o jardim de Burle Marx.
O que o caso das mudanças realizadas na Feira Torre de TV exemplificam?
Exemplifica uma visão de cidade extremamente perversa. A cidade se produz pelo que Raquel Solnik chama guerra dos lugares. Foi uma batalha perdida porque, assim como você ia com os seus filhos, a gente ia com os nossos. Os meninos soltando pipa, olhando areomodelo, comendo milho, comprando artesanato. A Feira da Torre se transformou em uma autêntica festa semanal. Fizemos uma enquete, a maioria dos frequentadores vinha das cidades-satélites e subia do Parque da Cidade para a Torre de TV. Eu tenho fotos. Era uma multidão. Essa festa surge muito sutilmente em função do mirante e das pessoas que sobem para ver a torre. Chamam o artesanato, os habitantes, as atividades complementares, as comidinhas regionais. É a sinergia da urbanidade, que se alimenta da diversidade de práticas sociais naquele lugar. Tem o lazer ativo e passivo. Os aeromodelos, as pipas e o patinete. E tem o lazer contemplativo, que é simplesmente olhar o cartão-postal, em uma das vistas mais privilegiadas de Brasília. Era isso junto que fazia o sucesso daquele lugar. E, mais importante que tudo isso, quando fizemos uma enquete na torre qual foi a principal razão? simplesmente ver gente e encontrar pessoas.
E por que acabaram com a Feira da Torre antiga?
É uma visão esteticista e equivocada. O principal argumento é que ela maculava a percepção do monumento projetado por Lucio Costa. É estúpida, não prejudicava coisa nenhuma. A feira do artesanato se beneficiava de toda aquela sinergia. O meu saudoso amigo Alfredo Gastal fez declarações de que a mudança da feira tinha o apoio do Iphan, porque maculava o monumento. Enquete feita por Gabriela Tenório com os feirantes mostrou que, de todos os problemas levantados pelos feirantes, nenhum estava relacionado à localização.
Qual a solução urbanística mais feliz de Brasília?
Eu acho que são as superquadras. Tem uma distinção que é importante fazer e a literatura quase não faz. As superquadras brasileiras não são cópias das superquadras corbusianas. As de Lucio Costa têm 80% de espaços verdes, têm escolas para os moradores. Apesar dessa grande quantidade de espaços verdes, tem uma certa continuidade espacial. Além disso, os prédios de Lucio têm seis andares; os de Le Corbusier têm 16. Na superquadra de Lucio Costa, você sente esse aspecto agradável de estar em um espaço aberto na sua vida cotidiana. Isso faz com que sejam as superquadras sejam extremamente apreciadas pela população. Dos meus 50 anos de Brasília, moramos de 1972 a 1976 e de 1980 a 2000, em superquadra, até nos exilarmos em um condomínio em Sobradinho. A socialização, o aproveitamento do espaço livre dos adultos e das crianças são muito apreciados. O James Holston escreveu no livro A cidade modernista que, inadaptada às superquadras, os brasilienses se mudaram para paisagens tradicionais, que são o Lago Sul e o Lago Norte. É um delírio completo. O centro da sociedade civil em Brasília que é péssimo. Quem pode aprovar aquele monte de viaduto, as diferenças de níveis, a situação dos pedestres obrigados a correrem de carros passando a mais de 80km por hora? É um horror. O valor do urbanismo de Brasília está na área residencial e no sublime da escala monumental.