Unidas pela fé, vizinhas promovem o projeto Novena Natalina

Edis Henrique Peres

Ismenia e Regina durante apresentação na 213 Sul
Ismenia e Regina durante apresentação na 213 Sul | Foto: Arquivo pessoal

A história de mais de 22 anos de amizade entre melhores amigas nasceu aos poucos em encontros, passeios e eventos religiosos. “Sem pretensões e sem que a gente notasse: quando percebemos, estávamos nesta intimidade danada”, descreve Regina Cintra, 69 anos, moradora da 314 Sul. O primeiro contato entre ela e Ismenia Maria Magalhães, 74, residente da 213 Sul, ocorreu no Santuário Nossa Senhora do Carmo, ainda na década de 1990, quando Regina foi buscar uma das filhas na catequese.

“A Ismenia frequentava a missa com violão, ensinando as crianças a tocar. Dessa forma, aos poucos fui conhecendo ela enquanto eu participava da celebração. Depois, fui convidada para encontros da igreja e de lá em diante começamos a fazer retiros e cursos juntas”, lembra. O vínculo, ao longo dos anos, se fortaleceu, motivado pelo mesmo motivo do primeiro encontro: a fé. “A Ismenia é responsável por uma Novena de Natal no bloco do prédio dela, e ela me chamou para participar. As novenas são feitas, a cada dia, na casa de um vizinho e isso estreitou muito as nossas relações, porque ao fim era realizado um jantar e sempre tinha muita conversa”, afirma.

Mesmo morando em outra quadra, Regina foi muito bem recebida pelos condôminos. “Eu me auto-intitulava intrusa, porque tinha o benefício de usufruir o que a quadra deles ofereciam. E com toda essa relação, o meu contato com a Ismenia se aproximou e criamos um vínculo muito forte. Não somente entre nós, mas a minha família toda com a família dela. Virou uma coisa bem misturada, sólida e verdadeira”, garante.

A moradora do 314 confessa: “Ismenia é minha melhor amiga. Nem tenho palavras para descrever essa relação. Mas posso te dizer que nunca tive uma amizade tão profunda, nem na época de minha adolescência, como tenho hoje com a Ismenia. Hoje, inclusive, sou madrinha de casamento da filha dela. Nos aniversários estamos juntas. É uma relação que não foi programada, foi natural, quando acordamos, ela já estava ali, tinha acontecido. É muito verdadeira”.

Solidariedade

O projeto de Novena Natalina, organizado por Ismenia, acontece há mais de 30 anos na quadra 213, no Bloco A, local em que reside. “Sou muito religiosa e sempre achei que uma forma de viver melhor seria rezando. Isso ajudou muito na união do grupo de moradores”, conta. O projeto começou de forma simples, com um terço que era rezado com as crianças, com a participação das mães que acompanhavam os filhos.

“Depois, isso se transformou em uma Novena de Natal. No último dia da Novena fazemos uma ceia, em que cada um leva um prato. É uma comemoração muito especial, que tem de tudo: doces, frutas, peru. É a união de todos os moradores”, garante Ismenia. A comemoração era enfeitada com ares de natal e os bebês nascidos naquele ano representavam, nas peças encenadas pelas crianças, o menino Jesus em seu nascimento. “Essa coisa de evangelizar realmente sempre foi algo nato meu”, complementa Ismenia.

Contudo, muito além de apenas um festejo religioso, o grupo se preocupa em promover ações concretas. Em cada novena o grupo promove doações para entregar às pessoas vulneráveis. “A única coisa que atrapalhou as nossas novenas foi a pandemia. Mas neste ano espero que a Novena possa voltar a acontecer de novo, quero muito retomar as nossas atividades”, reforça Ismenia.

As festas natalinas tinham até a presença do Papai Noel
As festas natalinas tinham até a presença do Papai Noel | Foto: Arquivo pessoal

Um céu aquarela

Regina foi encontrar a melhor amiga a mais de 1.200 km da cidade natal, sob um céu colorido que nem acreditava que existia. Nascida em Vitória, ela chegou em 1974 à capital do país. “A maior parte da minha família continua lá, mas aqui eu recebi muito acolhimento”, garante.

Ismenia, contudo, desembarcou na capital um pouco antes. “Minha família era de Formosa, cheguei aqui em 1971. Desde então fiquei por aqui e morei em vários locais. Na 213 Sul, moro há 35 anos. Praticamente vi muito do progresso que Brasília trouxe, principalmente a singularidade da capital”, assegura a moradora.

A particularidade é o ponto em comum de admiração também de Regina, que se formou em decoração de interiores. “Brasília sempre me atraiu muito pela arquitetura. Ficava pensando no lugar que eu vivia que era quase surreal”, afirma.

A beleza natural do Planalto Central era outro encanto para Regina. “Gostava de fazer pinturas, mas quando via aqueles céus coloridos, com laranja, lilás e tantas cores eu pensava que aquilo era uma mentira, que não tinha como um céu ser daquela cor. Contudo, quando cheguei aqui, descobri que isso existia. Descobri que isso era possível somente aqui em Brasília”, finaliza.

Na quadra modelo, uma amizade que atravessa décadas

Felicidade compartilhada
Vizinhas de Superquadra, Rosa Regina Faleiros (direita) e Noêmia Vasconcelos | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Na quadra mais antiga de Brasília, desenhada por Oscar Niemeyer e inaugurada em 1960, se forjou uma amizade que dura mais de 20 anos e percorreu continentes. Entre viagens, almoços e cafezinhos, Rosa Regina Faleiros, 70 anos, e a amiga Noêmia Vasconcelos Victor, 79, compartilham risadas, desabafos e espantam a solidão. O laço entre as duas nasceu na superquadra 108 Sul, quando Noêmia se mudou para o mesmo bloco de Rosa Regina, em 2000.

“Fui morar na 108 e a Regina era síndica, então tínhamos contato contínuo. Aos poucos, começamos a sair juntas para lanchar e a amizade foi surgindo muito naturalmente. Depois, precisei mudar do Bloco I para o F, mas a amizade permaneceu. Nós duas saímos para comemorar aniversários, falar sobre a família, dizer como estão os netos”, detalha Noêmia.

A aposentada revela que as amigas chegaram a visitar o exterior. “Um dos nossos melhores programas foi uma viagem que fizemos para Portugal e Espanha. Começamos (o tour) em Lisboa, e fomos em direção à Espanha, parando em diversos pontos. Minha filha foi junto porque ela dirige no exterior. Foi uma viagem maravilhosa, a gente curtiu muito. E tinha outras pessoas da quadra 108 na viagem que também são amigas nossas”, relembra.

Segundo ela, o vínculo também é um auxílio nas horas de necessidade. “Regina é muito comunicativa e prestativa. Ela gosta de dirigir para qualquer lugar, já eu não gosto de pegar o carro. Então ela me ajuda quando preciso. Uma amizade boa assim é muito saudável, porque os nossos filhos já se casaram e tendo esse vínculo a gente sai do isolamento e se diverte. Contar com outras pessoas para passear e não ficar só é muito importante”, avalia.

Passeio de amigas

Rosa Regina assegura que o laço entre as duas se fortaleceu “pelo que havia em comum” entre as aposentadas. “Ela era viúva e eu era divorciada. Como ficávamos muito só, começamos a sair para tomar um cafezinho, um chopp e para pegar um cinema. Fizemos uma amizade entre três amigas, mas a terceira do grupo voltou para o Rio de Janeiro e agora quem mantêm esse vínculo somos eu e ela. A questão é que a pandemia atrapalhou muito os nossos passeios. Antes, às sexta-feiras ou aos sábados, a gente almoçava fora, porque gostamos muito de feijoada”, salienta.

Depois do prato típico, as duas amigas paravam no Praliné Confeitaria Suíça, tomavam sorvete e visitavam o Casa Park. “Isso já era por volta de 16h, a gente dava uma olhadinha nas lojas, e depois ia para o cinema. E mesmo após a sessão, ainda tínhamos pique para ir comer uma pizza e tomar um chopinho. Eram dias muito agradáveis que dava para colocar toda a conversa em dia. Agora, estamos voltando a nos encontrar aos poucos. Almoçando no comércio local, comendo um lanche, saindo de vez em quando. Nada igual a programação que fazíamos antes, devido ao risco do vírus”, pondera.

As viagens ao exterior não foram as únicas feitas por Noêmia e Rosa Regina: as amigas também visitaram Aracaju, Rio de Janeiro e São Paulo. “A gente mora sozinha e os filhos se casaram, então, querendo ou não, surge um pouquinho de solidão. Essa convivência supre esse espaço. A nossa amizade serve como desabafo, contamos dos problemas, do que está acontecendo na nossa vida, das nossas mágoas. Colocamos para fora os nossos problemas com alguém que a gente confia”, salienta.

Amor pelo DF

Além das outras semelhanças, Noêmia e Rosa Regina compartilham uma mesma paixão: o amor pela capital do país. Rosa Regina chegou à capital em 1962, quando tinha 10 anos. “Meu pai era servidor público do Ministério de Minas e Energia e morávamos em São João Del-Rei, em Minas Gerais. Na época, o que chamava os servidores para a capital era o apartamento funcional, que os moradores recebiam ao vim para cá. Quando chegamos, recebemos o apartamento na 108 e eu passei minha infância na quadra, estudava na Escola Classe, visitava o Clube Vizinhança para lazer e frequentava a Igrejinha. Para a gente era uma benção viver nessa quadra, porque tudo era próximo e nessa época ninguém tinha carro”, lembra.

Os anos se passaram e, com o casamento, Rosa Regina deixou o lugar em que formou a maior parte das memórias da infância. “Sempre quis voltar para 108, por isso, quando tive oportunidade, em 1995, eu financiei um apartamento no Bloco I. Aqui (na quadra 108) fui síndica durante 12 anos, deixei o cargo há quatro anos”, informa. Rosa Regina acrescenta: “Falo com muito orgulho que sou moradora de Brasília, porque não existe cidade igual. Esse traçado da capital não existe em outro lugar do mundo. Para mim, é a cidade mais bonita, principalmente a vista aérea, que a gente vê nos filmes e na televisão, com tanta árvore e tanto verde. Embora tenha nascido em Minas, minha vida se formou aqui, em Brasília”.

Noêmia compartilha da mesma opinião da amiga. “Conheço muitas cidades, mas Brasília é muito moderna e organizada, e gosto muito daqui principalmente pela arborização do Plano Piloto. Tenho um carinho muito grande pela cidade porque foi onde cresci profissionalmente”, finaliza.

Escoteiros de Brasília se conectam com a comunidade

Edis Henrique Peres

Arquivo Pessoal
O grupo de escoteiros Lis do Lago tem uma grande atuação social na região | Foto: Arquivo pessoal

O grupo se organiza, entre a vegetação, para montar o acampamento. Os mais velhos orientam os “lobinhos” sobre como dividir as tarefas, a maneira correta de acender a fogueira e estruturar as barracas. Os escoteiros, além de aprenderem sobre como lidar com situações de perigo e sobrevivência, também são instruídos com ensinamentos e valores como lealdade e ajuda ao próximo. O Grupo Escoteiro Lis do Lago nasceu em Brasília há 38 anos e desde então tem uma história de atuação com os moradores do Lago Norte e de diversas regiões administrativas da capital. Rafael Werneburg começou a prática do escotismo aos 10 anos de idade, e hoje, aos 26 anos, o morador do Lago Norte atua como voluntário, auxiliando a nova geração de escoteiros da capital federal.

“Minha mãe tinha uma amiga que trabalhava no grupo de escoteiros e ela queria apresentar o movimento para mim, nessa época, ainda nem morávamos no Lago Norte”, conta. Rafael afirma que fez muitos amigos ao longo do período que esteve no grupo de escoteiros. “Muitos que tenho afinidade até hoje. São vínculos que vão se construindo e ficando para a vida, porque ficamos muito tempo em atividades e acampamentos e isso fortalece a relação, principalmente porque no escotismo aprendemos a valorizar muito as amizades que construímos”, destaca.

Em retrospectiva, o químico confessa: “ser parte do grupo de escoteiro moldou todos os aspectos da minha vida, seja com relação ao trabalho, interpessoal, seja as escolhas profissionais. No movimento escoteiro se busca desenvolver aquilo que mais interessa à criança e ao jovem e eu tinha muito interesse em ciência exatas. Foi no grupo que aprendi a aplicar o conceito de liderança, por exemplo, porque precisamos estar à frente de outras pessoas, das patrulhas e matilhas. Foi o grupo que trouxe ferramentas para que eu expressasse essa liderança de forma saudável”, opina.

Ao longo de anos no grupo de escoteiros, Rafael fez uma amizade que ultrapassa somente os acampamentos. Lívia Maia, 26 anos, administradora e moradora do Lago Norte entrou no Lis do Lago aos seis anos e meio, em 2006. “Fiquei no movimento a minha vida toda e me afastei quando tinha 22 anos, mas meu irmão continua no escotismo. Conheci o Rafael logo quando ele entrou. Penso que a amizade de escoteiro é uma amizade diferente, porque passamos por muitas situações complicadas juntas. Vamos a acampamentos em que a barraca rasga, fazemos viagens que duram semanas e é natural que nesse tempo aconteça algum perrengue. É uma amizade em que a pessoa fica muito próxima de ser alguém da família”, avalia.

Lívia confessa: “a amizade minha e do Rafa foi se construindo ao longo da vida inteira e ainda estudávamos na mesma escola, então isso estreitou ainda mais a nossa relação. Já acampamos, inclusive, em outros países, chegando a ficar meses viajando. O mais longe que já fui foi na Islândia. E acho que um dos episódios que marcaram muito foi quando estávamos acampando e de madrugada passou um cupinzeiro atravessando o acampamento e eles saíram rasgando as barracas. E o Rafael, que sempre foi responsável, começou a liderar e a ajudar os outros, levantando as barracas para que a gente não ficasse sem e orientando os mais novos, que ainda não sabiam o que fazer. Sempre tem esse espírito, dos mais experientes ensinar os outros o que eles devem fazer”, explica.

Desenvolvimento

Chefe de tropa, Deomar Rosado, 66 anos, começou no grupo como voluntário, para conseguir uma vaga para o filho, e desde então, se dedica ao Lis do Lago. “O escotismo trabalha as áreas de desenvolvimento social, afetivo e espiritual, com a realização de educação lúdica em espaços abertos. Estou no grupo há 30 anos e a gente realmente se engaja, as famílias participam, se cria um vínculo de amizade entre todos que é muito forte”, revela.

Deomar detalha que o objetivo é que as crianças e jovens aprendam na prática os conteúdos. “Eles se organizam e entendem o conceito de equipe. Também é trabalhado a questão da sustentabilidade, de cuidar dos animais e das plantas, da biodiversidade. E sempre buscamos os adultos voluntários. Além disso, em cada faixa etária existe um ponto a se desenvolver, nos mais novos, há a fantasia; nos adolescentes, focamos no vínculo e amizade; nos jovens de 15 a 17 anos, tem a questão do empoderamentos e dos desafios; e a partir dos 18 anos, eles começam a querer ser pioneiros, porque estão entrando na faculdade, estão no serviço, então existe muito trabalho focado na autonomia”, afirma.

Antes da pandemia, o grupo tinha cerca de 140 escoteiros, mas atualmente, as atividades estão voltando aos poucos, segundo Deomar. “Temos cerca de 90 escoteiros na ativa, e 25 voluntários adultos. Nosso objetivo é retomar as atividades, principalmente essa carência por adultos voluntários, porque quanto mais temos, maior o número de crianças que podemos monitorar no acampamento”, explica.

Tradição

Na família de Lívia, participar do grupo Lis do Lago é praticamente uma tradição. “As minhas irmãs que têm mais de 30 anos, foram escoteiras, e meu irmão, que hoje tem a metade da minha idade, está com treze anos, é escoteiro. Então o Lago Norte é realmente ligado pelo Lis do Lago, e toda uma geração familiar também se une devido ao escotismo. Minha mãe até hoje está muito envolvida nas atividades do grupo”, admite.

Para Rafael, além da vivência no grupo de escoteiros, um cartão-postal de Brasília também marcou a sua infância. “Até fiquei recentemente morando em São Paulo, mas voltei para Brasília. Aqui tem um diferencial, gosto muito da organização da cidade, da forma como ela foi construída e tenho uma memória afetiva muito forte com a cidade, principalmente com a Torre de TV. Antigamente, a feirinha ficava bem embaixo da Torre e sempre íamos lá no fim de semana. Isso sempre foi algo que ficou marcado, acho que tanto pelo visual da Torre em si, mas também por ser um lugar que a gente (pelo mirante) consegue ver a cidade inteira)”, pondera.

Festa junina da 213 Sul: tradição desde a década de 1990

Edis Henrique Peres

Carlos Vieira/CB/D.A.Press
João Matos e Eliane Abreu com o álbum de imagens das festas juninas no Bloco A da 213 Sul | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Os meninos pintam no rosto um bigode que simula a barba que ainda vai crescer, enquanto as moças, de chiquinha, bochechas coradas com maquiagem e pintinhas marcadas de lápis de olho rodopiam com os vestidos coloridos e rodados. De chapéu de palha, a quadrilha entra ao som das músicas típicas e ao grito de “olha a cobra”, todos pulam. É festa junina! Para os moradores da SQS 213, do Bloco A, o festejo é uma tradição com quase 30 anos de história. “Os três primeiros anos, praticamente, era apenas uma festa para os nossos filhos, depois foi crescendo, e o bloco G começou a nos ajudar. No fim, fizemos 29 edições. Paramos por causa da pandemia”, conta João Matos, 80 anos, servidor público aposentado.

João relembra que foi a filha, Patrícia, que deu o primeiro impulso para o surgimento da tradição do arraial. “Aqui no prédio temos muitos nordestinos e gaúchos. Eu sou do Ceará, por exemplo, e todo mundo é muito animado para festejar. Minha filha também era festeira e, brincando com as crianças, inventaram de fazer uma quadrilha, e nós, os pais, acabamos incentivando a animação deles”, detalha.

Outra moradora que atuou nos quase 30 anos de festa, Eliane Abreu, 73, servidora pública aposentada do GDF (Governo do Distrito Federal), lembra que as crianças se dedicavam na produção de bandeirolas feitas com jornal e revista. “Fizemos algo simples nos dois primeiros anos, somente para os moradores do nosso bloco. As crianças dançavam a quadrilha e os pais desciam, cada um com um prato: trazíamos bolo, pipoca e balas doces”, revela.

Rapidamente, o espírito de São João cresceu e tomou proporções maiores. “Uma das moradoras, muito animada aqui do bloco, começou a descer com violão para tocar com as crianças e então começamos uma quadrilha também com os adultos. Aos poucos foi se formando as barraquinhas, de canjica, galinhada, feijão tropeiro, tudo feito pelos próprios moradores. Quando percebemos, a festa tinha tomado outro ar e precisávamos até pedir autorização para o GDF para realizá-la. Não era mais só uma festinha de criança, como começou”, afirma João.

Eliane diz que o foco era reunir as famílias da quadra. “Lógico que quem passasse e quisesse participar era bem vindo. E isso foi se tornando cada vez mais comum, a nossa festa unia a quadra toda, e quem vinha uma vez, cobrava a festa no ano seguinte e a comemoração começou a ficar famosa. Só não fizemos nos últimos anos por causa da pandemia”, ressalta.

Arquivo Pessoal
Grupo de moradores reunidos para cortar os ingredientes para o cachorro-quente da festa | Foto: Arquivo pessoal

Compromisso

Responsável por fazer o cachorro-quente para a festa, Eliane relembra o que considera os melhores momentos do grupo: “a noite de véspera”. “A festa tem uma comissão organizadora, que tem entre 15 e 20 pessoas. No início, precisávamos fazer várias reuniões para organizar tudo, e como não tínhamos salão no nosso bloco, as reuniões eram feitas a cada dia, na casa de uma pessoa. E isso era por si só muito animado. Ao fim, a pessoa servia um jantar, e era uma diversão só”, conta.

A realização do evento, contudo, demandava um grande esforço dos organizadores, com dias dedicados ao preparo dos alimentos, compras e licenças necessárias. Eliane e João, apesar disso, recordam com alegria das noites que o grupo passava, praticamente em claro, para conseguir preparar as comidas típicas. “A gente precisava na noite anterior se reunir na casa de alguém para cortar a charque, a cebolinha, preparar a carne para o espetinho e cortar a cebola. Quem não tinha dado reunião na sua casa, trazia a comida daquele dia que seria a nossa refeição. Era muito trabalhoso, mas ao mesmo tempo era divertido. A esposa do João, por exemplo, era responsável por temperar a canjica. Meu esposo era quem cuidava das finanças da festa, porque ele é auditor fiscal”, acrescenta Eliane.

Aos poucos, a Comissão pegou o ritmo da organização do evento e não precisava de tantas reuniões. “A gente já tinha um script a seguir. Mas a cada ano, anotamos os erros e acertos e conversamos ao fim da festa para ver o que não devíamos fazer e o que tinha funcionado. Para que no ano seguinte, fosse ainda melhor”, pontua a aposentada.

João revela que, com o passar do tempo, como os moradores foram envelhecendo, o grupo decidiu diminuir o número de afazeres manuais. “Antes, a gente montava as barracas e cavava os buracos para erguê-las. Mas do meio para o fim, percebemos que não dava mais, então compramos a estrutura de metal. Temos até hoje as lonas, as barracas, o fogão e a churrasqueira guardadas”, salienta.

Solidariedade

Em dois grandes álbuns, parte da história da festa junina da SQS 213 é eternizada. Um deles é um arquivo com os diversos documentos de cupons fiscais, rendimentos das festas, gastos e atas das reuniões. O grupo, inicialmente, teve dúvidas do que fazer com o valor arrecadado no arraial até que tiveram a ideia de doar o valor para alguma instituição de caridade.

“A gente decidia tudo em votação. E quando decidimos pela festa não sabíamos o que fazer com o excedente, então um morador sugeriu doar e todo mundo apoiou”, recorda. “Mas antes disso, para levantar o dinheiro que seria investido, cada membro da Comissão emprestava um valor nessa etapa inicial. A festa era feita no sábado, e no dia seguinte, no domingo, já pagávamos, para cada um, o que tinham emprestado. Nunca nem um morador ficou sem receber. Logo depois fazíamos uma reunião de rendimentos e do que tinha sido gasto, e escolhíamos para qual entidade seria destinado a doação”, explica.

Já o segundo álbum, guardado ainda com mais esmero, é um convite à memória. A cada página, as fotografias contam a história dos moradores: um vínculo que vai além da festa junina, que se traduz em amizade entre os residentes do Bloco A e também de afeto com a capital do país. “Vim para Brasília para passar somente um ano, cheguei em 2 de novembro de 1981, saindo do Espírito Santo com meu esposo. Hoje, mesmo visitando meus familiares que moram lá, logo quero voltar. Meu lugar é aqui, onde criei meus filhos. A gente acaba se apegando. As pessoas falam que aqui não tem praia, mas eu não sinto falta”, frisa.

Na Asa Norte, empatia, preocupação e interação mesmo durante o isolamento

Arthur de Souza

 Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
Marta Simone (E), Teresa Cristina (C) e Silvia Perez: ações para unir os moradores | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press

A síndica do Bloco H da 210 Norte, Silvia Perez, 58 anos, idealizou — junto aos moradores do edifício — eventos que proporcionam uma melhor convivência e funcionam como uma válvula de escape para momentos difíceis, como a pandemia. Empatia, preocupação e interação. São essas as palavras que, talvez, possam definir a união entre Teresa Cristina, 59 anos, Silvia Perez e todos os moradores do Bloco H.

As duas vizinhas entram em cena como as principais cabeças por trás de eventos que acontecem no prédio, que são criados com a intenção de gerar mais aproximação entre os moradores. Apesar de não ter mais residência no edifício, Silvia se mantém como síndica, com aprovação dos vizinhos, e conta que a primeira ideia surgiu quando ainda morava na quadra. “Há algum tempo, fiz uma iniciativa que se chamava ‘entre vizinhos’, e era justamente com a pretensão de estimular os moradores a se conhecerem e conviverem”, comenta.

“Nós fazíamos a preparação para os eventos, decidindo sobre decoração e o que seria servido, por exemplo. Isto já era algo muito positivo, porque as pessoas acabavam se conhecendo durante as reuniões e amizades acabaram sendo feitas”, relembra. Teresa, que ainda mora no edifício, é uma das que criou amizades com os primeiros eventos. “Uma vizinha do meu andar foi embora para Curitiba, mas mantemos a amizade até hoje. Também teve uma professora belga, que veio para cá fazer doutorado na Universidade de Brasília (UnB) e acabei criando uma boa relação”, relembra.

Aproximação essencial

Com a pandemia, Silvia diz que todos os moradores passaram a se preocupar uns com os outros, momento em que tiveram a ideia de criar mais um evento, para manter a interação, mesmo em um momento de pouco contato. “Além de imprimir algumas rotinas, como fazer telefonemas, tivemos a ideia de fazer o “troca-troca” de livros, em 2021, que foi muito bem aceito por todos”, frisa. Teresa lembra que foi tudo feito no improviso. “Conseguimos uma base de madeira e colocamos os livros nela, dividindo de acordo com o tema de cada um, tudo no protocolo de segurança sanitária. Quem pegava o livro, não tinha a obrigação de devolver e, o saldo que ficou, nós doamos. Passaram por aqui, cerca de 400 títulos diferentes”, destaca.

Para Silvia, o evento foi muito significativo. “A gente via pessoas que nunca tinham saído de casa, desde o começo da pandemia, descer com um livro e voltar com outro. Isso me fez pensar que os moradores estavam receptivos a buscar algum tipo de integração”, pondera. “É muito importante porque, principalmente durante a pandemia, a tensão foi tão grande, que vimos muitas brigas entre pessoas que moram próximas e, esse tipo de ação, diminui muito o atrito. Foi algo bastante legal, pois estávamos em um momento difícil, tudo fechado e, de repente, acha-se um jeito de fazer a interação entre os vizinhos”, considera Teresa.

Outros eventos

As duas reforçam que não foi só o troca-troca de livros que teve êxito nas intenções de integrar. “No carnaval que antecedeu a pandemia, em 2020, eu e a Silvia bolamos uma decoração. Fomos em Taguatinga comprar os adereços e, enquanto estávamos arrumando, o pessoal passava e se empolgava, perguntando o que iria acontecer”, detalha Teresa, que brinca afirmando que “a grande vantagem de fazer um evento como esse, no pilotis do prédio, é que o pessoal não precisou se preocupar com blitz (risos)”.

“Esse ano, no feriado de carnaval, com as pessoas vacinadas e tendo menor receio de sair de casa, tivemos a ideia de fazer um evento de habilidades pandêmicas. Cada um trazia algo que aprendeu e/ou aprimorou nesses dois anos de isolamento. E acabou virando um sarau, teve até violino”, lembra. Silvia revela que mais uma iniciativa de integração deve acontecer em breve, também com a essência da troca entre os moradores. “Qualquer coisa que a pessoa tenha e não queria mais, ela poderá trazer para doar. Sempre na intenção de propiciar a integração, pois, se a gente conseguir que duas pessoas, pelo menos, participem, já é algo interessante”, torce.

Além disso, a síndica do bloco comenta que, devido ao sucesso que os eventos fizeram, existe um planejamento para criar uma espécie de cronograma. “A ideia é tentar propiciar uma frequência maior nesses momentos de interação, para aproximar mais os vizinhos. Até porque, eles são as pessoas mais próximas que a gente tem aqui”, reforça.

Efeito positivo

Quem aproveitou os eventos foi a advogada Marta Simone do Carmo, 47. “As interações foram de grande ajuda. Na pandemia, também estava receosa em sair de casa e, agora nesse período mais ameno, trazer essa possibilidade de confraternização entre vizinhos novamente, é algo que faz a gente se sentir vivo outra vez”, afirma Marta.

Para ela, o bloco onde mora contribui para a criação desse tipo de iniciativa. “Penso que existe uma coisa muito especial. Todos têm uma preocupação muito grande em fazer essa troca, essa conversa”, considera a moradora. A advogada afirma que participar dos eventos foi uma experiência única. “Agregou muito na questão da valorização da convivência entre vizinhos, na amizade e na solidariedade. Além disso, quando colocamos os registros nos grupos, faz com que outros também se interessem em participar”, aponta.

“Praia” perto de casa: beach tennis para aliviar a tensão no Noroeste

Pedro Almeida*

ED ALVES/CB/D.A.Press
Ester Mauch, Beatriz França (C) e Ana Claudia: uma amizade que une esporte e qualidade de vida | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

A ocasião faz o esportista. Não são raros os casos de craques de diversas modalidades que começaram no esporte pela comodidade de ter um espaço para praticar perto de onde moram. Para provar que a proximidade entre a casa e a quadra faz toda a diferença, o bairro do Noroeste apostou em campos de areia no intuito de incentivar os esportes de praia. O resultado foi positivo. As vizinhas Ester Mauch, 33 anos, Ana Cláudia Gomes, 35, e Beatriz, 35, se tornaram adeptas do beach tennis, ou tênis de praia, febre no bairro.

Em 2020, o mundo parou. A pandemia freou a sociedade e aboliu, por tempo indeterminado, o conceito de reuniões, especialmente em locais fechados. Aqueles que gostavam de se exercitar nos ginásios e academias sofreram um impacto a mais. No primeiro momento, as atividades físicas ficaram restritas aos quintais e salas de estar, que tiveram os sofás arrastados para o canto para se tornarem academias improvisadas.

Com um melhor entendimento da covid-19, as atividades ao ar livre foram paulatinamente liberadas. Ainda sem poder frequentar a academia, as vizinhas Ester, Ana Cláudia e Beatriz avistaram, da janela do prédio no Noroeste, uma nova possibilidade. Elas ainda não sabiam, mas a caixa de areia de pouco mais de 200 metros quadrados na praça traria um respiro frente às dificuldades vividas e mudaria a rotina das três.

Em pleno Cerrado, a fina areia branca confinada no paralelepípedo retangular emula a faixa à beira-mar. O calor, apesar de seco, nada deve ao clima litorâneo de verão. O beach tennis que leva, no nome, a palavra “praia”, achou uma nova casa bem longe de lá. O esporte, jogado por quatro pessoas, duas contra duas, funciona como uma mistura de tênis e vôlei de praia. A dupla de jogadores tem de passar a bola para o outro lado sem deixar que ela toque o chão dentro das quatro linhas. A lógica de pontuação segue a do tênis, dividida em sets e games. No Noroeste, contudo, há uma regra especial: que promova a socialização dos frequentadores.

Na ânsia de voltar a mexer o corpo e na comodidade de apenas precisar pegar o elevador até o pilotis, as três afundaram os pés descalços nos finos grãos e empunharam a raquete. O jogo cumpriu o prometido: fez o corpo suar e manter-se saudável; mas, além disso, trouxe um ouro escondido. O trio de vizinhas não se conhecia. Foi bem ali, resgatando a amistosidade de uma orla, que as três tornaram-se grandes amigas.

Hoje, o jogo é mero detalhe na relação. Ester, Ana Cláudia e Beatriz criaram um laço que vai muito além do campo e fazem, nas palavras de Ester, “de tudo juntas”, mas sem deixar de bater ponto nas sessões matinais do passatempo praiano. Pela frequência que as vizinhas vão à quadra, elas acabam por se encontrarem mais entre si do que com outras amigas que não praticam o esporte. Fica cômodo trocar confissões no banco de espera entre as partidas. À medida que as conversas avançavam, também progredia a proximidade. Hoje, as três já planejam uma viagem em conjunto, mas sem esquecer de colocar as raquetes na bagagem.

O trio não é caso isolado. Atualmente, o grupo de jogadores do bairro já soma duzentos participantes. Os equipamentos, comprados com a ajuda de todos, estão disponíveis para quem quiser a qualquer hora. Basta avisar os colegas e buscar na portaria do prédio. Se a luz das ruas já estiver prestes a ser apagada, basta acionar os holofotes instalados por eles e acionados por controle remoto. A pequena caixa de areia revolucionou um bairro inteiro. Mais do que 200 jogadores, o Noroeste ganha 200 vizinhos unidos. Neste caso, a ocasião fez a vizinhança.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Unidos pelo basquete, moradores do Sudoeste celebram parceria

Renata Nagashima

 Carlos Vieira/CB
Davi Andrade, Ricardo Bouvier e Gustavo Araújo (D): altas histórias | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Quando se encontram, um bom papo é certo. Os amigos Davi Andrade Bentes, 23 anos, Ricardo Bouvier do Nascimento Silva, 23, e Gustavo Araújo do Nascimento Santos, 23, se conheceram e se aproximaram por causa do basquete e, desde então, toda partida é regada de boas memórias e resgate de momentos marcantes que viveram juntos por causa do esporte.

Moradores do Sudoeste, começaram a jogar em uma escolinha há 15 anos e, de cara, se deram bem. “Todo mundo morava perto e a gente começou a ir para os rolês juntos. O basquete aproximou muito a gente, definitivamente”, conta Davi. O estudante Ricardo concorda com o amigo. “A gente estudava no mesmo colégio e não nos falávamos. Por causa do esporte a gente começou a se falar. Em 2008 nos aproximamos para valer.”

Ricardo brinca que a relação do grupo era bacana, porque o time era bom. “Era muito boa aquela época. A gente participava de campeonatos, estávamos sempre juntos”, completa Davi. Foram muitos momentos juntos e o que não falta são histórias para contar. “Teve uma vez, em um campeonato, que eu fiz uma cesta contra sem querer, mas querendo. Eu fui com tudo fazer a cesta e só depois vi que tinha confundido as cestas e fiz uma contra. Eles não esquecem e até hoje é motivo de zoação”, recorda Ricardo.

Apesar de ter cometido a gafe, Ricardo é exaltado pelos colegas porque graças a ele, que não errava um lance livre, o time ganhou um campeonato sub 12 contra o time do Vizinhança. “Foi bonito, cara. Ele não errava o lance. Foi engraçado porque a torcida adversária ficava gritando lá, xingando e ele nem aí, continuava acertando todas e concentrado”, conta Gustavo.

Os meninos chegaram a viajar juntos para um campeonato em Anápolis, em Goiás, mas acabaram perdendo. “Nosso time estava fraco e os caras lá eram gigantes. Mas foi muito legal”, acrescenta Davi. No entanto, Ricardo faz questão de destacar que o time chegou em muitas finais de campeonato. “Ganhamos vários, mas teve uma época que a gente jogava contra um cara que hoje virou profissional, aí ficou complicado para a gente. Aí ele ganhava todos os campeonatos”, afirma.

Nem só de vitórias viveu o grupo, por ter poucas pessoas no time, às vezes eles perdiam por não terem integrantes suficientes. “A gente sempre passava aperto no campeonato, porque na nossa categoria tinha poucas pessoas, então tínhamos que chamar o pessoal mais novo para completar e em outros, perdíamos por WO. Então era sempre muita apreensão porque não sabíamos se ia dar o número de pessoas mínimas jogar. Além disso, não tinha como revezar, então não dava para descansar, era o jogo todo direito”, lembra Davi.

Por cinco anos o grupo treinou junto no mesmo local e mesmo depois de terem seguido caminhos diferentes, a amizade continuou. “Do time, fomos os que mais nos aproximamos, continuamos amigos e nos encontrando para jogar. Depois entraram outros, fomos chamando mais uma galera. Mas por morarmos perto um do outro, facilitou bastante”, explica Rodrigo.

“Às vezes a gente não tinha nada para fazer e aí ficávamos andando pelo Sudeste”, recorda Davi. Como não dirigiam quando eram menores, eles se encontravam na rua e costumavam fazer uma programação nas quadras próximas. “Ficávamos trocando ideia depois do basquete, na maioria das vezes, embaixo do prédio de alguém. Foi legal crescer tendo vizinhos que gostavam da mesma coisa que eu”, completa Gustavo.

Nos últimos anos, a frequência das partidas diminuiu, tanto por causa da pandemia quanto por causa da faculdade dos três. “A gente está meio parado na questão do basquete, mas não paramos de jogar”, diz Ricardo. Mas Gustavo rebate e afirma que os poucos encontros não fizeram com que os amigos se afastassem. “É bom, porque mesmo a gente não encontrando muito para jogar, estamos sempre conversando porque acompanhamos campeonatos. A gente discute sobre basquete e sobre o desempenho dos times. Sempre temos assunto por causa do basquete.”

Conheça projeto que uniu vizinhança da 105 Norte nos momentos mais difíceis da pandemia

Pedro Almeida*

Das janelas dos apartamentos, moradoras acompanhavam os artistas na quadra
Das janelas dos apartamentos, moradoras acompanhavam os artistas na quadra | Foto: Arquivo pessoal

Para afastar o tédio e quebrar o silêncio que ecoava na superquadra, da 105 Norte, durante a pandemia, a comunidade transformou o passeio público em palco musical e as janelas dos prédios, em camarotes. O projeto Música Solidária, concebido pelo prefeito da quadra, impactou e uniu os moradores, além de colaborar com os músicos locais.

Jeann Cunha, 35 anos, nasceu e se criou na quadra 105 da Asa Norte. Ao longo dos anos, nas andanças como morador de Brasília, se encantou com o trabalho produzido nas quadras que contavam com uma prefeitura comunitária ativa. O zelo e o senso de comunidade eram evidentes. A quadra em que morava, porém, não era uma delas. Determinado a mudar este paradigma, Jeann resolveu liderar o movimento de reativação da prefeitura da 105 Norte. À frente do posto, ele começou a agitar o espaço com eventos e arte. O amor pela superquadra natal se alinhou ao trabalho de agente sociocultural que ele já desempenhava fora dali.

O trabalho foi um sucesso. Os primeiros projetos deram resultados, mas foram seguidos de um hiato gerado pela pandemia, que havia acabado de chegar em 2020. Unir os moradores de uma quadra em tempos de distanciamento era uma tarefa árdua, mas não impossível. Sem desistir, Jeann reuniu amigos da cena cultural brasiliense e desenvolveu o projeto Música Solidária. A ideia consistia em fazer serenatas musicais para os moradores. Sem sair de casa, bastava abrir a janela e aproveitar a música do conforto do lar. Um primeiro evento-teste foi feito, e o resultado foi positivo.

O prefeito logo contatou os músicos que conhecia para dar corpo ao projeto. Não bastava simplesmente tocar uma ou duas músicas, Jeann queria realizar um verdadeiro festival. Os prédios receberam, um por vez, os shows particulares de vários gêneros musicais distintos. Os moradores ganhavam o alento da música em tempos tão difíceis e davam, em troca, uma doação em dinheiro para os músicos locais e suprimentos para instituições de caridade.

Todos ganhavam. Os residentes, com uma forma de espairecer e acalmar o coração; os músicos, que estavam parados, arrecadavam recursos; por fim, as pessoas carentes ganhavam mais um aliado na luta pela sobrevivência. Acima de tudo, o mosaico de bustos à beira das janelas, como uma coleção de namoradeiras, afastou a solidão e provou que, ainda que no pior dos tempos, o senso de comunidade estava presente na 105 Norte.

Instrumentistas se revezaram em apresentações durante o isolamento
Instrumentistas se revezaram em apresentações durante o isolamento | Foto: Arquivo pessoal

Foi justamente a ausência de um clima comunitário que assustou Alessandra Lima, 38. A carioca designer de interiores chegou a Brasília há aproximadamente quatro anos. O marido militar foi transferido para a capital e trouxe a família. Criada no Rio de Janeiro, ela conta que o clima de união entre os moradores do bairro em que cresceu fazia jus à alcunha de “comunidade”. O calor humano, típico do carioca, faz parte da vida de Alessandra, que se confessa “faladora”. O que ela encontrou por aqui, contudo, foi diferente.

A calmaria da 105 Norte acabou por ser propícia para a criação dos dois filhos pequenos, mas deixou uma lacuna no desejo de se relacionar com os vizinhos. Em 2020, a vontade de estreitar laços teria de ser adiada ainda mais tempo. O convite de Jeann Lucas à janela, por sorte, tratou de resolver o problema. Alessandra conta que, ao escancarar os vidros da janela, reviveu o clima que a marcou na infância e se emocionou. Sentiu-se ali, pela primeira vez, parte da comunidade. Ela faz questão de apontar a importância das artes e, em especial, da música, no enfrentamento da pandemia; foi o que a salvou, de acordo com ela. Hoje, ela se sente mais próxima dos vizinhos e admira o empenho de Jeann em transformar a superquadra em um grande lar.

O projeto Música Solidária, mesmo que não tivesse essa grande ambição de início, tornou-se uma forte alternativa de captação de recursos para o setor musical. Iniciada na 105 Norte, a ideia foi potente a ponto de tomar dimensões maiores do que o local em que nasceu. A iniciativa foi replicada em 10 quadras e engajou 70 atrações musicais brasilienses.

Pedro de Castro, 28, foi um dos músicos participantes. No Dia das Mães de 2020, ele estreou no projeto. Hoje, serenatas já se tornaram parte do repertório do saxofonista. Ao perceber o impacto do projeto, ele investiu em equipamento próprio para poder oferecer o serviço. Ele relata, também, que tem retornos positivos ainda hoje da divulgação que conseguiu à época.

Não há, afinal, vida sem música. Ainda que o mundo pare e as pessoas se recolham, a 105 Norte provou que a música pode ir a quem não pode ir ao encontro dela. E onde há música, há calor humano, há vida e história sendo escrita. Há, enfim, comunidade.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Crônica: Vizinho é irmão, ninguém escolhe

Paulo Pestana | Especial para o Correio

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Um dos pais fundadores de Brasília tinha tanta fé nos vizinhos que planejou a criação de vários clubes para eles. Seriam as unidades de vizinhança e estariam localizadas a cada quatro superquadras nas asas Sul e Norte do Plano Piloto, como forma de oferecer lazer aos moradores, com quadras esportivas, piscina, campo de futebol e biblioteca.

Talvez tenham faltado vizinhos, porque só deu para fazer um, na altura das quadras sete e oito da Asa Sul. Mas na verdade é a confirmação de que a ideia de colocar tanto vizinho perto não rende confraternização e está mais para confusão, até porque vizinho é igual a irmão, diferente de amigo: a gente não escolhe. E ninguém mais mexeu com a ideia de fazer clubes para reunir a vizinhança — já chega a reunião de condomínio.

Não se sabe de onde Lucio Costa tirou a ideia utópica de que vizinho é o mesmo que amigo. Ele próprio não devia ser um bom vizinho. Homem de personalidade forte, não era conhecido pela expansividade; ao contrário, era cerimonioso e reservado. Mas era sábio e tinha consciência do risco que correu, quando disse que “a única coisa do planejamento é que as coisas nunca ocorrem como foram planejadas”.

Tem gente que dá muita sorte com a vizinhança, mas é uma loteria. O sujeito que mora embaixo pode gostar de ouvir pagode do Ferrugem na maior altura todo domingo de manhã; a senhora que mora em cima pode passar o dia usando sapato que parece tamanco, batucando no taco para lá e para cá; o rapaz do lado pode ser um amante selvagem, daqueles que arrancam gritos da parceira, matando o resto do prédio de inveja.

Acreditem: passei por tudo isso na Asa Norte, esse bairro que é quase uma entidade sobrenatural, de tanta coisa estranha que acontece por lá. Saudade.

O pior vizinho, no entanto, parece ser o mais comum em Brasília: aquele que finge que você não existe, faz as maiores festas, não te convida para nenhuma e, para piorar, no dia seguinte coloca as caixas com cascos dos melhores rótulos para o gari recolher, mas bem a vista, para causar inveja. Prefiro o vizinho que não cumprimenta, mas não faz festa.

Tenho um amigo que em menos de dois meses morando num conjunto já conhece todos da vizinhança; sabe até o nome dos cachorros. É caso raro. Quem mora em prédio ainda esbarra em elevador, na caixa de correio, na beligerância da reunião do condomínio). Mas quem mora em casa, ainda mais com esses portões eletrônicos, entra sem falar, sai sem dizer nada e nem olha para trás. Difícil achar um “bom dia”.

Mas há sempre aquele vizinho que envolve a gente. Gregário, consegue até mudar nossos hábitos. Ele vai se introduzindo, simpático, quase servil, sempre pronto para ajudar, quando você vê está abrindo sua geladeira.

Na minha rua tem a senhora da janela; fica só observando o movimento. Não sei o que faz com as informações que recolhe, porque a única fofoca era a do marido que de vez em quando gritava com a mulher, mas parou quando a polícia foi acionada — na verdade foi uma ameaça, mas valeu.

E tem o vizinho de todos nós, o estado de Goiás, que tem sufocado o DF todo com essa música sertaneja, o jeito das moças se vestirem e o dos rapazes de falar sem o menor respeito com as concordâncias verbais e nominais. “É nóis!”. Eu retruco: – É eles.

Mestre Woo e o tradicional ponto de tai chi chuan da Asa Norte

Edis Henrique Peres

Ponto de harmonia e encontro
Mestre Woo: “Tai chi chuan é um cuidado com o bem-estar do corpo e da mente e um cultivo do intercâmbio de conhecimentos”  | Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press

Os movimentos sincronizados, em ritmo e conexão com o próprio corpo, acumulam a energia e a dispersam. Os praticantes se movimentam na quadra de esporte, entre as entrequadras 104 e 105 Norte, enquanto os raios de Sol vencem as poucas nuvens e afastam a brisa fria da manhã da última terça-feira que marcou, de acordo com o registrado pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), 16ªC nos termômetros da capital federal. A Praça da Harmonia Universal é um patrimônio imaterial de Brasília desde 2007, mas sua história com o tai chi chuan começou muito antes, ainda em 1974. Atualmente, a praça é um ponto de encontro para praticantes da arte marcial para pessoas de diversas regiões administrativas que querem vivenciar a energia tranquila que exala do local.

Natural de Taiwan, o grão-mestre Moo Shong Woo chegou ao Brasil em 1961, onde passou por São Paulo e Minas Gerais, até, finalmente, vir para Brasília, em 1968. A iniciativa do tai chi chuan começaria entre as quadras da Asa Norte somente na década de 1970. Hoje, com 90 anos de idade, o mestre acompanha as aulas, mas outro professor costuma orientar os alunos. Woo explica que a prática do tai chi é considerada, também, uma meditação em movimento.

“Os ensinamentos são de fraternidade, saúde e paz, um cuidado com o bem-estar do corpo e da mente e um cultivo do intercâmbio de conhecimentos. Eu tenho conhecimento para ensinar ao outro, mas minha neta, bem mais nova, também tem muito a ensinar para mim. Esse intercâmbio é muito importante, porque nós não somos robôs, somos humanos, e essas relações são fundamentais”, destaca Woo.

Grão-Mestre Woo pontua que o tai chi é o resultado de uma série de conhecimentos que foram se acumulando ao longo de milhares de anos. “É uma sabedoria que foi sendo construída, por todos. E é uma vitalidade não apenas para idosos, muitos jovens também precisam dessa prática, porque não se trata de cuidar somente do corpo, mas da mente. A praça é um local que junta todas as raças, todos juntos, de congregação porque somos todos irmãos”, avalia.

O mestre pondera que, atualmente, existem muitos medicamentos e tratamentos modernos, mas que esses não são os únicos meios para garantir a saúde de um paciente. “Ter uma boa relação com o outro, ficar ao ar livre, ver as pessoas que ama, tudo é bom para a saúde. É isso que a gente ensina”, frisa.

Ponto de harmonia e encontro
Victor Jimenez, ao lado de Marcia Seroa: “O tai chi chuan mudou a minha vida” | Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press

Mudança de vida

O primeiro contato de Victor Jiménez, 68, advogado e morador do Lago Sul, com o tai chi chuan foi em busca de qualidade de vida. “Em 2009, comecei a sentir os primeiros sintomas do Mal de Parkinson, mas, até então, nem conhecia a doença. Sentia muitas dores musculares do lado esquerdo do corpo. No entanto, fui receber um diagnóstico somente em 2013. E, em 2015, mais ou menos, em contato com um professor da universidade, ele me disse que o tai chi poderia ajudar na estabilidade postural dos pacientes de Parkinson. Estabeleci como meta que iria fotografar as aulas de tai chi sem tremer, e hoje, inclusive, tenho um canal no YouTube, o Viver ativo com Parkinson, onde falo sobre diversas questões. E sou eu também que sempre fotografo os eventos realizados na praça e cuido da postagem dos vídeos e conteúdos dessas imagens”, detalha.

Victor se orgulha do equilíbrio que adquiriu com as aulas do tai chi. “Pratico todos os dias em casa ou aqui. O tai chi chuan mudou a minha vida”, confessa. Além dos benefícios que o advogado vivencia diariamente, na redução dos sintomas do Parkinson, ele destaca outro: “Ao longo desses anos foram se fortalecendo muitas amizades saudáveis devido ao nosso convívio aqui na praça, a gente vai se tornando amigos com o tempo”.

Diretora-presidente da Associação Being Tao e facilitadora do tai chi, Márcia Seroa da Motta ressalta que o espaço faz tanto sucesso devido ao acolhimento. “É uma arte que atende todos os públicos, do mais jovem ao mais velho, e que trabalha nessa liberação de energia. Nos domingos, quando fazemos alguns cafés da manhã, por exemplo, tem gente que vem de muito longe simplesmente para estar aqui, neste espaço de harmonia, porque se sente diferente nesse lugar. O espaço aqui abre essa possibilidade de compartilhar ideias, todo mundo estar juntos, de ter essa energia que é muito particular daqui. Os moradores daqui da quadra sentem isso e as pessoas que vêm de outras regiões administrativas também. Muito disso, principalmente, devido a serenidade do mestre Woo”, pondera Márcia.

Vizinhos e pessoas que praticam Tai Chi. Na foto, Moo Shong Woo | Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press

A facilitadora revela que ela ganhou muitas amizades ao longo do tempo que praticou tai chi. “Quando cheguei a Brasília me sentia deslocada. Vim a trabalho para a cidade, e foi somente quando comecei a participar aqui que fui fazendo amizades. Tenho amigas de anos que já deixaram de frequentar a praça, hoje são professoras de tai chi em outros locais, e eu ainda mantenho contato com elas. Aqui é um ponto que realmente permite esse vínculo de amizade entre todos”, salienta.

Poeta e cineasta, Maria Maia, 62 anos e moradora da Asa Norte detalha a experiência com a arte marcial: “Quando você começa, pensa que é um movimento para energizar o seu corpo, depois pensa que estava errado e, na verdade, é para a sua mente, mas no final, descobre que é para o seu espírito”. Maria afirma que a praça, como o próprio nome sugere, consegue transmitir essa harmonia entre todos. “Por isso que se torna um poderoso local de encontro entre as pessoas, de união entre todos”, afirma.

Uma das amigas de Maria, Karen Smidt, 70, moradora da Asa Norte e advogada, garante: “Aqui praticamos realmente a fraternidade, a saúde e a paz”. Karen participa das aulas desde 2006, quando começou a passar próximo da praça onde eram realizadas as aulas e se interessou pela prática. Além do bem-estar, a arte marcial proporcionou amizades. Quando se encontrou com Maria, as duas se abraçaram e admitiram: “Quando a gente se abraça, é de coração para coração”.