Já se vão 52 anos desde que os Beatles oficializaram o fim da carreira. Em 1970, John, Paul, Ringo e George colocaram um ponto final em um dos projetos musicais mais importantes do século 20. O legado, porém, se perpetua até hoje. As canções compostas nos anos 1960 em Liverpool, na Inglaterra, extrapolaram as fronteiras do espaço e do tempo e chegaram até o Lago Sul, em 2022. O quarteto é motivo de encontro para debates regados a vinho entre os vizinhos Eduardo Levy e José Alexandre, que compartilham da paixão e de uma coleção invejável de artigos sobre a banda.
O carioca Eduardo, que é mais conhecido como Levy, rememora a infância no Rio de Janeiro. Em uma descrição que pinta uma cidade que já não existe mais, ele conta sobre os papos no paredão da Urca e as descobertas musicais. Nos anos 1960, ainda no colégio, Levy descobriu a Modern Sound, uma loja de discos situada na rua Barata Ribeiro, coração de Copacabana. O estabelecimento, que se tornaria um marco cultural da cidade, trazia uma coleção de discos atuais do mercado internacional. Eduardo teve, enfim, a oportunidade de conhecer um tal quarteto que fazia um certo barulho mundo afora. Para praticar um pouco do inglês, ele levou para casa uma “bolacha” dos Beatles e nunca mais foi o mesmo. Hoje, aos 70 anos, ele trocou de capital, mas a idolatria permanece.
José Alexandre não sabe precisar quando, nem por que o amor pelos Beatles se deu. Talvez, a mãe, que tinha uma conexão com a música, pudesse tê-lo introduzido; ou, porventura, o aprendizado do piano tenha sido a chave, já que, ainda que primorosas, as canções do grupo podem ser tocadas com relativa facilidade. José lembra-se, inclusive, de ter, na adolescência, um cachorro chamado John Paul, em homenagem aos vocalistas da banda. Se o início do amor não pode ser pinado, tampouco o fim. Aos 49 anos, o advogado capixaba, que se considera brasiliense, segue aficionado pelo quarteto de Liverpool e faz questão de compartilhar o interesse com os três filhos, que também são fãs da banda.
A quadra 26 do Lago Sul, na qual os beatlemaníacos residem, conta com uma associação de moradores, cuja presidente é esposa de José Alexandre. Em uma das reuniões, sediada no lar do casal, Levy compareceu e notou a vasta coleção de José Alexandre sobre a banda. Nascia, ali, a amizade pautada pelo interesse comum. Dali em diante, a dupla se encontraria incontáveis vezes sem o pretexto da associação de moradores. Para não dizer que os encontros são estritamente monotemáticos, ambos são categóricos ao afirmarem que há um outro assunto importante: o Flamengo. “Mas os papos inteligentes são sobre Beatles”, brinca José Alexandre.
Quebra-cabeças
Os mais de 20 anos que os separam fazem com que a discussão não se esvazie. Questões geracionais, além dos gostos pessoais, entram em jogo e trazem visões distintas sobre cada uma das peças do vasto quebra-cabeças que é a obra completa dos Beatles. Se José Alexandre aponta Blackbird como a grande canção, Abbey Road como o melhor álbum e George Harrison como o Beatle preferido, Levy enaltece Yesterday, prefere o Álbum Branco e condecora Paul McCartney como o melhor do quarteto.
Além do extenso catálogo, a banda, para a sorte do duo, gera frutos mesmo após meio século de rompimento. Livros, filmes e documentários novos com materiais inéditos estão sempre à disposição todos os anos. As vozes de José e Levy também já se misturaram à da legião de fãs nos shows de Paul McCartney, ativo até os dias de hoje em carreira solo. Para cada novidade, ou no simples prazer de reavivar um disco antigo, basta abrir o vinho, acionar o vizinho e deixar o som rolar.
*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira
Vou falar de vizinhos peculiares: os macacos-pregos. Não os escolhi. A convivência com animais silvestres é uma das singularidades de Brasília. Moro em um condomínio horizontal, fronteiriço a uma mata cerrada. A chegada dos macacos é mágica. De repente, você ouve um barulho de mato se mexendo. Só que é um alvoroço aéreo, em cima das árvores, de galho em galho, a 10 ou 15 metros de altura.
Eles formam uma turma simpática, mas bagunceira. Fazem acrobacias de deixar o Cirque du Soleil no chinelo. Nunca vi nenhum macaco despencar do alto por um movimento em falso. E não revelam extrema destreza apenas no espaço aéreo.
Certa vez, fiquei apreensivo, pois um macaco teve a ideia temerária de transitar sobre uma cerca de arame farpado. Evitei gritar, permaneci estático, imóvel como a estátua do silêncio, com medo de assustá-lo e provocar um acidente. No entanto, com incrível habilidade, ele atravessou toda a extensão do fio farpado, incólume, tranquilamente, sem sequer dar uma olhadinha no lugar em que pisava.
Quando os vejo em acrobacias, tenho vontade de dizer o mesmo que Rubem Braga falou a um sujeito que fazia malabarismos em uma corda suspensa em cima dos prédios, a mais de 20 metros de altura: “Eu quero ver é aqui embaixo”.
Em uma madrugada brasiliana, acordei assustado com o barulho do que me parecia um pagode ou uma pelada em cima do telhado. A zoada se dirigia para um lado e, em seguida, guinava, abruptamente, para outro. Levantei voado da cama, em dúvida se estava sonhando, na tentativa de desvendar o enigma. De repente, avistei a silhueta de um macaco no alto de uma faixa de vidro e dei uma bronca.
Não foi suficiente para afugentá-los. Abri a porta da sala e joguei uma pedra nas árvores próximas, só para dispersar. No entanto, em razão talvez da falta de aquecimento e da rotina de exercícios físicos, torci o braço e tive de fazer fisioterapia durante mais de um mês. E o pior é que o fisioterapeuta estava mais preocupado com a saúde dos macacos do que com a minha: “E os macaquinhos? Cuida bem dos macaquinhos, hein?”, recomendava sempre.
Nas férias, resolvi botar moral na macacada. Armei uma rede, peguei um livro para ler e fiquei de plantão. Quando se aproximavam, eu os espantava. A situação estava sob controle e ia bem. No entanto, numa tarde, ouvi um barulho, prestei atenção e levei um tremendo susto. Vi o que me parecia ser um macaco de duas cabeças.
Todavia, observando melhor, constatei que era apenas uma mãe com o filhote nas costas. Ela me mirou com os olhos pungentes, faiscantes e interrogativos, como se perguntasse: “Não vai me deixar alimentar meu filhote?”
Aquela cena minou-lhe a convicção saneadora. Liberei a mangueira e, desde esse dia, perdi a moral com a macacada. No período das chuvas, eles quebraram oito telhas e desarrumaram 22. As goteiras se espalharam pela casa, pingava para todos os lados. Os meus dois netos, Aurora, 8, e Judá, 4, abriram guarda-chuvas para transitar pela sala e levar baldes para recolher a água que gotejava.
Pedi ao senhor Hermínio para subir no telhado e arrumar. Fui eu quem invadiu o território deles. Mais recentemente, tive de suprimir algumas árvores para construir um muro de divisa com vizinhos e a macacada arrefeceu a bagunça no telhado. Esses macacos aprontaram tantas que viraram personagens de caderno especial.Salvaram-me muitas vezes. Valeu, macacada!
Banda icônica do rock de Brasília, a Plebe Rude completou 41 anos de existência e a história do grupo caminha com a relação dos amigos André Philippe de Seabra, 55 anos, e André X Mueller, 60. Os dois se conheceram há quase cinco décadas, quando o mais novo ainda era uma criança, mas eles não imaginavam o legado que criariam juntos.
Formada em 14 de julho de 1981, a Plebe Rude, viria a se transformar numa das principais bandas de punk rock do Brasil. O grupo, originalmente, tinha como integrantes Philippe Seabra (guitarra e vocal), André X (baixo), Ameba (guitarra) e Gutje (bateria). Tempos depois, os dois últimos foram substituídos por Clemente e Marcelo Capucci. A Plebe chegou a lançar sete discos de estúdio e dois gravados ao vivo.
André veio de Curitiba para a capital em 1970, com os pais que eram professores da Universidade de Brasília (UnB). Por um tempo, o baixista morou na Colina, onde conheceu a maioria da galera da “Tchurma”, composta por jovens que mais tardar viriam fundar outras bandas como Aborto Elétrico, que posteriormente deu origem Capital Inicial e Legião Urbana, Blitx 64, Metralhas e outras.
Quando se mudou dos Estados Unidos para o Distrito Federal, em 1976, Philippe Seabra tinha apenas 9 anos e sequer falava português. Filho de um diplomata português com uma paraense, a família decidiu vir para o Brasil para que a mãe de Seabra ficasse perto da família, já que o avô dela era deputado em Brasília. Segundo ele, só começou a se sentir brasiliense quando conheceu a famosa Tchurma.
Os dois amigos se encontraram por meio de Alex, irmão mais velho de Philippe. “Ele era amigo do meu irmão e eu era mais aquele pirralhinho que ninguém dava bola”, brinca Seabra. No Lago Norte, as duas famílias moravam na mesma quadra e os mais velhos iam para a escola juntos, mas André e Philippe não se aproximaram de cara por conta da diferença de idade.
Depois de alguns anos, em 1978, André X se mudou com a família para a Inglaterra, onde a mãe faria um doutorado. “Foi bem na época da explosão do punk, então eu ficava gravando as bandas novas na rádio e mandando para o Alex, só que ele meio que ignorou. Mas o Philippe não, ele pegou e começou a tirar essas músicas na guitarra”, recorda o baixista.
Quando voltou para Brasília, André estava determinado a montar uma banda e começou a busca pelos integrantes. “Um dia eu estava na casa do Alex e ouço alguém tocar o Stiff Little Fingers, que é uma das bandas que a gente adorava. A pessoa estava tocando direitinho. Daí Alex me disse que era o irmão dele. Convidei o Philippe e desde então estamos aí, há mais de 40 anos andando juntos na Plebe.”
O professor aposentado de arquitetura da Universidade de Brasília (UnB) José Carlos Coutinho chegou a Brasília em 1968, com 33 anos, a idade de Cristo. Podia ser uma crucificação vir morar num lugar ermo, mas foi uma ressurreição. Veio de Porto Alegre para dar um curso de seis meses e nunca mais voltou, tornou-se um brasiliense de corpo e de alma. Ele é uma das figuras mais elegantes, distintas e admiradas da cidade. Frequenta os principais eventos culturais de Brasília e o amigo Vladimir Carvalho espalhou a versão de que ele já foi visto em três lugares ao mesmo tempo. Nesta entrevista, ele fala sobre a singularidade das relações de vizinhança, os lugares encantadores e as ameaças ao futuro de Brasília.
Antigamente, as pessoas não ficavam em Brasília nas férias e, quando podiam, nem nos fins de semana. Como cidade rompeu os estereótipos e passou a criar uma identidade?
Existem os hóspedes da cidade, mas a cidade cresceu muito e tem um contingente que permanece e abraçou a cidade. Quer sossego, recolhimento. E Brasília tem muitos lugares amáveis e acolhedores. Eu, por exemplo, não sinto falta nenhuma de sair da cidade.
Que lugares considera encantadores em Brasília?
Gosto muito do Pontão, dos parquinhos de entrequadras. Neste momento, estou na Praça das Carpas na 308 Sul, não existe isso em lugar nenhum. O que me encanta é a juventude, as crianças brincando, as mulheres passeando com seus cachorros. Acho encantador. O contraste entre as vidas que estão acabando e as que estão se iniciando. Hoje, há muitos programas atraentes na cidade. Ontem, fui à Escola de Música assistir a uma Missa de Bach, executada por um coral e orquestra. São aqueles momentos em que Brasília parece uma cidade e uma cidade civilizada. Tem bons cinemas, boa música, bons filmes. O Parque da Cidade é muito bonito.
Que lugar recomendaria para uma visita?
Recomendo ir até a Pedra Fundamental de Brasília, próximo a Planaltina. A maioria das pessoas nunca foi lá. Tem um horizonte de 360 graus, ali, você se sente senhor do mundo. O Lago não é só interessante no Pontal. Digo às pessoas que elas não se dão conta de que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza. Parece mentira que quase ninguém conhece o criador do Lago Paranoá. Foi uma pessoa que veio do Rio de Janeiro na Missão Cruls, chamado Auguste Glaziou. Não tem nenhuma uma homenagem no espaço urbano que lembra a sua existência. Está na hora celebrar Joaquim Cardozo (Joaquim Maria Moreira Cardozo foi um engenheiro estrutural que ajudou Oscar Niemeyer, além de ser poeta, contista, dramaturgo, professor universitário) ou Glaziou. Não precisa ser nada muito grandioso, bastava fazer um monumento. Gosto da Ponte do Arcos, que tem uma prainha deliciosa, bem popular, com acesso de ônibus para as pessoas simples fazerem piqueniques ou nadar. Se há algo popular, é lá. Sou um observador social, mais do que ver, gosto de observar e imaginar o que se passa com aquelas pessoas.
Como vê essa história de que Brasília não tem esquinas e as pessoas não se encontram?
Isso virou piada, não se pode reduzir as singularidades de Brasília. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar. Tenho um grupo de amigos que, todas as sextas, marca um ponto para se encontrar. Tem a Banca da Conceição, eu brincava com ela: “Você criou uma nova esquina de Brasília”. O habitante da cidade é muito criativo. A nossa obrigação é orientar para que seja para uma solução respeitosa do projeto urbanístico da cidade.
Brasília foi pensada para as pessoas usufruírem os espaços públicos, onde os vizinhos pudessem ter uma interação entre eles e as áreas ao redor. Essa ideia de Brasília persiste ainda hoje?
Criar um espaço urbano para permitir interações entre os que mora na mesma área não é invenção do Lucio Costa; é uma ideia tirada da sociologia urbana e do urbanismo americanos. A proposta era reproduzir em área pequena as relações de um lugar interiorano. Cada unidade deveria abranger em torno de 2 mil habitantes, com comércio, locais para lazer e escola. Mais do que local de ensino, ela é concebida como local de convívio. Muitos pais se conheciam em função das crianças. Isso funcionou durante algum tempo. Acontece que a população envelhece, as crianças se tornaram adultas e moram em outros lugares. Há um processo de transformação. Hoje, é preciso romper a barreira das relações virtuais. Algumas vezes, as praças estão vazias porque as pessoas estão na frente dos notebooks ou dos celulares, conversando com alguém da Finlândia. Isso é perigoso. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos constatou o declínio no QI da humanidade, um emburrecimento da humanidade por se fechar nos mundos virtuais.
Os clubes de unidade e de vizinhança têm um papel importante nessa mistura de gente vinda de várias regiões do país. Essa célula urbana deu frutos?
Apesar de tudo, as unidades de vizinhança completas das quadras 108, 308, 107, 307 formam esse quarteto importante, pois têm o jardim da infância, a escola primária e escola secundária, com a proposta de ensino em tempo integral, concebido por Anísio Teixeira. Tem igreja, cinema, restaurantes, comércio e clube. O clube, que antes atendia a população moradora, se tornou um equipamento como os outros, que acolhe pessoas de todos os lugares. Mesmo assim, é um equipamento agregador. É útil, trabalhei no Instituto do Patrimônio Histórico e promovi o tombamento das unidades de vizinhança mais completas. O Oscar começou a jogar basquete em um desses clubes. São equipamentos essenciais, mesmo que sofram um processo de transformação inevitável.
O que se perdeu e o que se evoluiu das ideias de Lucio Costa para a capital?
Eu acho que mais do que a Esplanada e a Praça dos Três poderes, a Unidade de Vizinhança é o ponto alto do Plano Piloto de Lucio Costa. Só lamento que seja privilégio de 10% da população de Brasília. Por que não ser extensiva das cidades satélites? Houve um empobrecimento da administração de Brasília que depauperou as propostas iniciais. Chegou haver um deputado que pediu a transformação das superquadras em condomínios fechados. É um absurdo, a ideia da superquadra é a de espaço público transitável em todas as direções. O piloti é um espaço público. Você atravessa o prédio, são graus de liberdade total do solo.
“Digo às pessoas que elas não se dão conta que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza”
Vemos nos anos anteriores à pandemia a volta das pessoas às áreas públicas da cidade, carnavais de rua, piqueniques e eventos de toda natureza… É esse o DNA de Brasília?
Acredito que sim, a tendência das pessoas é ocuparem os espaços públicos. Gosto muito do Setor Comercial Sul, é bonito ver a travessia da população trabalhadora. Os espaços dos shopping centers são expressão do enclausuramento da vida pública. Morei algum tempo na Inglaterra e visitei um shopping-center que era agradabilíssimo no início. Era unidade fechada, climatizada, com jardim e canto dos pássaros. Mas, depois, percebi que o jardim era artificial, as árvores eram de plástico e os cantos eram gravados. Quer dizer, estávamos no admirável mundo novo. Não tem nada a ver com o plano de Brasília, que contempla uma escala bucólica maravilhosa.
O antropólogo James Holston, autor de Brasília: Cidade modernista, disse que a cidade era triste. Como percebe as ideias dele?
Olha, conheci o James Holston. Ele chegou a Brasília com ideias prévias e não encontrou a Brasília que imaginava. Em vez de rever suas ideias, passou a negar Brasília. Lamentava, por exemplo, o tipo de vegetação das superquadras, pois ficou muita alta e ocupava o espaço dos edifícios. Mas eu acho que isso é uma sorte: tem edifícios que precisam de árvores bem altas para formar uma cortina verde que os proteja do sol e do barulho.
Como vê o futuro de Brasília? Não existe uma séria ameaça de que a escala bucólica da cidade e a qualidade de vida sejam comprometidas pela concepção rodoviária dos governantes?
Concordo inteiramente, haja vista a macarronada que fizeram no Sudoeste, invadindo o Parque da Cidade. É uma mentalidade rodoviarista. Está na hora de pensar a cidade com uma outra lógica de transportes. Já estão falando em duas novas pontes e em uma avenida interbairros no Lago Sul. Não são apenas soluções técnicas, são soluções financeiras. São obras de que os empreiteiros gostam muito. Os beneficiados não serão os motoristas, mas, sim, os empreiteiros e as imobiliárias. Sou pela simplificação do trânsito e pela primazia ao transporte coletivo. Não tem maior absurdo, a lógica seria os carros diminuírem de tamanho para ocuparem menos espaços. Mas o que a gente observa são veículos cada vez mais gigantescos, cada vez mais parecidos com ônibus individuais. Falta bom senso e políticas públicas. Esse é o verdadeiro sentido da política: estimular as boas tendências.
“Essa história de que Brasília não tem esquinas virou piada. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar”
O grupo se organiza, entre a vegetação, para montar o acampamento. Os mais velhos orientam os “lobinhos” sobre como dividir as tarefas, a maneira correta de acender a fogueira e estruturar as barracas. Os escoteiros, além de aprenderem sobre como lidar com situações de perigo e sobrevivência, também são instruídos com ensinamentos e valores como lealdade e ajuda ao próximo. O Grupo Escoteiro Lis do Lago nasceu em Brasília há 38 anos e desde então tem uma história de atuação com os moradores do Lago Norte e de diversas regiões administrativas da capital. Rafael Werneburg começou a prática do escotismo aos 10 anos de idade, e hoje, aos 26 anos, o morador do Lago Norte atua como voluntário, auxiliando a nova geração de escoteiros da capital federal.
“Minha mãe tinha uma amiga que trabalhava no grupo de escoteiros e ela queria apresentar o movimento para mim, nessa época, ainda nem morávamos no Lago Norte”, conta. Rafael afirma que fez muitos amigos ao longo do período que esteve no grupo de escoteiros. “Muitos que tenho afinidade até hoje. São vínculos que vão se construindo e ficando para a vida, porque ficamos muito tempo em atividades e acampamentos e isso fortalece a relação, principalmente porque no escotismo aprendemos a valorizar muito as amizades que construímos”, destaca.
Em retrospectiva, o químico confessa: “ser parte do grupo de escoteiro moldou todos os aspectos da minha vida, seja com relação ao trabalho, interpessoal, seja as escolhas profissionais. No movimento escoteiro se busca desenvolver aquilo que mais interessa à criança e ao jovem e eu tinha muito interesse em ciência exatas. Foi no grupo que aprendi a aplicar o conceito de liderança, por exemplo, porque precisamos estar à frente de outras pessoas, das patrulhas e matilhas. Foi o grupo que trouxe ferramentas para que eu expressasse essa liderança de forma saudável”, opina.
Ao longo de anos no grupo de escoteiros, Rafael fez uma amizade que ultrapassa somente os acampamentos. Lívia Maia, 26 anos, administradora e moradora do Lago Norte entrou no Lis do Lago aos seis anos e meio, em 2006. “Fiquei no movimento a minha vida toda e me afastei quando tinha 22 anos, mas meu irmão continua no escotismo. Conheci o Rafael logo quando ele entrou. Penso que a amizade de escoteiro é uma amizade diferente, porque passamos por muitas situações complicadas juntas. Vamos a acampamentos em que a barraca rasga, fazemos viagens que duram semanas e é natural que nesse tempo aconteça algum perrengue. É uma amizade em que a pessoa fica muito próxima de ser alguém da família”, avalia.
Lívia confessa: “a amizade minha e do Rafa foi se construindo ao longo da vida inteira e ainda estudávamos na mesma escola, então isso estreitou ainda mais a nossa relação. Já acampamos, inclusive, em outros países, chegando a ficar meses viajando. O mais longe que já fui foi na Islândia. E acho que um dos episódios que marcaram muito foi quando estávamos acampando e de madrugada passou um cupinzeiro atravessando o acampamento e eles saíram rasgando as barracas. E o Rafael, que sempre foi responsável, começou a liderar e a ajudar os outros, levantando as barracas para que a gente não ficasse sem e orientando os mais novos, que ainda não sabiam o que fazer. Sempre tem esse espírito, dos mais experientes ensinar os outros o que eles devem fazer”, explica.
Desenvolvimento
Chefe de tropa, Deomar Rosado, 66 anos, começou no grupo como voluntário, para conseguir uma vaga para o filho, e desde então, se dedica ao Lis do Lago. “O escotismo trabalha as áreas de desenvolvimento social, afetivo e espiritual, com a realização de educação lúdica em espaços abertos. Estou no grupo há 30 anos e a gente realmente se engaja, as famílias participam, se cria um vínculo de amizade entre todos que é muito forte”, revela.
Deomar detalha que o objetivo é que as crianças e jovens aprendam na prática os conteúdos. “Eles se organizam e entendem o conceito de equipe. Também é trabalhado a questão da sustentabilidade, de cuidar dos animais e das plantas, da biodiversidade. E sempre buscamos os adultos voluntários. Além disso, em cada faixa etária existe um ponto a se desenvolver, nos mais novos, há a fantasia; nos adolescentes, focamos no vínculo e amizade; nos jovens de 15 a 17 anos, tem a questão do empoderamentos e dos desafios; e a partir dos 18 anos, eles começam a querer ser pioneiros, porque estão entrando na faculdade, estão no serviço, então existe muito trabalho focado na autonomia”, afirma.
Antes da pandemia, o grupo tinha cerca de 140 escoteiros, mas atualmente, as atividades estão voltando aos poucos, segundo Deomar. “Temos cerca de 90 escoteiros na ativa, e 25 voluntários adultos. Nosso objetivo é retomar as atividades, principalmente essa carência por adultos voluntários, porque quanto mais temos, maior o número de crianças que podemos monitorar no acampamento”, explica.
Tradição
Na família de Lívia, participar do grupo Lis do Lago é praticamente uma tradição. “As minhas irmãs que têm mais de 30 anos, foram escoteiras, e meu irmão, que hoje tem a metade da minha idade, está com treze anos, é escoteiro. Então o Lago Norte é realmente ligado pelo Lis do Lago, e toda uma geração familiar também se une devido ao escotismo. Minha mãe até hoje está muito envolvida nas atividades do grupo”, admite.
Para Rafael, além da vivência no grupo de escoteiros, um cartão-postal de Brasília também marcou a sua infância. “Até fiquei recentemente morando em São Paulo, mas voltei para Brasília. Aqui tem um diferencial, gosto muito da organização da cidade, da forma como ela foi construída e tenho uma memória afetiva muito forte com a cidade, principalmente com a Torre de TV. Antigamente, a feirinha ficava bem embaixo da Torre e sempre íamos lá no fim de semana. Isso sempre foi algo que ficou marcado, acho que tanto pelo visual da Torre em si, mas também por ser um lugar que a gente (pelo mirante) consegue ver a cidade inteira)”, pondera.
Os meninos pintam no rosto um bigode que simula a barba que ainda vai crescer, enquanto as moças, de chiquinha, bochechas coradas com maquiagem e pintinhas marcadas de lápis de olho rodopiam com os vestidos coloridos e rodados. De chapéu de palha, a quadrilha entra ao som das músicas típicas e ao grito de “olha a cobra”, todos pulam. É festa junina! Para os moradores da SQS 213, do Bloco A, o festejo é uma tradição com quase 30 anos de história. “Os três primeiros anos, praticamente, era apenas uma festa para os nossos filhos, depois foi crescendo, e o bloco G começou a nos ajudar. No fim, fizemos 29 edições. Paramos por causa da pandemia”, conta João Matos, 80 anos, servidor público aposentado.
João relembra que foi a filha, Patrícia, que deu o primeiro impulso para o surgimento da tradição do arraial. “Aqui no prédio temos muitos nordestinos e gaúchos. Eu sou do Ceará, por exemplo, e todo mundo é muito animado para festejar. Minha filha também era festeira e, brincando com as crianças, inventaram de fazer uma quadrilha, e nós, os pais, acabamos incentivando a animação deles”, detalha.
Outra moradora que atuou nos quase 30 anos de festa, Eliane Abreu, 73, servidora pública aposentada do GDF (Governo do Distrito Federal), lembra que as crianças se dedicavam na produção de bandeirolas feitas com jornal e revista. “Fizemos algo simples nos dois primeiros anos, somente para os moradores do nosso bloco. As crianças dançavam a quadrilha e os pais desciam, cada um com um prato: trazíamos bolo, pipoca e balas doces”, revela.
Rapidamente, o espírito de São João cresceu e tomou proporções maiores. “Uma das moradoras, muito animada aqui do bloco, começou a descer com violão para tocar com as crianças e então começamos uma quadrilha também com os adultos. Aos poucos foi se formando as barraquinhas, de canjica, galinhada, feijão tropeiro, tudo feito pelos próprios moradores. Quando percebemos, a festa tinha tomado outro ar e precisávamos até pedir autorização para o GDF para realizá-la. Não era mais só uma festinha de criança, como começou”, afirma João.
Eliane diz que o foco era reunir as famílias da quadra. “Lógico que quem passasse e quisesse participar era bem vindo. E isso foi se tornando cada vez mais comum, a nossa festa unia a quadra toda, e quem vinha uma vez, cobrava a festa no ano seguinte e a comemoração começou a ficar famosa. Só não fizemos nos últimos anos por causa da pandemia”, ressalta.
Compromisso
Responsável por fazer o cachorro-quente para a festa, Eliane relembra o que considera os melhores momentos do grupo: “a noite de véspera”. “A festa tem uma comissão organizadora, que tem entre 15 e 20 pessoas. No início, precisávamos fazer várias reuniões para organizar tudo, e como não tínhamos salão no nosso bloco, as reuniões eram feitas a cada dia, na casa de uma pessoa. E isso era por si só muito animado. Ao fim, a pessoa servia um jantar, e era uma diversão só”, conta.
A realização do evento, contudo, demandava um grande esforço dos organizadores, com dias dedicados ao preparo dos alimentos, compras e licenças necessárias. Eliane e João, apesar disso, recordam com alegria das noites que o grupo passava, praticamente em claro, para conseguir preparar as comidas típicas. “A gente precisava na noite anterior se reunir na casa de alguém para cortar a charque, a cebolinha, preparar a carne para o espetinho e cortar a cebola. Quem não tinha dado reunião na sua casa, trazia a comida daquele dia que seria a nossa refeição. Era muito trabalhoso, mas ao mesmo tempo era divertido. A esposa do João, por exemplo, era responsável por temperar a canjica. Meu esposo era quem cuidava das finanças da festa, porque ele é auditor fiscal”, acrescenta Eliane.
Aos poucos, a Comissão pegou o ritmo da organização do evento e não precisava de tantas reuniões. “A gente já tinha um script a seguir. Mas a cada ano, anotamos os erros e acertos e conversamos ao fim da festa para ver o que não devíamos fazer e o que tinha funcionado. Para que no ano seguinte, fosse ainda melhor”, pontua a aposentada.
João revela que, com o passar do tempo, como os moradores foram envelhecendo, o grupo decidiu diminuir o número de afazeres manuais. “Antes, a gente montava as barracas e cavava os buracos para erguê-las. Mas do meio para o fim, percebemos que não dava mais, então compramos a estrutura de metal. Temos até hoje as lonas, as barracas, o fogão e a churrasqueira guardadas”, salienta.
Solidariedade
Em dois grandes álbuns, parte da história da festa junina da SQS 213 é eternizada. Um deles é um arquivo com os diversos documentos de cupons fiscais, rendimentos das festas, gastos e atas das reuniões. O grupo, inicialmente, teve dúvidas do que fazer com o valor arrecadado no arraial até que tiveram a ideia de doar o valor para alguma instituição de caridade.
“A gente decidia tudo em votação. E quando decidimos pela festa não sabíamos o que fazer com o excedente, então um morador sugeriu doar e todo mundo apoiou”, recorda. “Mas antes disso, para levantar o dinheiro que seria investido, cada membro da Comissão emprestava um valor nessa etapa inicial. A festa era feita no sábado, e no dia seguinte, no domingo, já pagávamos, para cada um, o que tinham emprestado. Nunca nem um morador ficou sem receber. Logo depois fazíamos uma reunião de rendimentos e do que tinha sido gasto, e escolhíamos para qual entidade seria destinado a doação”, explica.
Já o segundo álbum, guardado ainda com mais esmero, é um convite à memória. A cada página, as fotografias contam a história dos moradores: um vínculo que vai além da festa junina, que se traduz em amizade entre os residentes do Bloco A e também de afeto com a capital do país. “Vim para Brasília para passar somente um ano, cheguei em 2 de novembro de 1981, saindo do Espírito Santo com meu esposo. Hoje, mesmo visitando meus familiares que moram lá, logo quero voltar. Meu lugar é aqui, onde criei meus filhos. A gente acaba se apegando. As pessoas falam que aqui não tem praia, mas eu não sinto falta”, frisa.
A síndica do Bloco H da 210 Norte, Silvia Perez, 58 anos, idealizou — junto aos moradores do edifício — eventos que proporcionam uma melhor convivência e funcionam como uma válvula de escape para momentos difíceis, como a pandemia. Empatia, preocupação e interação. São essas as palavras que, talvez, possam definir a união entre Teresa Cristina, 59 anos, Silvia Perez e todos os moradores do Bloco H.
As duas vizinhas entram em cena como as principais cabeças por trás de eventos que acontecem no prédio, que são criados com a intenção de gerar mais aproximação entre os moradores. Apesar de não ter mais residência no edifício, Silvia se mantém como síndica, com aprovação dos vizinhos, e conta que a primeira ideia surgiu quando ainda morava na quadra. “Há algum tempo, fiz uma iniciativa que se chamava ‘entre vizinhos’, e era justamente com a pretensão de estimular os moradores a se conhecerem e conviverem”, comenta.
“Nós fazíamos a preparação para os eventos, decidindo sobre decoração e o que seria servido, por exemplo. Isto já era algo muito positivo, porque as pessoas acabavam se conhecendo durante as reuniões e amizades acabaram sendo feitas”, relembra. Teresa, que ainda mora no edifício, é uma das que criou amizades com os primeiros eventos. “Uma vizinha do meu andar foi embora para Curitiba, mas mantemos a amizade até hoje. Também teve uma professora belga, que veio para cá fazer doutorado na Universidade de Brasília (UnB) e acabei criando uma boa relação”, relembra.
Aproximação essencial
Com a pandemia, Silvia diz que todos os moradores passaram a se preocupar uns com os outros, momento em que tiveram a ideia de criar mais um evento, para manter a interação, mesmo em um momento de pouco contato. “Além de imprimir algumas rotinas, como fazer telefonemas, tivemos a ideia de fazer o “troca-troca” de livros, em 2021, que foi muito bem aceito por todos”, frisa. Teresa lembra que foi tudo feito no improviso. “Conseguimos uma base de madeira e colocamos os livros nela, dividindo de acordo com o tema de cada um, tudo no protocolo de segurança sanitária. Quem pegava o livro, não tinha a obrigação de devolver e, o saldo que ficou, nós doamos. Passaram por aqui, cerca de 400 títulos diferentes”, destaca.
Para Silvia, o evento foi muito significativo. “A gente via pessoas que nunca tinham saído de casa, desde o começo da pandemia, descer com um livro e voltar com outro. Isso me fez pensar que os moradores estavam receptivos a buscar algum tipo de integração”, pondera. “É muito importante porque, principalmente durante a pandemia, a tensão foi tão grande, que vimos muitas brigas entre pessoas que moram próximas e, esse tipo de ação, diminui muito o atrito. Foi algo bastante legal, pois estávamos em um momento difícil, tudo fechado e, de repente, acha-se um jeito de fazer a interação entre os vizinhos”, considera Teresa.
Outros eventos
As duas reforçam que não foi só o troca-troca de livros que teve êxito nas intenções de integrar. “No carnaval que antecedeu a pandemia, em 2020, eu e a Silvia bolamos uma decoração. Fomos em Taguatinga comprar os adereços e, enquanto estávamos arrumando, o pessoal passava e se empolgava, perguntando o que iria acontecer”, detalha Teresa, que brinca afirmando que “a grande vantagem de fazer um evento como esse, no pilotis do prédio, é que o pessoal não precisou se preocupar com blitz (risos)”.
“Esse ano, no feriado de carnaval, com as pessoas vacinadas e tendo menor receio de sair de casa, tivemos a ideia de fazer um evento de habilidades pandêmicas. Cada um trazia algo que aprendeu e/ou aprimorou nesses dois anos de isolamento. E acabou virando um sarau, teve até violino”, lembra. Silvia revela que mais uma iniciativa de integração deve acontecer em breve, também com a essência da troca entre os moradores. “Qualquer coisa que a pessoa tenha e não queria mais, ela poderá trazer para doar. Sempre na intenção de propiciar a integração, pois, se a gente conseguir que duas pessoas, pelo menos, participem, já é algo interessante”, torce.
Além disso, a síndica do bloco comenta que, devido ao sucesso que os eventos fizeram, existe um planejamento para criar uma espécie de cronograma. “A ideia é tentar propiciar uma frequência maior nesses momentos de interação, para aproximar mais os vizinhos. Até porque, eles são as pessoas mais próximas que a gente tem aqui”, reforça.
Efeito positivo
Quem aproveitou os eventos foi a advogada Marta Simone do Carmo, 47. “As interações foram de grande ajuda. Na pandemia, também estava receosa em sair de casa e, agora nesse período mais ameno, trazer essa possibilidade de confraternização entre vizinhos novamente, é algo que faz a gente se sentir vivo outra vez”, afirma Marta.
Para ela, o bloco onde mora contribui para a criação desse tipo de iniciativa. “Penso que existe uma coisa muito especial. Todos têm uma preocupação muito grande em fazer essa troca, essa conversa”, considera a moradora. A advogada afirma que participar dos eventos foi uma experiência única. “Agregou muito na questão da valorização da convivência entre vizinhos, na amizade e na solidariedade. Além disso, quando colocamos os registros nos grupos, faz com que outros também se interessem em participar”, aponta.
A ocasião faz o esportista. Não são raros os casos de craques de diversas modalidades que começaram no esporte pela comodidade de ter um espaço para praticar perto de onde moram. Para provar que a proximidade entre a casa e a quadra faz toda a diferença, o bairro do Noroeste apostou em campos de areia no intuito de incentivar os esportes de praia. O resultado foi positivo. As vizinhas Ester Mauch, 33 anos, Ana Cláudia Gomes, 35, e Beatriz, 35, se tornaram adeptas do beach tennis, ou tênis de praia, febre no bairro.
Em 2020, o mundo parou. A pandemia freou a sociedade e aboliu, por tempo indeterminado, o conceito de reuniões, especialmente em locais fechados. Aqueles que gostavam de se exercitar nos ginásios e academias sofreram um impacto a mais. No primeiro momento, as atividades físicas ficaram restritas aos quintais e salas de estar, que tiveram os sofás arrastados para o canto para se tornarem academias improvisadas.
Com um melhor entendimento da covid-19, as atividades ao ar livre foram paulatinamente liberadas. Ainda sem poder frequentar a academia, as vizinhas Ester, Ana Cláudia e Beatriz avistaram, da janela do prédio no Noroeste, uma nova possibilidade. Elas ainda não sabiam, mas a caixa de areia de pouco mais de 200 metros quadrados na praça traria um respiro frente às dificuldades vividas e mudaria a rotina das três.
Em pleno Cerrado, a fina areia branca confinada no paralelepípedo retangular emula a faixa à beira-mar. O calor, apesar de seco, nada deve ao clima litorâneo de verão. O beach tennis que leva, no nome, a palavra “praia”, achou uma nova casa bem longe de lá. O esporte, jogado por quatro pessoas, duas contra duas, funciona como uma mistura de tênis e vôlei de praia. A dupla de jogadores tem de passar a bola para o outro lado sem deixar que ela toque o chão dentro das quatro linhas. A lógica de pontuação segue a do tênis, dividida em sets e games. No Noroeste, contudo, há uma regra especial: que promova a socialização dos frequentadores.
Na ânsia de voltar a mexer o corpo e na comodidade de apenas precisar pegar o elevador até o pilotis, as três afundaram os pés descalços nos finos grãos e empunharam a raquete. O jogo cumpriu o prometido: fez o corpo suar e manter-se saudável; mas, além disso, trouxe um ouro escondido. O trio de vizinhas não se conhecia. Foi bem ali, resgatando a amistosidade de uma orla, que as três tornaram-se grandes amigas.
Hoje, o jogo é mero detalhe na relação. Ester, Ana Cláudia e Beatriz criaram um laço que vai muito além do campo e fazem, nas palavras de Ester, “de tudo juntas”, mas sem deixar de bater ponto nas sessões matinais do passatempo praiano. Pela frequência que as vizinhas vão à quadra, elas acabam por se encontrarem mais entre si do que com outras amigas que não praticam o esporte. Fica cômodo trocar confissões no banco de espera entre as partidas. À medida que as conversas avançavam, também progredia a proximidade. Hoje, as três já planejam uma viagem em conjunto, mas sem esquecer de colocar as raquetes na bagagem.
O trio não é caso isolado. Atualmente, o grupo de jogadores do bairro já soma duzentos participantes. Os equipamentos, comprados com a ajuda de todos, estão disponíveis para quem quiser a qualquer hora. Basta avisar os colegas e buscar na portaria do prédio. Se a luz das ruas já estiver prestes a ser apagada, basta acionar os holofotes instalados por eles e acionados por controle remoto. A pequena caixa de areia revolucionou um bairro inteiro. Mais do que 200 jogadores, o Noroeste ganha 200 vizinhos unidos. Neste caso, a ocasião fez a vizinhança.
*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira
Quando se encontram, um bom papo é certo. Os amigos Davi Andrade Bentes, 23 anos, Ricardo Bouvier do Nascimento Silva, 23, e Gustavo Araújo do Nascimento Santos, 23, se conheceram e se aproximaram por causa do basquete e, desde então, toda partida é regada de boas memórias e resgate de momentos marcantes que viveram juntos por causa do esporte.
Moradores do Sudoeste, começaram a jogar em uma escolinha há 15 anos e, de cara, se deram bem. “Todo mundo morava perto e a gente começou a ir para os rolês juntos. O basquete aproximou muito a gente, definitivamente”, conta Davi. O estudante Ricardo concorda com o amigo. “A gente estudava no mesmo colégio e não nos falávamos. Por causa do esporte a gente começou a se falar. Em 2008 nos aproximamos para valer.”
Ricardo brinca que a relação do grupo era bacana, porque o time era bom. “Era muito boa aquela época. A gente participava de campeonatos, estávamos sempre juntos”, completa Davi. Foram muitos momentos juntos e o que não falta são histórias para contar. “Teve uma vez, em um campeonato, que eu fiz uma cesta contra sem querer, mas querendo. Eu fui com tudo fazer a cesta e só depois vi que tinha confundido as cestas e fiz uma contra. Eles não esquecem e até hoje é motivo de zoação”, recorda Ricardo.
Apesar de ter cometido a gafe, Ricardo é exaltado pelos colegas porque graças a ele, que não errava um lance livre, o time ganhou um campeonato sub 12 contra o time do Vizinhança. “Foi bonito, cara. Ele não errava o lance. Foi engraçado porque a torcida adversária ficava gritando lá, xingando e ele nem aí, continuava acertando todas e concentrado”, conta Gustavo.
Os meninos chegaram a viajar juntos para um campeonato em Anápolis, em Goiás, mas acabaram perdendo. “Nosso time estava fraco e os caras lá eram gigantes. Mas foi muito legal”, acrescenta Davi. No entanto, Ricardo faz questão de destacar que o time chegou em muitas finais de campeonato. “Ganhamos vários, mas teve uma época que a gente jogava contra um cara que hoje virou profissional, aí ficou complicado para a gente. Aí ele ganhava todos os campeonatos”, afirma.
Nem só de vitórias viveu o grupo, por ter poucas pessoas no time, às vezes eles perdiam por não terem integrantes suficientes. “A gente sempre passava aperto no campeonato, porque na nossa categoria tinha poucas pessoas, então tínhamos que chamar o pessoal mais novo para completar e em outros, perdíamos por WO. Então era sempre muita apreensão porque não sabíamos se ia dar o número de pessoas mínimas jogar. Além disso, não tinha como revezar, então não dava para descansar, era o jogo todo direito”, lembra Davi.
Por cinco anos o grupo treinou junto no mesmo local e mesmo depois de terem seguido caminhos diferentes, a amizade continuou. “Do time, fomos os que mais nos aproximamos, continuamos amigos e nos encontrando para jogar. Depois entraram outros, fomos chamando mais uma galera. Mas por morarmos perto um do outro, facilitou bastante”, explica Rodrigo.
“Às vezes a gente não tinha nada para fazer e aí ficávamos andando pelo Sudeste”, recorda Davi. Como não dirigiam quando eram menores, eles se encontravam na rua e costumavam fazer uma programação nas quadras próximas. “Ficávamos trocando ideia depois do basquete, na maioria das vezes, embaixo do prédio de alguém. Foi legal crescer tendo vizinhos que gostavam da mesma coisa que eu”, completa Gustavo.
Nos últimos anos, a frequência das partidas diminuiu, tanto por causa da pandemia quanto por causa da faculdade dos três. “A gente está meio parado na questão do basquete, mas não paramos de jogar”, diz Ricardo. Mas Gustavo rebate e afirma que os poucos encontros não fizeram com que os amigos se afastassem. “É bom, porque mesmo a gente não encontrando muito para jogar, estamos sempre conversando porque acompanhamos campeonatos. A gente discute sobre basquete e sobre o desempenho dos times. Sempre temos assunto por causa do basquete.”
Um dos pais fundadores de Brasília tinha tanta fé nos vizinhos que planejou a criação de vários clubes para eles. Seriam as unidades de vizinhança e estariam localizadas a cada quatro superquadras nas asas Sul e Norte do Plano Piloto, como forma de oferecer lazer aos moradores, com quadras esportivas, piscina, campo de futebol e biblioteca.
Talvez tenham faltado vizinhos, porque só deu para fazer um, na altura das quadras sete e oito da Asa Sul. Mas na verdade é a confirmação de que a ideia de colocar tanto vizinho perto não rende confraternização e está mais para confusão, até porque vizinho é igual a irmão, diferente de amigo: a gente não escolhe. E ninguém mais mexeu com a ideia de fazer clubes para reunir a vizinhança — já chega a reunião de condomínio.
Não se sabe de onde Lucio Costa tirou a ideia utópica de que vizinho é o mesmo que amigo. Ele próprio não devia ser um bom vizinho. Homem de personalidade forte, não era conhecido pela expansividade; ao contrário, era cerimonioso e reservado. Mas era sábio e tinha consciência do risco que correu, quando disse que “a única coisa do planejamento é que as coisas nunca ocorrem como foram planejadas”.
Tem gente que dá muita sorte com a vizinhança, mas é uma loteria. O sujeito que mora embaixo pode gostar de ouvir pagode do Ferrugem na maior altura todo domingo de manhã; a senhora que mora em cima pode passar o dia usando sapato que parece tamanco, batucando no taco para lá e para cá; o rapaz do lado pode ser um amante selvagem, daqueles que arrancam gritos da parceira, matando o resto do prédio de inveja.
Acreditem: passei por tudo isso na Asa Norte, esse bairro que é quase uma entidade sobrenatural, de tanta coisa estranha que acontece por lá. Saudade.
O pior vizinho, no entanto, parece ser o mais comum em Brasília: aquele que finge que você não existe, faz as maiores festas, não te convida para nenhuma e, para piorar, no dia seguinte coloca as caixas com cascos dos melhores rótulos para o gari recolher, mas bem a vista, para causar inveja. Prefiro o vizinho que não cumprimenta, mas não faz festa.
Tenho um amigo que em menos de dois meses morando num conjunto já conhece todos da vizinhança; sabe até o nome dos cachorros. É caso raro. Quem mora em prédio ainda esbarra em elevador, na caixa de correio, na beligerância da reunião do condomínio). Mas quem mora em casa, ainda mais com esses portões eletrônicos, entra sem falar, sai sem dizer nada e nem olha para trás. Difícil achar um “bom dia”.
Mas há sempre aquele vizinho que envolve a gente. Gregário, consegue até mudar nossos hábitos. Ele vai se introduzindo, simpático, quase servil, sempre pronto para ajudar, quando você vê está abrindo sua geladeira.
Na minha rua tem a senhora da janela; fica só observando o movimento. Não sei o que faz com as informações que recolhe, porque a única fofoca era a do marido que de vez em quando gritava com a mulher, mas parou quando a polícia foi acionada — na verdade foi uma ameaça, mas valeu.
E tem o vizinho de todos nós, o estado de Goiás, que tem sufocado o DF todo com essa música sertaneja, o jeito das moças se vestirem e o dos rapazes de falar sem o menor respeito com as concordâncias verbais e nominais. “É nóis!”. Eu retruco: – É eles.