Maestro Cláudio Cohen divide paixão pela música com vizinho na Asa Sul

Irlam Rocha Lima

 Claudio Cohen ( azul ), maestro da Orquestra Sinfonica do Teatro Nacional e Paulo Roberto Nogueira, servidor público aposentado
Claudio Cohen (azul), maestro da Orquestra Sinfonica do Teatro Nacional e Paulo Roberto Nogueira, servidor público aposentado | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

A intensa atividade que desenvolve, como maestro da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, inviabiliza o violinista Cláudio Cohen manter uma agenda social. Ele se permite, no final de semana, fazer caminhada, tomar banho de sol e almoçar no clube que frequenta, sempre com a mulher Fabiane. Por vezes, o casal e o filho Bruno, de 12 anos, vão a algum restaurante próximo de onde moram.

Como os concertos da sinfônica voltaram a ocorrer regularmente, agora às 20h, de terça-feira, no auditório do Museu Nacional da República, Cohen divide o tempo entre o escritório da orquestra, que fica na Biblioteca Nacional, os ensaios no Cine Brasília, e o estúdio que mantém em casa, onde guarda livros, discos, partituras e filmes de concertos, além do violino italiano do século 19, que adquiriu em 1990.

Na sala do apartamento, localizado na 314 Sul, está instalado um piano. Segundo o maestro, quem mais o utiliza é o filho, que está recebendo aulas do instrumento, depois de ter estudado violino. “Bruno, talvez influenciado por mim, pretende levar adiante a carreira de músico”, comenta o pai-coruja. “Ficaria muito feliz se ele viesse se tornar um violinista ou um pianista”. observa.

Pela dedicação, praticamente exclusiva, ao ofício que exerce, sobra pouco tempo para o maestro interagir com os vizinhos do prédio onde mora. “Tenho boa relação com os moradores do bloco, mas não nos visitamos. Quase todos, sabem que sou maestro da Orquestra Sinfônica; e quando, eventualmente, nos encontramos, no elevador ou na garagem, a conversa gira em torno de música”, comenta.

Mas entre os vizinhos há um de quem ele se tornou amigo: o servidor público aposentado Paulo Roberto Nogueira. “Já conhecia o Cláudio, antes de ele vir morar aqui no prédio. Como sempre tive o saudável hábito de assistir aos concertos da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, me recordo dele da época em que era spalla (violinista principal). Mas, só nos aproximamos depois que ele veio morar aqui na 314. A primeira vez que conversamos foi num encontro casual na garagem. A partir daquele dia nos tornamos amigos”, lembra Paulinho — como ele é chamado pelos amigos —, que deixa claro a admiração que tem pelo maestro.

Espectador assíduo

“Depois disso, passei a ser um espectador assíduo dos concertos que o Cláudio rege e procuro conversar com ele depois das apresentações. Como sou leitor do Correio Braziliense, toda vez que o jornal publica alguma matéria sobre a orquestra, compro um exemplar a mais e levo para ele”, conta. “Costumo, também, presentear o pequeno Bruno com objetos referentes ao Flamengo, clube do qual tanto ele como eu somos torcedores”.

Fã, também, de Zé Mulato & Cassiano, Paulinho intermediou junto a Eduardo Araújo, então presidente do Teatro dos Bancários, o show comemorativo dos 40 anos da dupla, acompanhada por uma orquestra, sob a regência de Cláudio Cohen. “Aquela foi uma noite inesquecível, na qual a música sertaneja de raiz e a sonoridade erudita estiveram lado a lado, num concerto que entrou para a história do Teatro dos Bancários; e que vai ficar guardada na memória afetiva das pessoas que superlotaram aquele importante espaço localizado na entrequadra 314/315 Sul”, ressalta.

Embora destaque a simplicidade do amigo, Paulinho vê Cláudio Cohen como um intelectual, “capaz de discorrer com total familiaridade sobre a obra dos grandes mestres nacionais e internacionais da música erudita”, acrescenta.

 

As memórias de Maria do Carmo Manfredini, mãe de Renato Russo

Irlam Rocha Lima

A família Manfredini no apartamento da 303 Sul
A família Manfredini no apartamento da 303 Sul | Foto: Arquivo pessoal

Quando chegou a Brasília, em 6 de março de 1973, Maria do Carmo Manfredini, o marido Renato Manfredini e os filhos Renato Manfredini Jr. e Carmem Teresa Manfredini, inicialmente se instalaram num hotel, na Asa Sul. Logo depois passaram a ocupar um apartamento no Bloco B da SQS 303 — adquirido pelo patriarca da família.

Servidor graduado da presidência do Banco do Brasil, Renato Manfredini, por escolha própria, veio transferido pela instituição para a nova capital. “Estávamos vindo do Rio de Janeiro, onde morávamos numa casa, na Ilha do Governador. Dois anos antes, Renato e eu tínhamos vindo conhecer Brasília. Ficamos encantados com a cidade de grandes espaços, muitas áreas verdes e arquitetura futurista.

Sentimento semelhante tiveram o Júnior (Renato Russo) e Carmem Teresa. Olhando as vias e os prédio pelas janelas, quando entramos no Eixo Monumental, eles ficaram deslumbrados”, lembra Dona Carminha, como, respeitosamente, é chamada, mesmo por quem é próximo dela.

O apartamento, de sala ampla, quatro quartos e outras dependências, foi considerado ideal por todos os Manfredini. Um dos quartos, o ocupado por Renato Russo, se transformou inicialmente num espaço de estudos e, posteriormente, o local de trabalho, além de uma espécie de estúdio, do futuro líder da Legião Urbana. Antes de se dedicar profissionalmente à música, estudou jornalismo no Ceub, chegou a ser repórter da 105 FM (atual Clube FM, dos Diários Associados) e professor de inglês na Cultura Inglesa.

“Enquanto era garoto, o Júnior gostava de andar de patins embaixo do bloco e nos acompanhava quando íamos a restaurantes e à Associação Atlética Banco do Brasil (AABB). Mas depois só queria sair sozinho, para encontrar os amigos em vários locais, principalmente nas fotos, Maria do Carmo mantém no apartamento apenas alguns discos de ouro e platina recebidos por Renato Russo.

Crédito: Reprodução da Internet. Renato Russo, na Banda Aborto Elétrico.
Renato Russo, na Banda Aborto Elétrico | Foto: Reprodução

A matriarca diz que sempre teve ótima relação com os vizinhos, embora não costume visitá-los. “Mesmo quando o Júnior aprontava, eles relevavam”, comenta. Mas deixa claro que entre os moradores do bloco é com Margarida Custódio, moradora de apartamento localizado no piso abaixo do dela, que mantém amizade mais longa e fraternal.

Receitas culinárias

“Somos vizinhas e amigas desde 1975, embora não nos encontremos muito. No período da pandemia, então, ficou ainda mais difícil. Mas, nos falávamos por interfone ou por telefone quase todos os dias, a respeito de assuntos diversos, inclusive sobre receitas culinárias, coisa comum a duas donas de casa, que gostam de cozinhar”.

Viúva de de José Darcy Custódio, também servidor do Banco do Brasil, Margarida Custódio mora no bloco B da 303 Sul desde 1972. Mãe de cinco filhos, só um deles, servidor do Supremo Tribunal Federal, mora com ela. Embora, com alguma frequência, receba a visita dos outros filhos, da nora e dos netos, é com Dona Carminha que mais bate papo.

“Vizinhas, nos tornamos desde que ela veio morar aqui há quase 50 anos. Durante esse tempo todo, nunca tivemos nenhuma desavença. Nos distanciamos um pouco quando ela foi morar com a filha Carmem Teresa num condomínio no Lago Sul. Mas mesmo naquele período, nos falávamos por telefone”, recorda-se Margarida. “Depois que voltou para o bloco, as conversas, quase que diárias, por interfone, foram retomadas. Sempre que faço pão de queixo, levo pra Carminha”, diz, tomando esse gesto prosaico como um elo entre ambas.

O que é moderno e o que é eterno em Brasília? Arquiteto Frederico Holanda responde

Severino Francisco

Brasília Moderna e eterna
Frederico Holanda: ele é professor emérito da UnB e pesquisa Brasília há mais de 50 anos. Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

Arquiteto e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Holanda chegou a Brasília em 1962, em um Fusquinha, envolvido nas nuvens de poeira. Teve a impressão de entrar em uma cidade intergaláctica. Nunca mais parou de pesquisar a cidade. Os elogios de Frederico a Brasília têm credibilidade, porque ele é um crítico agudo do que chama espaços de exceção, espaços que isolam funções da cidade em Brasília. E, nesta entrevista, ele mostra como Brasília é o modernismo transformado em cidade, espicaça os espaços de exceção, sustenta que o Itamaraty é o prédio mais importante da história da arquitetura e fala do que é moderno e do que é eterno no desenho de Lucio Costa.

Brasília é o modernismo transformado em cidade?

Sim, mas Brasília não é a primeira. Chandigard, projetada por Le Corbusier, na Índia, é de um pouco antes. Mas Corbusier brigou com os indianos, a cidade projetada não é exatamente a que está lá. Eu diria que Brasília é a primeira grande materialização inteira, exaustiva e completa do modernismo transformado em cidade. Os europeus e os norte-americanos têm uma dor de cotovelo do cão por causa disso. Nunca fizeram nada parecido.

O título de um livro seu é Brasília cidade moderna, cidade eterna. O que é moderno e o que é eterno em Brasília?

É um título provocativo, falam que Brasília é a cópia, escarrada e cuspida, da Carta de Atenas, manifesto da arquitetura modernista internacional. Sim, Brasília tem muita coisa da Carta de Atenas, de Le Corbusier: a unidade de vizinhança, os equipamentos públicos próximos da casa, a separação radical do fluxo de veículos da área residencial e a farta disponibilidade de área verde. Tudo está lá. Mas quando Lucio Costa cria a Esplanada dos Ministérios e as quatro escalas (monumental, residencial, a gregária e a bucólica), ele se afasta dos princípios da Carta. A famosa escala monumental era um anátema para os arquitetos modernos porque eles equacionavam esse conceito com fascismo e nazismo. Lucio Costa manda às favas esse tipo de preocupação e cria um espaço monumental por excelência, simbólico, que representa não só a ideia de capital, mas a da própria cidade. A gente pode apreciar esse cartão-postal do deck superior da plataforma da Rodoviária ou do mirante da Torre de TV. É isso que faz o link com o eterno.

O senhor formulou o conceito de espaço de exceção para descrever Brasília. Mas, ao longo do tempo, parece que a sua visão se relativizou…

Criei esse conceito durante a minha tese de doutorado. É a ideia que Brasília tem um espaço isolado para as funções da sociedade: a política, a cultura, a moradia. A Esplanada é um penduricalho na cidade, com vista privilegiada pela plataforma da Rodoviária. Não tem a cidade ao redor, como Washington ou o Champs-Élysées. É espaço livre, prédios, galpões e um pouco de embaixadas. A Esplanada é o espaço de exceção por excelência. E por que isso é criticável do ponto de vista ético? Porque isolo um determinado conjunto de práticas e conjuntos sociais que não favorece uma manifestação urbana. O que a gente vê é que tem uma apropriação subversiva nas margens pelo comércio ambulante que “macula” o espaço de exceção, pelo menos nos cinco dias úteis da semana. A minha crítica é do ponto de vista da urbanidade desejável.

Que espaços cumprem essa função?

Gosto de citar a Vila Planalto e o bairro de Copacabana. Você tem uma diversidade de classes sociais, trabalhadores manuais, classe média. É completa no sentido da urbanidade. Você tem toda a diversidade social em um bairro como tem na cidade. No espaço de exceção, só tem barnabé, alguma coisa de cultura no Museu, no Teatro Nacional defunto, nos rituais religiosos na Catedral Metropolitana. Ponto, acabou. Exceto, a pequeníssima subversão dos vendedores ambulantes.

E qual o aspecto que você julga importante no projeto de Lucio Costa para a escala monumental?

Ele resgata a dimensão dos espaços que os estetas chamam do sublime, monumental, é algo que causa assombro. Gosto muito do livro A arte de viajar, do Alain Botton, em que o autor fala sobre o espanto das pessoas em relação aos espaços amplos. Não cita Brasília; cita Versailles, Wasghinton, a paisagem de gelo dos polos, as areias do deserto, as montanhas nevadas, diante das quais não nos sentimos diminuídos ou massacrados, mas, sim, impelidos a realizar o melhor de nós. Isso está na base da explicação do nosso encanto ou assombro ou deleite com os espaços monumentais. Um espaço como a Esplanada dos Ministérios retira da cidade a vitalidade dos espaços públicos. Mas tem o outro lado, a monumentalidade nos causa deslumbramento, respeito, pasmo. O exemplo mais impressionante, que deu um nó em minha cabeça, é o de Teothioacán, no México. A chamada Avenida dos Mortos, construída 300 anos antes de Cristo, é extremamente parecida com a Esplanada dos Ministérios. O centro abriga palácios, templos e edifícios governamentais. Quando bota o pé, você arrepia e chora. É esse arrepio que a gente sente na Esplanada dos Ministérios.

Em discurso, ao receber o título de professor da UnB, você afirmou que o Itamaraty era o prédio mais importante da história da arquitetura. Gostaria de rever a opinião?

Não renego nada, repito o que disse em todos os lugares por onde passo. Para mim, o Itamaraty é edifício mais importante da história da arquitetura, é uma espécie de síntese de todos os aspectos. Primeiro, é um prédio ímpar, não só em relação aos palácios de Brasília, não só pelo concreto aparente. Como ocorre no Palácio do Alvorada, é uma mescla do Oscar dionisíaco com o apolíneo. Tem uma variedade estonteante de espaços no mesmo edifício. Quando você entra no Itamaraty passa pelo vestíbulo, sobe aquela escada solta no ar, passa por um jogo de contrastes que eu nunca vi. Eu me meto a dizer isso porque andei um bocado o planeta. Não conheço um edifício que te surpreenda a cada cinco metros do percurso. Tudo vem junto com uma edificação absolutamente simétrico, com quatro fachadas idênticas, rigorosamente moduladas por intercolunas, erigidas em uma planta quadrada. Por isso, digo que é um edifício clássico, faz esses resgates todos na tradição da arquitetura. O Palácio do Itamaraty é o Parthenon. Ao mesmo tempo, com inovações. Tem uma varanda, que é um espaço tradicional de socialização. Só que Oscar bota a varanda no terceiro piso, com um foco luminoso sobre o jardim de Burle Marx.

O que o caso das mudanças realizadas na Feira Torre de TV exemplificam?

Exemplifica uma visão de cidade extremamente perversa. A cidade se produz pelo que Raquel Solnik chama guerra dos lugares. Foi uma batalha perdida porque, assim como você ia com os seus filhos, a gente ia com os nossos. Os meninos soltando pipa, olhando areomodelo, comendo milho, comprando artesanato. A Feira da Torre se transformou em uma autêntica festa semanal. Fizemos uma enquete, a maioria dos frequentadores vinha das cidades-satélites e subia do Parque da Cidade para a Torre de TV. Eu tenho fotos. Era uma multidão. Essa festa surge muito sutilmente em função do mirante e das pessoas que sobem para ver a torre. Chamam o artesanato, os habitantes, as atividades complementares, as comidinhas regionais. É a sinergia da urbanidade, que se alimenta da diversidade de práticas sociais naquele lugar. Tem o lazer ativo e passivo. Os aeromodelos, as pipas e o patinete. E tem o lazer contemplativo, que é simplesmente olhar o cartão-postal, em uma das vistas mais privilegiadas de Brasília. Era isso junto que fazia o sucesso daquele lugar. E, mais importante que tudo isso, quando fizemos uma enquete na torre qual foi a principal razão? simplesmente ver gente e encontrar pessoas.

E por que acabaram com a Feira da Torre antiga?

É uma visão esteticista e equivocada. O principal argumento é que ela maculava a percepção do monumento projetado por Lucio Costa. É estúpida, não prejudicava coisa nenhuma. A feira do artesanato se beneficiava de toda aquela sinergia. O meu saudoso amigo Alfredo Gastal fez declarações de que a mudança da feira tinha o apoio do Iphan, porque maculava o monumento. Enquete feita por Gabriela Tenório com os feirantes mostrou que, de todos os problemas levantados pelos feirantes, nenhum estava relacionado à localização.

Qual a solução urbanística mais feliz de Brasília?

Eu acho que são as superquadras. Tem uma distinção que é importante fazer e a literatura quase não faz. As superquadras brasileiras não são cópias das superquadras corbusianas. As de Lucio Costa têm 80% de espaços verdes, têm escolas para os moradores. Apesar dessa grande quantidade de espaços verdes, tem uma certa continuidade espacial. Além disso, os prédios de Lucio têm seis andares; os de Le Corbusier têm 16. Na superquadra de Lucio Costa, você sente esse aspecto agradável de estar em um espaço aberto na sua vida cotidiana. Isso faz com que sejam as superquadras sejam extremamente apreciadas pela população. Dos meus 50 anos de Brasília, moramos de 1972 a 1976 e de 1980 a 2000, em superquadra, até nos exilarmos em um condomínio em Sobradinho. A socialização, o aproveitamento do espaço livre dos adultos e das crianças são muito apreciados. O James Holston escreveu no livro A cidade modernista que, inadaptada às superquadras, os brasilienses se mudaram para paisagens tradicionais, que são o Lago Sul e o Lago Norte. É um delírio completo. O centro da sociedade civil em Brasília que é péssimo. Quem pode aprovar aquele monte de viaduto, as diferenças de níveis, a situação dos pedestres obrigados a correrem de carros passando a mais de 80km por hora? É um horror. O valor do urbanismo de Brasília está na área residencial e no sublime da escala monumental.

No começo, tudo era poeira: a amizade que acompanhou Brasília crescer

Pedro Almeida*

Maria Elisa e Suely em frente ao Bloco D da 106 Sul: histórias compartilhadas

Por entre os galhos secos e tortuosos do Cerrado, em 1960, o Brasil ergueu uma nova capital. Àqueles que chegaram no início de tudo, restava abrir-se para o novo e construir laços numa cidade empoeirada e ainda quase deserta. Em um mesmo prédio residencial, cheio de desconhecidos vindos de várias regiões do país, havia a possibilidade de novas relações. Esse foi o caso de Suely de Roure e Maria Elisa Stracquadanio, que dividem o mesmo pilotis desde meados dos anos 1970.

Para a carioca Maria Elisa, 71 anos, servidora pública aposentada, a poeira da cidade e as lembranças se misturam. Com a mãe transferida para a nova capital em 1960, a então garota de 8 anos lembra-se de de ficar diante de um projeto de cidade tomado pelo solo escavado e com a terra vermelha à mostra. No primeiro dia, a família composta por mãe e filha se deparou com um apartamento vazio. A mudança havia se perdido no caminho. Com o frio que assolava a cidade naqueles invernos secos dos anos de 1970, e sem muitos prédios levantados para frear o vento, o jeito foi alojar-se dentro do guarda-roupas embutido para passar a noite. A história que se seguiu nos 62 anos de Brasília, contudo, se provaria muito mais calorosa.

No caso da paulista Suely, 74 anos, professora aposentada, o calor ardia. Moradora da Cidade Livre, local criado para abrigar os primeiros trabalhadores que erguiam Brasília e que viria a se tornar o atual Núcleo Bandeirante, ela conta que, por ser construída à base de madeira, a cidade sofria com incêndios. O temor pela segurança dos filhos tomou conta da mãe de Suely, que resolveu levar a família para Goiânia. Alguns anos se passaram até que ela decidisse dar uma segunda chance à nova capital. Desta vez, na 106 Sul, a mãe encontraria, na sombra atípica de um pinheiro, o frescor da tranquilidade e um local para que Suely chamasse de lar.

A menos de um ano da inauguração de Brasília, Juscelino Kubitschek havia cortado a fita do primeiro prédio residencial da cidade. O bloco “D”, da quadra 106 Sul, estava pronto e preparado para que, pouco mais de uma década depois, em 1975, a dupla desse início à duradoura amizade. Suely viu Maria Elisa constituir família e rememora os filhos e netos dela baterem à porta no dia de Cosme e Damião para pedir doces; Maria Elisa viu Suely crescer na Secretaria da Educação e, por amor, tomar a frente do prédio como síndica. Ela pode ser encontrada na pequena saleta ao lado da portaria. Maria Elisa diz, em tom de brincadeira, que o cargo é vitalício por direito.

Recepção

Quando juntas, as duas divagam por uma gama de assuntos de forma fluida. As questões da idade são intercaladas por memórias de 40 anos contadas com a precisão de quem as viveu semana passada. Das piadas aos assuntos sérios, não há meias palavras. A dupla detém, de cor, o mapa dos apartamentos distribuídos no corredor de cobogós. O nome dos moradores atuais, bem como os antigos, está na ponta da língua. Basta dizer os três dígitos referentes ao apartamento. Os moradores vindouros, claro, são muito bem-vindos e recebidos com flores e comida, como de costume.

A intimidade, porém, é uma via de mão dupla. Com quatro décadas de amizade, Maria Elisa e Suely têm abertura suficiente para discordarem, o que traz um tempero a mais nas reuniões de condomínio. Com posições, às vezes, distintas, as duas confessam que o clima pode esquentar. Tudo pelo bem comum, que é o amor pelo local que elas, há tanto, habitam. É claro que, do salão de reuniões para fora, reina o amor que elas construíram ao longo do tempo. Não demora e a dupla já está compartilhando confissões, pomadas e canjica mais uma vez.

 *Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Filho de pioneiros, Dom Marcony fala que diálogo é marca de Brasília

Arcebispo militar do Brasil, Dom Marcony Vinícius Ferreira é entrevistado pelo jornalista Carlos Alexandre de Souza, no programa CB.Poder

Texto: Pedro Marra

O diálogo é a marca de Brasília, segundo Dom Marcony Vinícius Ferreira, 5º arcebispo militar do Brasil. Filho de pioneiros, ele nasceu na cidade e afirma que uma boa conversa, com respeito e compreensão, faz parte dos brasilienses. Em entrevista CB.Poder — programa da TV Brasília em parceria com o Correio Braziliense —, desta quarta-feira (20/4), essa característica deve ser priorizada e vivida pelos moradores da Capital neste ano de eleição para combater a polarização política entre familiares, amigos e vizinhos.

“Diálogo sempre faz crescer, e as polêmicas desunem, porque cada um se segura no seu ponto de vista e não quer ver o outro”, afirma. Os pais de Marcony vieram do Rio Grande do Norte para a construção da cidade na década de 1960. “Somos pioneiros, candangos, nos alojamos na Vila Planalto, e estamos lá até hoje”, relata.

Naquele momento, ele foi chamado para o seminário menor, no ensino médio do Colégio Corjesu, na L2 Sul, para depois ingressar no Seminário Maior, na Igreja Nossa Senhora de Fátima, no Lago Sul. “Lá, fiz filosofia, teologia, e logo fui ordenado, em 1988 pelo Dom José Freire Falcão, cardeal da nossa cidade naquela época, que me designou a trabalhar em Sobradinho, na Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Fátima”, recorda.

Dom Marcony acredita que o lema da Campanha da Fraternidade 2022“Fraternidade e Educação”, é o que pode guiar o respeito e aproximação de pessoas com pensamentos opostos. “Na medida em que a gente se deixa levar pelo diálogo e pela compreensão de tentar entender o lugar do outro, a gente tem fraternidade”, destaca. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) é a entidade que organiza a divulgação da campanha religiosa.

Relação com militares

Em 12 de março, Dom Marcony Vinícius Ferreira foi nomeado pelo Papa Francisco como arcebispo militar de Brasília, até então bispo auxiliar de Brasília, como novo Arcebispo do Ordinariado Militar do Brasil. Desde então, ele conseguiu perceber a identificação dos integrantes da igreja para com os militares.

“O que nos aproxima muito dos militares e da igreja é a disciplina, a hierarquia e o sentido de obediência, em que não se tem discussões”, analisa o líder religioso. Dom Marcony destaca que se uma pessoa quer seguir a Deus, tem que fazer renúncias. “No campo militar, tem que estar 24 horas disponível ao país”, exemplifica.

Confira abaixo a entrevista completa no Youtube do Correio.

 

Transporte, saúde e energia eram as reclamações de Brasília na década de 60

Talita de Souza

O ditado “desde que o mundo é mundo”, usado para se referir a uma questão que foi estabelecida ou que ocorre há muito tempo, se encaixa bem ao se referir a problemas de alguns setores de serviços de Brasília. Transporte público, saúde e infraestrutura são as três áreas que mais provocam reclamações de moradores da capital nos dias atuais,  e também provocavam insatisfação desde a década de 1960.

Em um levantamento feito pelo Correio, a maioria das reclamações dos moradores da cidade em abril de 1962, mês e ano em que a capital completava apenas dois anos, feitas na Coluna do Leitor, se tratavam de falta de energia, mudanças de horárias repentinas no serviço de transporte público — ou até mesmo a falta do ônibus nas paradas — e falhas no atendimento médico. 

Naquele momento, há apenas dois anos do nascimento da capital, os poucos moradores que apostaram na nova capital e vieram doar as vidas para o projeto e para o futuro de Brasília, não perdiam tempo para exigir melhorias para a cidade. Com tom de seriedade, irritação e até mesmo deboche, os candangos rechearam as páginas do jornal com o que eles desejavam que fossem notícia: uma capital melhor e digna para todos.

Confira abaixo algumas das reivindicações feitas por meio do Correio nesse aspecto. 

TCB vergonha: morador diz que precariedade do serviço poderá levar usuários a fazerem “justiça pelas próprias mãos”

A Sociedade de Transportes Coletivos de Brasília (TCB), inaugurada em maio de 1961 como Transporte Coletivo de Brasília, era alvo de constantes reclamações em abril de 1962. Responsável pelo serviço de ônibus na capital, a empresa foi classificada como “vergonha de Brasília” pelos moradores. 

Em 3 de abril de 1962, David Lobo, morador da Superquadra 413, descreveu que a TCB tinha problemas desde o atendimento dos funcionários até a qualidade dos ônibus. “É uma tristeza observar-se que numa cidade tão bem traçada como Brasília dotada de todos os requisitos modernos, seja tão mal servida de transporte”, começou o brasiliense.

“Observa-se que os horários não são cumpridos, os trocadores são mal educados e os motoristas são grosseiros”, acrescenta. O tradicional problema do troco, dor de cabeça para cobradores e usuários de ônibus de Brasília, já era um fator de estresse naquela época, quando a moeda ainda era o cruzeiro. 

“Na linha JK-W3 o preço da passagem é de Cr$ 15, mas o trocador nunca tem Cr$ 5 para dar de troco. Se o passageiro reclama, é recebido com uma série de grosserias”, contou. O estresse também era presente na hora de pegar ou descer do ônibus: David afirma que os motoristas não respeitavam as paradas de ônibus e que “param onde bem entendem”. 

Com tantos pontos de insatisfação, David compartilha com os leitores do Correio que o estresse pode levar a uma medida radical. “Procurem melhorar essa situação pois, um dia quando a população começar a revoltar-se e fazer justiça pelas próprias mãos, irão dizer que são vândalos e sem educação”, termina.  

Funcionários da Caixa Econômica abandonados na W3: “Brasília vai se tornar odiada”

O drama de Fernando Carlos Xavier, morador da quadra 16, foi exposto em 13 de abril de 1962. De acordo com o homem, a TCB não tinha horários definidos e os motoristas passavam quando quisessem, o que fez com que fossem penalizados no serviço por chegarem atrasados. “Horário para os motoristas da TCB é coisa secundária, pois nunca obedecem”, ironiza Fernando.  Ele conta que já ficou por 40 minutos à espera de um ônibus que o levasse da W3 para a Rodoviária. Na carta, o homem pede a correção do problema sob pena de que “Brasília vai se tornar uma cidade odiada por aqueles que não possuem condução própria”. 

Paradas de ônibus “mal feitas” e ineficientes

Os problemas com transporte público também eram vivenciados fora dos ônibus: Dalton Lobo, morador da Superquadra 413, reclamou, em 10 de abril de 1962, sobre a estética das paradas de ônibus. Chamadas à época de “abrigos”, os locais foram classificados como “mal feitos” e “ridículos”. “Já viram como são ridículos os abrigos construídos para passageiros na av. W3?”, questionou o homem à redação e aos outros leitores do Correio. 

Além de feios, Dalton conta que as paradas não servirão para livrar os passageiros da chuva.  Ele pede que a Assessoria de Planejamento da época “reveja” os projetos de construção dos locais. “Brasília é uma cidade ultra-moderna que não comporta coisas mal-feitas”, finalizou o leitor na carta. 

Hospital não atende telefone, tem números fakes e deixa brasilienses na mão

Em época de Serviço de Atendimento Médico Móvel (Samu), pode ser incomum ouvir que para pedir uma ambulância na década de 1960 era necessário ligar para o hospital, em um telefone fixo, e torcer para ser atendido. A realidade da época foi revelada por Rafael de Mendonça, em 3 de abril de 1962. Na carta enviada ao Correio, Rafael fala sobre a falência desse sistema no Hospital Distrital, nome da unidade de saúde que hoje é o Hospital de Base. 

O morador da Asa Norte conta que o telefone geral do lugar não atende e, na tentativa de encontrar outros canais para ser atendido, ligou para os números listados como do Hospital Distrital no catálogo telefônico. A surpresa foi que os números, que tiveram a ligação prontamente atendida, não eram da unidade de saúde, mas sim de residências particulares. 

Rafael ainda reclama que não há na Asa Norte telefones disponíveis, apenas quatro espalhados por toda a extensão da localidade, o que dificulta ainda mais a tentativa de pedir socorro para um ente querido. Ele classificou como “desesperadora” a situação de saúde no local e pediu que as autoridades olhassem “com carinho” as críticas e tomem providências.

Onde dias depois, outra reclamação sobre os telefones do hospital foi registrada no Correio. Em 14 de abril, Manuel de Souza Lima, do Acampamento da E.B.E, direcionou a insatisfação com a telefonista da unidade de saúde. Ele afirmou que ligou para o pronto-socorro e a ligação não foi transferida, que caiu. 

Depois, tentou contato e não obteve êxito. Manuel conta que o caso era sério e não podia esperar e que “irritou-se, pegou um carro e levou a pessoa enferma ao hospital”. Ele pedia que a direção do hospital corrigisse o problema e classificou o serviço telefônico como “Inteiramente deficiente”. 

Portaria desumana: um pronto-socorro “que de socorro não tem nada”

Em 29 de abril, o relato de um pai de um bebê de seis meses trouxe angústia aos leitores do Correio. Juarez da Silva, morador do bloco 4 da Superquadra 105 contou que foi até o Hospital Distrital levar o filho que estava “necessitando de socorro urgente”. Lá, esperou cerca de 1h15 por atendimento, que, segundo ele, foi negado pela portaria do local, que classificou como “desumana”. 

Primeiro, o chefe de portaria exigiu documentos e depois afirmou que o bebê só seria atendido se fosse pago uma taxa extra. Juarez afirmou que pagaria o que precisasse porque queria que o filho fosse atendido. No entanto, o “desalmado porteiro” não encaminhou o menino para atendimento e o pai teve que ir ao hospital do Iapi (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários) porque “a criança piorava mais”. 

Juarez fez um apelo à direção do hospital “a fim de que procure um meio para humanizar o Hospital Distrital, principalmente o Pronto-Socorro que de socorro não tem nada”. 

Escuridão atrapalha o ir e vir dos brasilienses

Em 10 de abril de 1962, Meyer Wakimin expôs que as noites no bloco 16 da Asa Norte eram permeadas de escuridão, que causava insegurança e impedia o ir e vir dos moradores. O homem afirma que a falta de energia no residencial do IAPC torna “quase impossível às moças ou senhoras sair de casa”, porque além do “risco de serem assaltadas por malfeitores”, que, segundo ele, faziam morada no local, também poderiam cair em buracos nas ruas, problema recorrente no local. 

O mesmo problema foi relatado, também, em outra localidade de Brasília, o conjunto residencial JK, nas Superquadras 412 e 413. Em 13 de abril daquele ano, os moradores afirmaram que a iluminação precária feita apenas por lâmpadas comuns anexadas às paredes dos edifícios deveria ser trocada por um projeto de iluminação maior e mais abrangente. 

Os brasilienses que viviam no local afirmavam, ainda, que as lâmpadas por vezes queimavam e ninguém trocava. A mesma reclamação foi refeita no jornal quatro dias depois, em 17 de abril, dessa vez por apenas um morador, Daltro Lobo.

Em 28 de abril, foi a vez de Paulo Roberto reclamar da precariedade da iluminação na SQ 107, onde morava. O homem afirmou que os casais que andavam ali poderiam sofrer “atentado por parte de maus elementos” e pediu “enérgicas providências” para que o problema fosse solucionado. 

Todas as histórias relatadas aqui foram resgatadas das edições de 1962 guardadas no Centro de Documentação (Cedoc) do Correio Braziliense. O Correio se orgulha de fazer parte da história de Brasília! 

 

Veja as reclamações “curiosas” sobre Brasília na década de 1960

Falta de iluminação que dava um lugar para que casais promovessem “escândalo” no escurinho da superquadra 107, uma cadela raivosa mas com um dono “muito mais perverso” que fazia os cabelos dos moradores da quadra 17 se arrepiarem, e a falta de variedade no cardápio de um restaurante perto da Igrejinha eram algumas das variadas e curiosas reclamações recebidas pelo Correio no quadro Coluna do leitor, em abril de 1962. 

Há apenas dois anos do nascimento da capital, os poucos moradores que apostaram em Brasília e vieram doar as vidas para o projeto e para o futuro da cidade não perdiam tempo ao exigir melhorias. Com tom de seriedade, irritação e até mesmo deboche, os candangos rechearam as páginas do jornal com o que eles desejavam que fosse notícia: uma capital melhor e digna para todos. 

Confira uma seleção dessas reivindicações preparada pelo Correio em comemoração aos 62 anos de Brasília:

Comida “racionada e intragável”

Em uma terça-feira de abril, no dia 3 daquele mês em 1962, a página 6 do Correio recebeu uma reclamação deveras válida: um trabalhador que não aguentava ter a principal refeição do dia composta por alimentos “racionados e intragáveis”. 

Reinaldo J. Vieira foi o dono da reclamação contra o restaurante Americana, localizado, à época, perto da Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima. O homem afirma que a comida era servida no prato e, por isso, era feito como os donos desejavam — a contragosto de Reinaldo. De acordo com ele, o menu da casa não era variado, era sempre “um pouquinho de arroz, feijão preto e dobradinha”. “A comida que servem aos fregueses, além de ser racionada, é intragável”, disse na carta.

De acordo com o reclamante, a falta de variedade e o fato de ser “pouco substanciosa” torna a comercialização do restaurante uma “exploração e caso de polícia”. “Convenhamos, é exploração e caso de polícia. Urge, portanto, providências adequadas das autoridades competentes”, concluiu ele. 

Dois dias depois, mais uma vez a página 6 foi tomada por uma carta do senhor Reinaldo, que parecia ser um guardião do paladar dos trabalhadores brasilienses da época. Em 5 de abril de 1962, a reclamação se dirigiu ao restaurante do Grupo de Trabalho de Brasília (GTB), órgão responsável pela construção de prédios habitacionais na capital. 

Nesse, Reinaldo provou o que ele chamou de “arroz sem tempero” e um “feijão mal preparado”. A carne? Não tinha. “A comida vem piorando dia a dia, pois, antigamente ainda era servido o bife, mas agora deixaram de servir esse insubstituível prato”. 

O Correio se pergunta se Reinaldo conseguiu tornar os horários de almoço dele e dos colegas em um período agradável e saboroso. Esperamos!

Cadela perigosa, dono perverso: o terror da Quadra 17

Imagina não poder circular pelas ruas da quadra em que mora porque a qualquer momento uma cadela pode te atacar sem motivo ou, ainda, a mando do próprio dono? Essa era a realidade vivida em abril de 1962 pelos moradores da Quadra 17, de acordo com Luiz Fernando Alves. O homem escreveu ao Correio para pedir às autoridades “providência” para o caso. 

De acordo com Luiz Fernando, a cadela, que é descrita como muito bonita, vivia solta pela quadra e sempre atacava as pessoas do local. O temperamento da cachorrinha também era utilizado pelos interesses do dono, classificado como “muito mais perverso” que o animal.

Luiz afirma que o tutor da cadela obrigou-a a atacar “um grupo de rapazes” que conversavam na quadra. Ele pedia que a polícia e outras autoridades intervissem para que o fato não se repetisse e para que “crianças inocentes não sejam também mordidas”. 

Um galinheiro e uma bananeira: a receita para estressar vizinhos

A vizinhança do Bloco 5 da Superquadra 412 era uma calmaria até o momento em que um deles teve a ideia de cultivar um galinheiro em frente à entrada em que mora, em um espaço que era destinado ao jardim do bairro.

A carta, feita pelos moradores indignados, dizia que o homem tinha “a mania de fazendeiro” e chegou a plantar uma bananeira no local, além de alguns legumes e outras coisas em frente ao apartamento dele.

Os vizinhos insatisfeitos pediam que as autoridades fizessem algo para acabar com o “cocoricó” das galinhas, com a justificativa de que a pequena fazendinha do homem prejudicava “completamente o plano urbanístico da cidade”.

Lambretista abusado na 409 tira o sossego dos pais da quadra

A coluna do leitor de domingo, 15 de abril de 1962, trouxe uma história um tanto curiosa, digna de reality shows que tratam sobre problemas entre familiares e vizinhos. Tratava-se de uma reclamação dos moradores do Bloco 29 da Superquadra 409, que reclamavam do que chamaram de “um abusado lambretista” que passeava pela calçada do local “sem respeitar quem ali passa”. 

Imprudente, o lambretista foi acusado de “quase matar um menor”, chamado de Francisco da Cunha Filho, de 4 anos, que brincava na entrada do apartamento em que morava. Além de quase causar o acidente, o lambretista “ainda achou-se no direito” de ir até a casa da criança e falar para o pai não deixá-la em frente à casa porque era o local onde ele passava com a lambreta. 

Na carta, os moradores apelaram ao então chamado Serviço de Trânsito da capital para “que baixe determinação com a finalidade de coibir abusos dessa ordem”. Será que a sagaz lambreta recebeu uma multa? 

Mulher despejada sem estar em casa perde herança de família

Uma moradora da Superquadra 412 usou a Coluna do Leitor para denunciar o despejo dela, que lhe custou mais do que um lugar para morar. Em 19 de abril de 1962, a carta de Elza Ramos contou o drama que viveu. Ela havia sido despejada há dois meses do apartamento em que morava na 412, enquanto trabalhava. Quando chegou em casa, além de não ter acesso ao local, não sabia onde estavam todos os móveis. 

A saga de Elza para encontrar as suas mudinhas de roupa e o restante dos bens durou dois meses, até que os encontrou. O problema é que a ex-moradora da Superquadra 412 diz ter perdido diversas jóias, roupas de cama e ate mesmo uma radiola, “de alta fidelidade”, que “ficou inteiramente estragada”. 

No entanto, há um objeto que Elza fazia questão de reaver: um crucifixo, herança de família. Na carta, ela reclama de ter sido furtada “numa terra de gente civilizada” e que o que ocorreu com ela, os móveis e os bens “é obra de pessoas sem princípio, indigna de funcionar como servidores de um órgão judiciário, que tem obrigação de dar bom exemplo”.  

Na reclamação, ela se dirige diretamente ao Juiz da Primeira Vara da Fazenda Pública, que emitiu a ordem de despejo, “para que tome uma providência enérgica para punir os culpados” e fazer com que o crucifixo apareça. 

Pombal inacabado? Leitor confunde traço artístico de Oscar Niemeyer

Reclamação pombal inacabado
Leitor reclamou do Pombal criado por Oscar Niemeyer para a Praça dos Três Poderes

Em 24 de abril de 1962, dois dias após Brasília completar dois anos, o leitor Darcy Viana trouxe uma reclamação que, hoje, pode ser vista como uma crítica ao trabalho de Oscar Niemeyer. O morador do Bloco 6 da Superquadra 409 afirmava que o Pombal da Praça dos Três Poderes, erguido e inaugurado em 1961 durante o governo de Jânio Quadros, estava inacabado. 

Ele afirmava que as autoridades tinham duas alternativas: “Ou se retira aquela coisa horrível que o governo de Jânio Quadros construiu (a única obra que fez em Brasília) ou então se termina dando-lhe a complementação digna da suntuosidade da Praça dos Três Poderes”. Darcy ainda chamou a obra de um dos arquitetos mais renomados do mundo de “monstrengo” que enfeia a paisagem do local. 

O Pombal, na verdade, não estava inacabado. Ele foi inaugurado em 1961, pronto, logo após a primeira-dama, Eloá Quadros, fazer o pedido para Niemeyer. Ela dizia que todas as praças deveriam ter pombos — o Pombal é uma maneira de atrair pombos para o local.

De acordo com historiadores, Niemeyer não gostou da ideia, por achar que a praça deveria continuar plana, ou seja, sem nenhum outro monumento no meio dela. Mas precisou atender o pedido “irrecusável”. Fato engraçado: a obra é conhecida por alguns brasilienses como “prendedor de roupa”. 

Mosquitos causam insônia aos moradores da 206

Maria Pereira dos Santos não aguentava mais perder noites de sono quando decidiu escrever uma reclamação ao Correio, que foi publicada em 27 de abril de 1962, uma sexta-feira. Moradora do bloco 1 da Superquadra 206, ela afirma que uma “onda de mosquito” ronda o local, insetos “tão fortes e violentos que impedem o sono dos habitantes do edifício”.

Maria ressalta, na carta, que os mosquitos podem ter relação com “fossas anti-higiênicas” que ainda existiam no local. Por fim, ela pedia que as autoridades corrigissem o problema, porque “não se justifica que numa cidade com todos os recursos da técnica moderna, seus moradores tenham seu sono cortado por uma onda perturbadora de mosquito”. 

Asa Norte preterida? Morador reclama de falta de bancas

Considerado um dos locais com melhor qualidade de vida de Brasília, a Asa Norte parece não ter sido sempre preferida pelas autoridades locais na década de 1960. Pelo menos não para Meyer Wakimin, morador do Bloco 16 da Asa Norte, que escreveu ao Correio em 11 de abril de 1962 para reclamar que “as autoridades, decididamente, não dão a menor importância pela sorte dos que vivem no conjunto residencial”. A revolta de Meyer é a falta de bancas de jornal.

“Por que a Novacap só não construiu Banca de Jornaleiros na Asa Norte?”, questionou o morador. O homem afirma que “não há motivo justificável” para a inexistência desses estabelecimentos que promoviam a comercialização de jornais, revistas e outros itens de conhecimento e entretenimento dos moradores. 

“Em outros conjuntos residenciais, menos populosos, foram construídas bancas dotadas de todos os requisitos modernos.” Será que o seu Meyer conseguiu ter a oportunidade de comprar o jornalzinho diário pela manhã perto de casa, antes de ir ao trabalho?

Leitor pede que polícia limite uso de “farol alto”, que causou acidente

Leitor reclama de farol alto
Leitor reclama de farol alto

Em 15 de abril, foi publicada a reclamação de Marcelino Luís de Oliveira, que registrou a insatisfação pessoalmente na redação do Correio, no SIG. O morador da Quadra NE 30 denunciou o uso da luz do farol por motoristas que atrapalham os “colegas” que andam no sentido contrário da avenida. 

Na quinta-feira anterior ao domingo em que registrou a reclamação, Marcelino conta que atropelou um garoto após “perder a visão” quando um carro o ultrapassou com farol alto. O fato, que deixou Marcelino indignado, fez com que, além de uma reclamação no jornal, ele organizasse um abaixo-assinado para “solicitar das autoridades um providência contra tais abusos a fim de evitar outras vítimas nas estradas”. 

Falta de luz promove um lugar para “amantes” se encontrarem

Nada de encontros “apaixonados” na Superquadra 107! Para Walter Luís, morador do bairro, a falta de iluminação no local não trazia insegurança, mas sim propiciava um ambiente para que casais “promovessem escândalos”. A reclamação dele, publicada em 1º de abril de 1962, pedia para que as autoridades tomassem “uma providência enérgica a fim de colocar um ponto final nesta irregularidade”. 

Todas as histórias retratadas aqui foram retiradas do Centro de Documentação (Cedoc) do Correio Braziliense, que se orgulha de fazer parte da história de Brasília!