Vizinhas de loja contam como comércio estreitou laços de amizade

Arthur de Souza 

Alda Ramos (loira) e Josyrene Lucena
Alda Ramos (loira) e Josyrene Lucena | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

Quem disse que os comércios precisam ser, necessariamente, concorrentes entre si? Em Brasília, existem histórias de estabelecimentos vizinhos, em que os donos criaram uma parceria que vai muito além da relação de negócios. É o caso de Alda Ramos, 59 anos, dona da loja de roupas que leva o seu nome na 209/210 Norte, e a amiga Josyrene Lucena, 42, que possui um instituto de beleza na mesma galeria da quadra.

As duas são vizinhas de loja, mas a amizade começou a ser cultivada quando Alda ainda nem pensava em ter um comércio em Brasília. “Conheço Josyrene desde quando ela tinha um instituto de beleza próprio na 409 Norte, há cerca de 15 anos. Na época, eu trabalhava como funcionária pública — hoje sou aposentada — e era ela que arrumava o meu cabelo e as minhas unhas”, conta a empresária.

Josy, como é chamada carinhosamente pela amiga, lembra que o relacionamento teve que ser interrompido por um tempo, no período em que precisou fechar o salão. “Nos encontramos de novo quando eu passei a trabalhar em um instituto de beleza da 209/210, em 2017. Cerca de seis meses depois, decidimos abrir nossas lojas, quase que ao mesmo tempo, quando a galeria ainda não tinha um viés tão comercial. A gente costuma dizer que incentivamos outros negócios a também se estabelecerem aqui”, comenta a dona do empreendimento de beleza.

Ponto de partida

Alda aponta que, a partir desse momento, o laço de amizade entre as comerciantes se estreitou ainda mais. “Passamos pela pandemia da covid-19 com os muitos problemas e dificuldades que ela trouxe para o país. Nos fortalecemos fazendo parcerias de venda, apresentação de nossos produtos e serviços. Porém, a maior delas: indicando clientes uma para a outra”, detalha. “Ela também atende a família em casa e, com isso, acabou ganhando o pessoal lá de casa como cliente, assim como eu também ganhei a família dela”, destaca Alda. Ela diz que isso foi determinante para que a amizade tomasse rumos para fora do ambiente de trabalho. “Não são poucas as vezes que nos encontramos após o expediente para uma boa prosa, preparar estratégias e atrair novos clientes, como também, falarmos de assuntos pessoais e familiares”, frisa.

No entanto, Josyrene brinca que, fora da galeria, a amizade das duas segue com planos frustrados e que ainda não saíram do papel. “Combinamos várias viagens, mesmo que para lugares mais próximos do DF, mas nunca foram concretizadas. Se fosse contar todos os planos, acho que teríamos viajado o mundo todo”, ironiza. “Mas pretendemos concretizar algum desses planos em breve, com uma viagem de ‘mulherzinhas’, seja uma viagem de compras, ou mesmo ir para a praia — algo que gostamos muito”, assegura Josy.

Falando sobre programas sociais dentro do DF, as amigas afirmam que costumam sempre se encontrar. “A gente também sai para fazer algum happy hour. Mas, tanto eu quanto a Josy, trabalhamos muito e temos uma vida fora das lojas. Por isso, nossos encontros são, quase sempre, marcados em cima da hora”, confessa Alda. “Além disso, a Alda começou a reunir nossas famílias, em época de Copa do Mundo, para assistir aos jogos e tem sido muito legal”, lembra a dona do salão, dizendo que estão se programando para fazer o mesmo este ano.

Gratidão

Ambas fizeram questão de destacar o que mais valorizam na amizade cultivada durante o tempo. Para Alda, a parceria entre elas é o que mais marca a relação. “O fato de termos nos ajudado durante a pandemia, quando eu tinha dificuldade até para pagar funcionários, por exemplo, é algo que vou lembrar para sempre”, aponta. “Eu sou muito grata a ela por tudo isso”, agradece Alda.

Enquanto isso, Josy comenta sobre uma característica que considera a principal na amiga. “Gosto muito da postura da Alda, ela é uma pessoa muito motivadora. Apesar de estar aposentada, continua batalhando na vida”, observa. “Ao meu ver, ela não precisaria estar aqui, tendo que administrar duas lojas e, mesmo assim, continua. É essa força que ela tem que me motiva todos os dias a seguir em busca dos meus objetivos”, conclui.

Vizinhos promovem ‘almoço em família’ para socializar no Lago Norte

Edis Henrique Peres

Vizinhos do Lago Norte se reúnem há mais de 15 anos para almoços mensais
Vizinhos do Lago Norte se reúnem há mais de 15 anos para almoços mensais | Foto: Arquivo Pessoal

O primeiro domingo de cada mês é uma data esperada com ansiedade pelos moradores da QL 5 do conjunto 7 do Lago Norte. Neste dia, os vizinhos se encontram em um passeio cultural por pratos típicos de diversos estados do Brasil, com direito a uma tarde de prosa e boas risadas. A tradição dos almoços da quadra duram mais de 15 anos e garantem o posto de “segunda família” entre os participantes. Gorete Reis, 68 anos e advogada, reside no local há 30 anos e conta como o almoço da vizinhança começou.

“Tínhamos a tradição de fazer uma festa junina, em junho, quando nos encontrávamos. Era tudo super organizado. Nessa época, havia uma vizinha que puxava uma quadrilha com os moradores. Era uma festa que nos unia muito. Mas acontecia apenas uma vez por ano. Daí, começou a ideia de fazermos um almoço. O Carmo (Gonçalves), que era muito alegre, se entusiasmou com a ideia, e até hoje, costuma ser o primeiro, todo ano, a dar o almoço na casa dele”, conta.

Carmo, 61 anos, engenheiro mecânico, detalha que cada vizinho leva para o almoço um prato diferente e uma bebida da sua preferência. “Os encontros mensais servem para a gente socializar, é uma integração da vizinhança. Tratamos de assuntos da rua, de melhorias e alertas e também do dia a dia, jogando conversa fora. Aos poucos a prática foi prosperando e todo mundo gostou da ideia. Só tivemos que parar nesse período, devido à pandemia e estamos esperando um pouco para retomar a tradição, mas em junho talvez voltemos com os encontros”, pontua.

Os vizinhos costumam chegar por volta de 12h e a conversa rende até as 17h. Gorete explica que o grupo tem um calendário para os almoços que serão realizados ao longo do ano. “O dono da casa sempre oferta um prato diferenciado e temos receitas famosas de cada vizinho, como a costela do Cesinha, que é o morador César, ele faz uma costela assada muito gostosa. Tem outra vizinha que é fazendeira e faz o doce de leite dos diabéticos de sobremesa. É realmente uma confraternização, que costumamos levar até os filhos. É um domingo maravilhoso, de muita piada. A gente se ama muito, aqui é uma vizinhança solidária”, destaca.

A advogada explica que a experiência também envolve um passeio cultural. “Temos vizinhos de diversas localidades. Tem uma que é do Maranhão, uma outra que é do Pará, que sempre leva o pirarucu de casaca; e muitos outros como outros são pernambucanos e pessoas do sul. Cada um traz um prato típico do seu estado. Há uma troca de costume muito grande, com relação aos pratos, as histórias de infância, os hábitos. Meu marido, por exemplo, é goiano e gosta muito de costela de porco frita na panela com mandioca cozida, e este é um prato que eu costumo fazer nos nossos almoços”, acrescenta.

Além da gastronomia

A amizade entre os vizinhos, contudo, se estende para além de almoços aos domingos. Gorete destaca que esses vínculos são levados para a vida privada dos moradores. “Às vezes o casal faz aniversário de casamento, uma missa em casa, e os vizinhos são convidados. No casamento do meu filho, por exemplo, fiz somente reunião simples, mas não deixei de convidar todos os meus vizinhos. Outro caso é que teve um filho de moradores daqui que se casou no interior do Goiás e boa parte da vizinhança foi ao casamento, se hospedou na cidade e participou da cerimônia. O vínculo é forte entre a gente, somos praticamente uma segunda família”, salienta.

Nos momentos de tristeza os vizinhos também são um suporte uns para os outros. “Quando alguém está doente, ou quando precisa de ajuda, todo mundo se mobiliza. Não é apenas em situação de festa que estamos juntos. Há casos de vizinhos que se internaram e nós fomos ajudar para que ele fosse transferido para outro hospital. É uma solidariedade entre todos. Quando alguém coloca no nosso grupo que está doente, o outro já fala que tem alguma planta para chá que pode ajudar, todo mundo é preocupado com o outro”, afirma.

Não somente para os vizinhos que já estão consolidados na quadra, mas quem chegou recentemente também tem espaço para entrar no grupo e fazer parte dos almoços. Dayse Corrêa, 64 anos e aposentada, conta que quando chegou à CL 5 o evento já acontecia. “Logo que chegamos fomos convidados a participar e desde então nunca ficamos afastados. Em toda grande comemoração também nos reunimos, como aniversário e outras festas. A vizinhança aqui é muito solícita, ela manifesta as boas vindas, e todo mundo fica esperando a data do almoço”, revela.

Para Dayse, receber o convite dos vizinhos para participar da tradição da quadra foi emocionante. “O mais comum é termos um contato muito restrito com os vizinhos, mas aqui temos todo esse acolhimento amoroso. E não é por interesse, ninguém quer saber a sua profissão, o seu rótulo, é apenas uma amizade pessoal”, comenta.

A avaliação é a mesma de Maria Auta, 67 anos e aposentada. “Compartilhamos das dificuldades, das alegrias e dos problemas. O que acontece é que nesse processo dos almoços nos tornamos uma grande família. Quando precisamos de alguma coisa, as pessoas já se colocam à disposição. Partilhamos o que temos em casa, como frutas, por exemplo. O vizinho que tem manga saí dando para todo mundo, a mesma coisa com abacate, limão e ervas para chá. É uma interação e uma tranquilidade que não e ver em nenhum outro lugar”, finaliza.

Vizinhos contam como fizeram amizade por intermédio dos animais de estimação

Arthur de Souza 

Luis Alberto e Gabrielle Cunha e suas cachorras: os animais aproximaram os tutores, que hoje são grande amigos, mesmo morando em áreas diferentes
Luis Alberto e Gabrielle Cunha e suas cachorras: os animais aproximaram os tutores, que hoje são grande amigos, mesmo morando em áreas diferentes | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

A servidora pública Gabrielle Cunha, 29 anos, e o empresário Luis Alberto Cueto, 65, criaram uma amizade a partir de um ponto em comum, o amor pelos pets. Eles eram vizinhos quando a história teve início e, mesmo depois que Gabrielle teve que se mudar, mantiveram o contato entre eles e também entre os animais.

“Os pets têm esse dom de unir as pessoas”, ressalta Gabrielle Cunha, dona da Filha, 3, uma cachorrinha da raça Lhasa Apso. Foi graças à sua pet que ela conheceu Luis Alberto. O empresário é dono da cadela Chanel, da mesma raça, 2, e mora no Sudoeste junto a sua cadelinha. Segundo a servidora pública, o primeiro contato entre os animais aconteceu pouco tempo depois que ela se mudou para o prédio onde Luis e Chanel moram. Certo dia, coincidiu de ambos levarem as cachorrinhas para passear no mesmo horário. “Chanel e Filha começaram a brincar e pular uma em cima da outra”, lembra Gabrielle.

“O Luis, que sempre foi muito gentil, falou que se eu quisesse deixar elas juntas, para que não ficassem sozinhas, poderia contar com ele a qualquer hora”, conta a servidora. E os “serviços” acabaram sendo necessários, pela primeira vez, alguns meses depois do primeiro contato entre Chanel e Filha. “No ano passado, depois que o período mais intenso da pandemia tinha passado, marquei uma viagem de 20 dias para visitar minha família, no Rio de Janeiro. Tinha combinado com outra pessoa de ficar com a Filha, só que ela, na última hora, não podia e acabei ficando sem saber o que fazer”, recorda.

Gabrielle diz que chegou a considerar colocar seu animal de estimação em um hotel, mas teve receio. Foi quando ela lembrou do que Luis havia dito no primeiro encontro entre as pets. “Perguntei se ele poderia cuidar dela durante a viagem. Ele aceitou prontamente e foi um sucesso. A Filha ficou muito bem na casa dele”, destaca. “Quando voltei, ela estava tão apegada e feliz com o Luis, que quase esqueceu a própria tutora”, brinca a servidora.

Desde então, os dois sempre trocaram favores do tipo, de acordo com Luis Alberto. “Quando a mãe (Gabrielle) dela viaja, cuido da Filha e dou o mesmo amor que a Chanel recebe”, diz com satisfação. A servidora pública dá mais detalhes: “E não é só em viagens. Em qualquer situação que precisamos nos ausentar durante um período mais prolongado, para que elas não fiquem sozinhas, nós deixamos uma na casa da outra. Várias vezes eu precisei sair e o Luis ficou com as duas, ou o contrário”, acrescenta. E o dono da Chanel não mede palavras ao comentar sobre as estadias da Filha em sua casa. “Para mim, é um privilégio quando preciso cuidar dela, não importa o tempo. Se for preciso ficar um ano com a Filha, vou amar”, destaca.

As cadelinhas ficam sempre juntas. Na imagem, elas estão no antigo apartamento de Gabrielle, quando ela ainda morava no Sudoeste
As cadelinhas ficam sempre juntas | Foto: Arquivo Pessoal

Opostos que se atraem

Luis conta que, quando estão juntas, Chanel e Filha sempre se divertem. No entanto, ele brinca, dizendo achar estranho como acabaram criando laços tão fortes. “Elas ficam muito bem adaptadas uma na casa da outra, e isso é bastante peculiar porque, apesar de a Chanel ser sociável, a Filha é mais retraída”, diz o empresário. Gabrielle comemora que essa aproximação tenha dado certo. “Dá para dizer que essa amizade foi boa para a sociabilidade da Filha, que passou a aceitar melhor o contato das pessoas”, afirma.

Os dois reforçam que, apesar de ainda não possuírem um relacionamento longo, as cadelinhas já têm histórias interessantes. “Sempre que uma vai até a casa da outra, já sabe o caminho certo”, aponta Luis. “Quando venho aqui com a Filha, ela nem pensa em ir para o apartamento antigo em que eu morava, vai direto para a casa do Luis”, detalha Gabrielle, que também conta outra situação engraçada. “Certa vez, quando ainda morava no Sudoeste, estava passeando com as duas em um local onde as pessoas costumam ir para jogar tênis. A Chanel invadiu a quadra e roubou as bolinhas. Pedi desculpas e justifiquei, afirmando que ela só queria brincar”, acrescenta.

Amizade expandida

Os vizinhos contam que, de forma inevitável, a aproximação entre Chanel e Filha fez com que eles também criassem uma amizade. “Eu e Gabrielle nos aproximamos da mesma forma que elas, espontaneamente. Desenvolvemos um relacionamento tão bom, que chega a parecer que somos da mesma família”, considera o empresário. “A gente sai juntos em passeios no parque, com as cadelinhas. Também almoçamos ou jantamos juntos. Nossa amizade é tão forte quanto a que elas têm”, afirma Luis.

A conexão se tornou tão forte que, mesmo depois de Gabrielle se mudar — do Sudoeste para a Asa Sul —, os agora “ex-vizinhos” mantiveram o contato entre os pets. “Me mudei do prédio há cerca de um mês. Mesmo assim, combinamos de manter o contato entre Chanel e Filha — para que elas possam brincar — assim como entre a gente. Então, a amizade está sendo mantida, apesar da distância”, conclui a servidora pública.

Quiosque do Beto, um refúgio para os bate-papos dos Melhores do Mundo

Pedro Almeida*

Adriana Nunes e Roberto de Freitas
Adriana Nunes e Roberto de Freitas | Foto: Arquivo pessoal

O cheiro que exala da chapa ou o aroma de um bolo caseiro recém-saído do forno são suficientes para atiçar o olfato dos moradores à volta. No caso de Adriana Nunes, comediante do grupo Melhores do Mundo, o perfume da cozinha trouxe o vizinho, como em um desenho animado, à porta de casa. O que ela não sabia é que, ao abrir, encontraria Roberto Carlos Varejão de Freitas, o Beto, um velho amigo.

Beto não é, tecnicamente, brasiliense, mas se considera um, afinal chegou de Recife com apenas 1 ano de idade. Falar sobre boa vizinhança parece abrir uma fenda de nostalgia na memória dele. Morador da Asa Sul, ele rememora um tempo em que as boas relações entre os moradores eram a lei. As portas dos apartamentos estavam sempre abertas, literal e figurativamente. Os gramados eram tomados pelas amizades que não cabiam apenas no pilotis.

Ter crescido neste clima amistoso o moldou de forma que sua atual residência já foi confundida por transeuntes com uma casa de festas. Basta qualquer desculpa surgir para que ele abra a garagem, disponha as mesas no gramado e ponha música para tocar. Quando não está com uma festa planejada, Beto comanda um quiosque de lanches na 215 Sul. Desde 1986 no ponto, ele comenta que recebe filhos adultos dos originais frequentadores do espaço. Nos 36 anos de comércio e com um sem-número de clientes assíduos, uma trupe de comédia que batia ponto por ali acabaria por se destacar na cidade.

Em 1995, por acaso, em 21 de abril daquele ano, a companhia de comédia Melhores do Mundo foi oficialmente criada. No sexteto original, que segue junto até hoje, havia Adriana Nunes. Formada pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, a atriz já passou por uma gama de trabalhos até se encontrar na comédia. Com o grupo, por fim, se estabeleceria como uma das grandes comediantes de Brasília e ganharia visibilidade nacional. Peças como Jingle béus, Notícias populares, Hermanoteu na terra de Godah e Sexo — a comédia estão cravadas na mente do público. Adriana participou, também, do Zorra total, programa de comédia da Rede Globo.

Em dado momento da carreira do grupo, Os Melhores do Mundo foram residentes, por aproximadamente uma década, no Teatro dos Bancários, na comercial da 314 e 315 Sul. Para brindar a casa lotada ou para simplesmente matar a fome acumulada do dia corrido, um bom lanche rápido caía bem. E o quiosque do Beto ficava a apenas uma tesourinha de distância. Por vezes, ele foi o responsável por alimentar a trupe no fim da noite.

A mãe de Adriana, com aversão a manter-se no mesmo local por muito tempo, se mudou diversas vezes dentro de Brasília. Antes de ter a própria independência, a comediante a acompanhava nas aventuras para habitar novas casas. Mais recentemente, a última mudança foi para Pirenópolis. Adriana, que já vivia com a própria família, resolveu reviver os tempos de mãe e filha e foi passar o tempo pandêmico na mesma cidade. Para a comodidade dos filhos, porém, era necessário ter um local em Brasília. A atriz encontrou uma residência na Asa Sul que funciona como uma espécie de vila. Os vizinhos compartilham de uma área comum no fundo das casas. Interessada pelo conceito, que traz proximidade e segurança, Adriana fincou bandeira por lá.

Animada com o novo lar, a artista preparou um bolo especial e logo pôs no forno. No tempo do fermento dar corpo à massa e dos aromas se espalharem, alguém bate à porta. Era Beto. Aquele que, por vezes, serviu Adriana seria, agora, servido por ela. O pedaço de bolo com café propiciou, bem à moda brasileira, uma conversa para que os amigos colocassem o papo em dia e se atualizassem após tantos anos de amizade. O filho de Beto, hoje adulto, confessou a Adriana que tentava acompanhar o pai nas apresentações do grupo, mas que acabava ficando de fora por não ter idade para assistir aos espetáculos. Se Beto recebia a segunda geração de frequentadores do quiosque, Adriana estava diante da segunda geração de fãs. Por fim, a mesa desta relação estava posta e farta. O cheiro que sai da chapa ou o aroma de um bolo caseiro recém saído do forno são suficientes para reatar a amizade dos moradores à volta.

*Estagiário sob supervisão de José Carlos Vieira

Moradores da mesma quadra de Brasília unidos pelo talento na cozinha

Liana Sabo

Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar
Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

Vizinhos não são só os de porta. Podem morar no mesmo bloco e se sentir vizinhos. Ou até mesmo de quadra. Há quem se considere vizinho de alguém que resida a uma distância mínima, capaz de ser percorrida a pé: de um bloco para outro. Como no caso do publicitário Charles Marar. Ele até consegue ver do seu próprio apartamento se há luz acesa na cozinha da “vizinha” Neide Pimenta Magalhães, residente em outro bloco da mesma 216 Sul.

A luz acesa ou alguma movimentação é a senha para ele ligar e perguntar com franqueza: “O que você está fazendo?” Invariavelmente, Neide estará cozinhando. Depois da família (filhos, noras, netos e o novo neto Theo, de quatro meses), e dos amigos, a paixão dela é fazer comida. Às vezes até o trivial, mas o que mais a inspira é mesmo o gosto requintado. De um prato tradicional, como a canjiquinha mineira, feita de costelinha de porco, Neide extrai uma explosão de sabores e texturas que não ficam devendo a nenhuma iguaria. Ser convidado para degustar a canjiquinha é um privilégio ímpar. Charles não perde nenhuma chance.

Nascida em Sabinópolis, interior de Minas, Neide viveu no estado por 18 anos quando se casou e foi morar em Aracaju por cinco anos. De lá veio à capital, onde passou a trabalhar no serviço público. O interesse pela gastronomia surgiu depois que o primogênito, já formado, voltou de Londres e passou a cozinhar, aos domingos, mostrando o que aprendera no trabalho em restaurantes. “Foi assim que a luzinha se acendeu e comecei a me interessar pelo tema fazendo as primeiras aulas com a chef Susana Leste na garagem de sua casa na W-3 Sul”, conta a aprendiz de mestre cuca, que também acompanhou as aulas dadas no restaurante Alice, no Lago Norte.

Ela também entende muito de vinho e participa dos cursos da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-DF) com degustações que a deixam apta a harmonizar a bebida com o extenso e variado cardápio de sua autoria.

Outro prato que ela elabora com maestria é o pernil inteiro pururucado. Aliás carne suína é a sua predileção. Embora de origem árabe, o vizinho Charles não é muçulmano, por isso não está impedido de consumir porco — ingrediente vedado a árabes e judeus. Como todo o cristão, ele pode perfeitamente se deliciar com esse tipo de carne macia, saborosa e cada vez mais gastronômica. O que dizer da maciez da raça Duroc, que está conquistando os paladares?

Comida de beduíno

Charles tem nas veias o DNA da boa cozinha. A mãe, Najila Marar, jordaniana de 91 anos, que mora desde 1948 em Bauru (SP), até a pandemia vinha sempre a Brasília preparar o jantar de aniversário do filho, no mês de maio. Na mesa, a culinária árabe, uma das mais antigas e aromáticas do mundo, reinava com uma série de pratos todos feitos artesanalmente, como homus, quibe de bandeja, kafta de forno, arroz com lentilha, babaganuche, coalhada e o exclusivíssimo Mansaf, que tem na base, pão de folha e por cima, arroz de açafrão e carne de cordeiro cozida na coalhada com snobar (pinoli) frito na manteiga.

“Trata-se de uma comida típica de beduíno, que é consumida no deserto com as mãos, daí o pão servir de prato”, esclarece a brasiliense Isadora Marar, formada em nutrição e personal chef com especialização na cozinha árabe/jordaniana, que aprendeu com a avó Najila. “Quando meus filhos eram pequenos, a minha avó passava temporadas comigo me ensinando todas as receitas desenvolvidas por ela”, lembra a neta.

Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar
Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

Já o pai Charles, que também apreendeu com Najila a preparar esse banquete — cuja fartura e generosidade são uma das principais marcas da hospitalidade árabe —, nunca transformou a habilidade em negócio e sempre cozinhou para os amigos. Há dois anos, porém, não podendo receber em casa por causa da covid-19, é a filha que abastece a sua despensa e geladeira. De falafel, esfirras, homus, chanclife e outras iguarias confeccionadas por ela e oferecidas todos os sábados na feira da QI 13 do Lago Sul. “Meu pai gosta de cozinhar para as pessoas”, entrega Isadora.

Apenas amigos

“Sozinhos há mais de duas décadas, Charles e Neide bem que poderiam casar,” propõe Najila, que gostaria muito que o filho tivesse alguém. “O casamento não iria durar um só dia”, reage, com humor, Neide, ciente das diferenças de temperamento e idiossincrasias de cada um. Melhor assim, para não interromper uma amizade profunda e firme que nem a crise sanitária abalou.

Recluso por um ano e meio, Charles quando revolveu sair de casa foi comer na cozinha da Neide, um espaço amplo e equipado com muito bom gosto. Ela também é perita na decoração de mesa e o faz com muitos recursos, graças à coleção de objetos e louças, afinal um dos filhos é sócio-proprietário da principal loja de equipamentos para hotéis e restaurantes da cidade.

Neide também investe na fórmula “viajar para comer”. Ela fez parte da primeira excursão enogastronômica que o ex-adido cultural e de imprensa da Embaixada da França Christian Couesmes, promoveu, no verão europeu de 2003, para a Borgonha e Jura, tendo como destaque “um jantar inesquecível na fabulosa casa de Paul Bocuse em Lyon”, como dizia o programa. Após elogiar a qualidade da comida, Neide escreveu no diário de viagem: “Um jantar no Paul Bocuse nos impele a atitudes mais comedidas, mas isto não aconteceu. Somos um povo alegre, barulhento, feliz e não ficamos tolhidos numa cultura que não é a nossa.

Ficamos muito à vontade, rimos alto, brincamos sem deixar de sentir o prazer de um jantar à francesa, quando o serviço é perfeito e descontraído, muito mais confortável do que um buffet”. A experiência na França serviu para aprimorar a atuação nos sabores.

Donos de tradicionais lojas da Asa Sul compartilham histórias de amizade

Edis Henrique Peres

Francisco de Andrade proprietário da Casa Renato e seu amigo vizinho Jean Souza(cam. Azul)
Francisco de Andrade proprietário da Casa Renato e seu amigo vizinho Jean Souza (cam. Azul)

Duas das lojas mais antigas da comercial 308 Sul têm uma história de amizade entre os proprietários que começou ainda na infância, quando eles eram levados pelos pais para trabalhar no período de férias ou no contraturno das aulas. Ao longo de mais de 50 anos como vizinhos de parede, Jean Skaf, 55 anos e proprietário da loja de roupas Sua Casa Malhas; e Francisco de Andrade, 63 anos, da loja agropecuária Casa Renato, compartilham visitas em jogos clássicos de futebol e solidariedade em momentos dolorosos na vida um do outro.

“Passamos o tempo inteiro na loja, até mais do que ficamos em casa, então essa relação saudável entre a vizinhança do comércio é interessante, porque um ajuda o outro. Quando precisa trocar dinheiro, quando tem algum problema ou algum lojista está em dúvida sobre a índole de alguém, por exemplo, essa parceria é muito importante. Os comércios vizinhos são de pessoas muito presentes no cotidiano e esse vínculo se cria naturalmente. E com o Francisco, isso é ainda mais forte”, destaca Jean.

A loja de roupa Sua Casa Malhas foi aberta pelo pai de Jean em 1968. “Meu pai veio do Líbano. Primeiro ele parou no Porto de Santos, depois foi para São Paulo, seguiu para Bela Vista, no interior de Goiás, onde morava o meu tio. E, de lá, ele veio para Brasília e trouxe a família, para começar uma nova etapa da vida. Eu cheguei no Brasil com um ano e meio de idade. A loja foi aberta em novembro de 1968”, detalha.

Com o tempo, a cordialidade entre os vizinhos de comércio foi evoluindo, até se transformar em amizade. “Eu cresci na quadra e o Francisco começou a trabalhar com o pai. A minha amizade com ele dura 45 anos e sempre foi marcada pela lealdade e pela dignidade. Eu, inclusive, fui padrinho de casamento dele. Sempre estamos juntos. Saímos para almoçar juntos. Ele é um irmão que Deus colocou no caminho da minha vida. E é algo natural, porque no dia a dia estamos ali, na loja, se vendo”, argumenta.

Acolhimento

Francisco, da agropecuária Casa Renato, conta um hábito dos amigos. “Costumamos tomar um café da tarde, quase todos os dias juntos, aqui de frente para as duas lojas. Isso é por volta de 16h40. Quando o papo está bom, só saio de lá quando os meninos começam a baixar as portas da loja”, confessa. “Nesse momento aproveitamos para conversar de tudo: futebol, sobre o comércio, algo que aconteceu na nossa vida, de política meio de leve, para não ter discussão”, acrescenta.

A Casa Renato foi fundada em 1962, quando os pais de Francisco chegaram de Minas Gerais. “Meu pai tinha alguns negócios que não estavam dando certo, então ele decidiu vir para Brasília para recomeçar. Em 1961 ele já tinha visitado um amigo aqui e, no ano seguinte, decidiu vir de vez. Cheguei quando tinha 4 anos, mas me considero de Brasília”, ressalta.

Jean tem o mesmo vínculo com a capital que o recebeu de “braços abertos”. “Aqui é onde eu cresci, onde vivo e criei meus filhos, tenho meus amigos, é uma cidade iluminada. Uma cidade que parece que tem um imã que atrai a gente. Mesmo que você viaje, você fica louco para voltar. Amo Brasília em toda a plenitude. Um dos meus pontos prediletos é o laguinho da 308 sul, em frente ao Bloco F, pois ia muito lá na minha infância. Além dele, tem a Igrejinha de Fátima”, conta.

Sobre o vínculo com a famosa Igrejinha, Jean confessa: “vou para lá quando preciso encontrar paz. Sempre frequentei a missa com meus pais quando criança, e quando preciso de um momento de reflexão, encontrar alguma solução, pensar no cotidiano, sento nos banquinhos ao lado da Igrejinha e fico ali”, menciona.

Paixão pelo futebol

Os dois amigos também estiveram presentes nos momentos importantes da vida um do outros. “O Francisco costuma vir à loja aos domingos cuidar dos passarinhos e uma vez ele chegou e ouviu um barulho dentro da minha loja e me avisou que alguém a estava invadindo. Por causa disso, consegui chegar a tempo de prender o homem dentro da loja até a polícia chegar”, explica.

Os lojistas, contudo, são apaixonados por times rivais no futebol: Jean é flamenguista e Francisco é torcedor do Fluminense. Jean lembra que ficou “traumatizado” com a disputa de 1995, do Fla-Flu, no Maracanã. “Fiquei insistindo com o Francisco para a gente ir assistir, até que ele aceitou. A gente conseguiu uma passagem e o ingresso do jogo de última hora e fomos para o Rio de Janeiro. Mas aí, o Flamengo perde de 3 a 2 para o Fluminense com o gol de barriga do Renato Gaúcho”, lamenta.

Francisco se lembra do episódio. “Eu não queria ir, porque duvidava da vitória do Fluminense. No fim, o Jean voltou meio triste depois da vitória do Fluminense, mas mesmo assim, a gente se divertiu bastante na viagem”, destaca. O proprietário da Casa Renato salienta que a amizade, muito além dos momentos divertidos, foi importante para superar os desafios impostos pela vida. “Quando meu pai morreu o Jean meu deu força. Assim como eu estive com ele na morte da mãe dele. É sempre assim. Nesses momentos uma pessoa pode conversar com o outro, desabafar”, complementa.

Parceria

A parceria entre os comerciantes da quadra não se restringe aos lojistas históricos da 308. Valéria Soares, 61 anos, da loja Tribalistas, chegou em 2020, mas se sente bem recebida e é participativa nos grupos dos proprietários. “Vim para cá (308 Sul) por causa da pandemia, que obrigou muita gente a fechar suas lojas e bagunçou as finanças das pessoas. Antes, a Tribalistas ficava dentro de um shopping. E muda bastante ser uma loja de rua, porque aqui a gente se une para se ajudarem, por exemplo, na questão de segurança”, observa.

Valéria detalha que os lojistas possuem um grupo no WhatsApp para se comunicar e organizar diversas ações na quadra comercial. “Quando é época festiva, de Natal, por exemplo, nos preparamos para decorar a quadra e deixar tudo bonito, cada um colaborando de uma forma. Há um engajamento muito grande entre todos, de ajuda. E com o tempo, todo mundo vai conversando, formando amizades, compartilhando um pouco de si com o outro”, expõe.

Unidas pela fé, vizinhas promovem o projeto Novena Natalina

Edis Henrique Peres

Ismenia e Regina durante apresentação na 213 Sul
Ismenia e Regina durante apresentação na 213 Sul | Foto: Arquivo pessoal

A história de mais de 22 anos de amizade entre melhores amigas nasceu aos poucos em encontros, passeios e eventos religiosos. “Sem pretensões e sem que a gente notasse: quando percebemos, estávamos nesta intimidade danada”, descreve Regina Cintra, 69 anos, moradora da 314 Sul. O primeiro contato entre ela e Ismenia Maria Magalhães, 74, residente da 213 Sul, ocorreu no Santuário Nossa Senhora do Carmo, ainda na década de 1990, quando Regina foi buscar uma das filhas na catequese.

“A Ismenia frequentava a missa com violão, ensinando as crianças a tocar. Dessa forma, aos poucos fui conhecendo ela enquanto eu participava da celebração. Depois, fui convidada para encontros da igreja e de lá em diante começamos a fazer retiros e cursos juntas”, lembra. O vínculo, ao longo dos anos, se fortaleceu, motivado pelo mesmo motivo do primeiro encontro: a fé. “A Ismenia é responsável por uma Novena de Natal no bloco do prédio dela, e ela me chamou para participar. As novenas são feitas, a cada dia, na casa de um vizinho e isso estreitou muito as nossas relações, porque ao fim era realizado um jantar e sempre tinha muita conversa”, afirma.

Mesmo morando em outra quadra, Regina foi muito bem recebida pelos condôminos. “Eu me auto-intitulava intrusa, porque tinha o benefício de usufruir o que a quadra deles ofereciam. E com toda essa relação, o meu contato com a Ismenia se aproximou e criamos um vínculo muito forte. Não somente entre nós, mas a minha família toda com a família dela. Virou uma coisa bem misturada, sólida e verdadeira”, garante.

A moradora do 314 confessa: “Ismenia é minha melhor amiga. Nem tenho palavras para descrever essa relação. Mas posso te dizer que nunca tive uma amizade tão profunda, nem na época de minha adolescência, como tenho hoje com a Ismenia. Hoje, inclusive, sou madrinha de casamento da filha dela. Nos aniversários estamos juntas. É uma relação que não foi programada, foi natural, quando acordamos, ela já estava ali, tinha acontecido. É muito verdadeira”.

Solidariedade

O projeto de Novena Natalina, organizado por Ismenia, acontece há mais de 30 anos na quadra 213, no Bloco A, local em que reside. “Sou muito religiosa e sempre achei que uma forma de viver melhor seria rezando. Isso ajudou muito na união do grupo de moradores”, conta. O projeto começou de forma simples, com um terço que era rezado com as crianças, com a participação das mães que acompanhavam os filhos.

“Depois, isso se transformou em uma Novena de Natal. No último dia da Novena fazemos uma ceia, em que cada um leva um prato. É uma comemoração muito especial, que tem de tudo: doces, frutas, peru. É a união de todos os moradores”, garante Ismenia. A comemoração era enfeitada com ares de natal e os bebês nascidos naquele ano representavam, nas peças encenadas pelas crianças, o menino Jesus em seu nascimento. “Essa coisa de evangelizar realmente sempre foi algo nato meu”, complementa Ismenia.

Contudo, muito além de apenas um festejo religioso, o grupo se preocupa em promover ações concretas. Em cada novena o grupo promove doações para entregar às pessoas vulneráveis. “A única coisa que atrapalhou as nossas novenas foi a pandemia. Mas neste ano espero que a Novena possa voltar a acontecer de novo, quero muito retomar as nossas atividades”, reforça Ismenia.

As festas natalinas tinham até a presença do Papai Noel
As festas natalinas tinham até a presença do Papai Noel | Foto: Arquivo pessoal

Um céu aquarela

Regina foi encontrar a melhor amiga a mais de 1.200 km da cidade natal, sob um céu colorido que nem acreditava que existia. Nascida em Vitória, ela chegou em 1974 à capital do país. “A maior parte da minha família continua lá, mas aqui eu recebi muito acolhimento”, garante.

Ismenia, contudo, desembarcou na capital um pouco antes. “Minha família era de Formosa, cheguei aqui em 1971. Desde então fiquei por aqui e morei em vários locais. Na 213 Sul, moro há 35 anos. Praticamente vi muito do progresso que Brasília trouxe, principalmente a singularidade da capital”, assegura a moradora.

A particularidade é o ponto em comum de admiração também de Regina, que se formou em decoração de interiores. “Brasília sempre me atraiu muito pela arquitetura. Ficava pensando no lugar que eu vivia que era quase surreal”, afirma.

A beleza natural do Planalto Central era outro encanto para Regina. “Gostava de fazer pinturas, mas quando via aqueles céus coloridos, com laranja, lilás e tantas cores eu pensava que aquilo era uma mentira, que não tinha como um céu ser daquela cor. Contudo, quando cheguei aqui, descobri que isso existia. Descobri que isso era possível somente aqui em Brasília”, finaliza.

Conheça projeto que uniu vizinhança da 105 Norte nos momentos mais difíceis da pandemia

Pedro Almeida*

Das janelas dos apartamentos, moradoras acompanhavam os artistas na quadra
Das janelas dos apartamentos, moradoras acompanhavam os artistas na quadra | Foto: Arquivo pessoal

Para afastar o tédio e quebrar o silêncio que ecoava na superquadra, da 105 Norte, durante a pandemia, a comunidade transformou o passeio público em palco musical e as janelas dos prédios, em camarotes. O projeto Música Solidária, concebido pelo prefeito da quadra, impactou e uniu os moradores, além de colaborar com os músicos locais.

Jeann Cunha, 35 anos, nasceu e se criou na quadra 105 da Asa Norte. Ao longo dos anos, nas andanças como morador de Brasília, se encantou com o trabalho produzido nas quadras que contavam com uma prefeitura comunitária ativa. O zelo e o senso de comunidade eram evidentes. A quadra em que morava, porém, não era uma delas. Determinado a mudar este paradigma, Jeann resolveu liderar o movimento de reativação da prefeitura da 105 Norte. À frente do posto, ele começou a agitar o espaço com eventos e arte. O amor pela superquadra natal se alinhou ao trabalho de agente sociocultural que ele já desempenhava fora dali.

O trabalho foi um sucesso. Os primeiros projetos deram resultados, mas foram seguidos de um hiato gerado pela pandemia, que havia acabado de chegar em 2020. Unir os moradores de uma quadra em tempos de distanciamento era uma tarefa árdua, mas não impossível. Sem desistir, Jeann reuniu amigos da cena cultural brasiliense e desenvolveu o projeto Música Solidária. A ideia consistia em fazer serenatas musicais para os moradores. Sem sair de casa, bastava abrir a janela e aproveitar a música do conforto do lar. Um primeiro evento-teste foi feito, e o resultado foi positivo.

O prefeito logo contatou os músicos que conhecia para dar corpo ao projeto. Não bastava simplesmente tocar uma ou duas músicas, Jeann queria realizar um verdadeiro festival. Os prédios receberam, um por vez, os shows particulares de vários gêneros musicais distintos. Os moradores ganhavam o alento da música em tempos tão difíceis e davam, em troca, uma doação em dinheiro para os músicos locais e suprimentos para instituições de caridade.

Todos ganhavam. Os residentes, com uma forma de espairecer e acalmar o coração; os músicos, que estavam parados, arrecadavam recursos; por fim, as pessoas carentes ganhavam mais um aliado na luta pela sobrevivência. Acima de tudo, o mosaico de bustos à beira das janelas, como uma coleção de namoradeiras, afastou a solidão e provou que, ainda que no pior dos tempos, o senso de comunidade estava presente na 105 Norte.

Instrumentistas se revezaram em apresentações durante o isolamento
Instrumentistas se revezaram em apresentações durante o isolamento | Foto: Arquivo pessoal

Foi justamente a ausência de um clima comunitário que assustou Alessandra Lima, 38. A carioca designer de interiores chegou a Brasília há aproximadamente quatro anos. O marido militar foi transferido para a capital e trouxe a família. Criada no Rio de Janeiro, ela conta que o clima de união entre os moradores do bairro em que cresceu fazia jus à alcunha de “comunidade”. O calor humano, típico do carioca, faz parte da vida de Alessandra, que se confessa “faladora”. O que ela encontrou por aqui, contudo, foi diferente.

A calmaria da 105 Norte acabou por ser propícia para a criação dos dois filhos pequenos, mas deixou uma lacuna no desejo de se relacionar com os vizinhos. Em 2020, a vontade de estreitar laços teria de ser adiada ainda mais tempo. O convite de Jeann Lucas à janela, por sorte, tratou de resolver o problema. Alessandra conta que, ao escancarar os vidros da janela, reviveu o clima que a marcou na infância e se emocionou. Sentiu-se ali, pela primeira vez, parte da comunidade. Ela faz questão de apontar a importância das artes e, em especial, da música, no enfrentamento da pandemia; foi o que a salvou, de acordo com ela. Hoje, ela se sente mais próxima dos vizinhos e admira o empenho de Jeann em transformar a superquadra em um grande lar.

O projeto Música Solidária, mesmo que não tivesse essa grande ambição de início, tornou-se uma forte alternativa de captação de recursos para o setor musical. Iniciada na 105 Norte, a ideia foi potente a ponto de tomar dimensões maiores do que o local em que nasceu. A iniciativa foi replicada em 10 quadras e engajou 70 atrações musicais brasilienses.

Pedro de Castro, 28, foi um dos músicos participantes. No Dia das Mães de 2020, ele estreou no projeto. Hoje, serenatas já se tornaram parte do repertório do saxofonista. Ao perceber o impacto do projeto, ele investiu em equipamento próprio para poder oferecer o serviço. Ele relata, também, que tem retornos positivos ainda hoje da divulgação que conseguiu à época.

Não há, afinal, vida sem música. Ainda que o mundo pare e as pessoas se recolham, a 105 Norte provou que a música pode ir a quem não pode ir ao encontro dela. E onde há música, há calor humano, há vida e história sendo escrita. Há, enfim, comunidade.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Pianista norte-americana encanta vizinhos com música clássica no Lago Sul

Pedro Almeida*

A musicista convidou o amigo havaiano Patrick Yim para acompanhá-la ao violino. Arquivo pessoal
A musicista convidou o amigo havaiano Patrick Yim para acompanhá-la ao violino | Foto: Arquivo pessoal

Onde as palavras falham, a música fala. Há seis meses em Brasília, a pianista clássica norte-americana Jennifer Heemstra, que ainda não domina o português, encontrou nas teclas do piano uma forma de dialogar com a nova vizinhança. De portas abertas, Jen recebe os vizinhos para concertos intimistas na própria sala de estar, no Lago Sul.

Nascida na cidade de Grand Rapids, em Michigan, nos Estados Unidos, Jennifer Heemstra estudou piano na Universidade Estadual do Michigan e, posteriormente, concluiu um mestrado em música no Cleveland Institute of Music. Como solista e musicista de câmara, se apresentou nos Estados Unidos, Europa, Ásia, Emirados Árabes e, agora, no Brasil. O amor pela música, evidente na devoção acadêmica, se alinhou, também, ao interesse por causas sociais. Além das teclas brancas e pretas, Jennifer comanda duas ONGs: a Kolkata Classics, que atua em Kolkata, na Índia, com aulas de música clássica para crianças e acesso à saúde voltado para mulheres vítimas de tráfico; a Pitch Pipe Foundation leva a melodia para os veteranos de guerra dos Estados Unidos.

Recém-chegada a Brasília, a artista se diz apaixonada pela beleza da cidade e pelo frescor do ar da capital. As plantas exóticas em meio ao concreto e o calor e receptividade dos moradores a encantaram logo na chegada. Nos primeiros dias de casa nova, ela foi convidada pelos vizinhos a assistir uma apresentação musical natalina no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A generosidade do convite e a musicalidade dos brasileiros tornaram aquela experiência impactante e um marco do novo começo.

Jen viu as ondas sonoras emitidas pelo piano dela se dissiparem nas barreiras invisíveis da pandemia. As possíveis praças e salas de concerto da cidade estavam fechadas. Diante da impossibilidade de se apresentar, a pianista resolveu reinventar a própria sala de estar. Em posse de alguns equipamentos de show, Jen montou um cenário profissional em casa, centralizou o piano na sala e convidou o amigo Patrick Yim, que veio do Havaí para acompanhá-la ao violino.

Concerto na casa de Jennifer Heemstra: uma ação cultural para reunir a comunidade. Arquivo pessoal
Concerto na casa de Jennifer Heemstra: uma ação cultural para reunir a comunidade | Foto: Arquivo pessoal

Os vizinhos foram, então, convocados para presenciar o novo projeto. Uma hora antes do horário marcado, o jardim estava aberto com drinques e petiscos para que Jen conhecesse os novos amigos de rua. Se o inglês dos moradores, por vezes, não era o melhor, a música serviria de linguagem universal. E a conversa com notas rendeu de forma harmoniosa. Em duas semanas, a dupla se apresentou seis vezes. Em um segundo momento, Jen promoveu mais um ciclo de apresentações com o duo de violinistas Luciana Caixeta e Ricardo Palmezano.

Para completar, fez uma versão da apresentação voltada somente para as crianças do bairro. Atualmente, com a melhora da pandemia, a artista já voltou a se apresentar em salas de concerto, mas mantém uma periodicidade de uma ou duas apresentações por mês em casa para reunir os, agora, amigos da rua.

Uma das moradoras da rua é a brasiliense Núbia Holanda Cavalcante, taquígrafa da Câmara dos Deputados. Ela relata que gosta de receber bem os novos vizinhos. Ao ver o marido de Jennifer, que chegou primeiro, fazia questão de cumprimentá-lo. Nas conversas ao portão, ele destacava as qualidades da esposa musicista, que estava por vir.

Burocracia

Quando Jennifer chegou, Núbia foi conhecê-la. A vizinha e o marido convidaram o casal de estrangeiros para entrar e bater um papo. A visita rendeu ótimas conversas e deu início à amizade. Antes mesmo de Jennifer anunciar o primeiro concerto para a rua, Núbia teve o privilégio de conseguir ouvi-la ensaiar da própria casa. Quando o convite veio, foi impossível recusar. O emocionante concerto cumpriu o papel de unir a rua e quebrar o marasmo pandêmico. Núbia relata se inspirar na força de vontade de Jennifer. A taquígrafa relata que a pianista, apesar das adversidades burocráticas brasileiras e dos diversos “não” recebidos, não impedissem o projeto.

Jennifer e Núbia provam que uma vizinhança unida é aquela que dialoga. Seja em qual língua for; inglês ou português. Contanto que os sons vibrem pelo ar, há a possibilidade de amizades incríveis. No caso da vizinha na quadra 26 do Lago Sul, fala-se música.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Maestro Cláudio Cohen divide paixão pela música com vizinho na Asa Sul

Irlam Rocha Lima

 Claudio Cohen ( azul ), maestro da Orquestra Sinfonica do Teatro Nacional e Paulo Roberto Nogueira, servidor público aposentado
Claudio Cohen (azul), maestro da Orquestra Sinfonica do Teatro Nacional e Paulo Roberto Nogueira, servidor público aposentado | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

A intensa atividade que desenvolve, como maestro da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, inviabiliza o violinista Cláudio Cohen manter uma agenda social. Ele se permite, no final de semana, fazer caminhada, tomar banho de sol e almoçar no clube que frequenta, sempre com a mulher Fabiane. Por vezes, o casal e o filho Bruno, de 12 anos, vão a algum restaurante próximo de onde moram.

Como os concertos da sinfônica voltaram a ocorrer regularmente, agora às 20h, de terça-feira, no auditório do Museu Nacional da República, Cohen divide o tempo entre o escritório da orquestra, que fica na Biblioteca Nacional, os ensaios no Cine Brasília, e o estúdio que mantém em casa, onde guarda livros, discos, partituras e filmes de concertos, além do violino italiano do século 19, que adquiriu em 1990.

Na sala do apartamento, localizado na 314 Sul, está instalado um piano. Segundo o maestro, quem mais o utiliza é o filho, que está recebendo aulas do instrumento, depois de ter estudado violino. “Bruno, talvez influenciado por mim, pretende levar adiante a carreira de músico”, comenta o pai-coruja. “Ficaria muito feliz se ele viesse se tornar um violinista ou um pianista”. observa.

Pela dedicação, praticamente exclusiva, ao ofício que exerce, sobra pouco tempo para o maestro interagir com os vizinhos do prédio onde mora. “Tenho boa relação com os moradores do bloco, mas não nos visitamos. Quase todos, sabem que sou maestro da Orquestra Sinfônica; e quando, eventualmente, nos encontramos, no elevador ou na garagem, a conversa gira em torno de música”, comenta.

Mas entre os vizinhos há um de quem ele se tornou amigo: o servidor público aposentado Paulo Roberto Nogueira. “Já conhecia o Cláudio, antes de ele vir morar aqui no prédio. Como sempre tive o saudável hábito de assistir aos concertos da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, me recordo dele da época em que era spalla (violinista principal). Mas, só nos aproximamos depois que ele veio morar aqui na 314. A primeira vez que conversamos foi num encontro casual na garagem. A partir daquele dia nos tornamos amigos”, lembra Paulinho — como ele é chamado pelos amigos —, que deixa claro a admiração que tem pelo maestro.

Espectador assíduo

“Depois disso, passei a ser um espectador assíduo dos concertos que o Cláudio rege e procuro conversar com ele depois das apresentações. Como sou leitor do Correio Braziliense, toda vez que o jornal publica alguma matéria sobre a orquestra, compro um exemplar a mais e levo para ele”, conta. “Costumo, também, presentear o pequeno Bruno com objetos referentes ao Flamengo, clube do qual tanto ele como eu somos torcedores”.

Fã, também, de Zé Mulato & Cassiano, Paulinho intermediou junto a Eduardo Araújo, então presidente do Teatro dos Bancários, o show comemorativo dos 40 anos da dupla, acompanhada por uma orquestra, sob a regência de Cláudio Cohen. “Aquela foi uma noite inesquecível, na qual a música sertaneja de raiz e a sonoridade erudita estiveram lado a lado, num concerto que entrou para a história do Teatro dos Bancários; e que vai ficar guardada na memória afetiva das pessoas que superlotaram aquele importante espaço localizado na entrequadra 314/315 Sul”, ressalta.

Embora destaque a simplicidade do amigo, Paulinho vê Cláudio Cohen como um intelectual, “capaz de discorrer com total familiaridade sobre a obra dos grandes mestres nacionais e internacionais da música erudita”, acrescenta.