Restaurante do Lago Sul recebe o mesmo freguês, todos os dias, há 20 anos

Liana Sabo

Rosário e Oswaldo Rocha: uma amizade de longa data temperada com bons papos
Rosário e Oswaldo Rocha: uma amizade de longa data temperada com bons papos | Foto: Arquivo Pessoal

“Na Itália é comum, todo o restaurante que se preze tem um personagem especial. São figuras populares na cidade, que por algum motivo se tornaram frequentes ali, a ponto de irem quase todos os dias para se beneficiar de regalias concedidas pelo proprietário”. Assim o chef-restaurateur Rosario Tessier resume a presença diária do fotógrafo Oswaldo Rocha na Trattoria Da Rosario, que completa hoje 20 anos.

Desde que ela foi fundada na QI 17 do Lago Sul, no Edifício Fashion Park, Oswaldinho — como é chamado o querido pioneiro da cidade —,

comparece invariavelmente todos os dias, até mesmo aos domingos quando o restaurante fecha mais cedo. “Ele dorme até o meio-dia e só chega aqui depois das duas da tarde”, entrega Rosario, que, generosamente, manda servir o que o amigo quer comer. Os dois têm mesmo uma relação de vizinhos, pois moram no Lago Sul, próximo do estabelecimento, eleito o melhor restaurante de Brasília no ranking da revista Encontro Gastrô 2021. Nessa ocasião, e em outras situações especiais, Oswaldinho acorre com a sua câmera para registrar os feitos do amigo.

Foi assim também na visita, em novembro passado, do barão Philippe Rotschild, que veio à capital e levou os vinhos produzidos por ele para acompanhar o cabrito à caçadora, servido com polenta finalizado com pasta de trufas negras e pecorino romano. Repórter-fotográfico é a última função de Oswaldinho, que ao longo de 84 anos incompletos, teve várias. Todo o grand monde de Brasília guarda em casa imagens em papel feitas por ele. Depois de mandar revelar as fotografias no laboratório da 202 Sul, que fica ao lado do extinto Piantella (ponto preferido no passado), o profissional arquiva o produto de seu trabalho numa enorme caixa acomodada no porta-malas do carro, um Corolla ano 2019, comprado de um amigo. Antes, teve um Fiat tempra 1995, que “muitas vezes precisava ser empurrado para pegar”, lembra Rosario, que adora o folclore em torno do cliente free.

Uma das histórias que mais diverte o dono da casa se deu durante o habitual giro pelo restaurante quando Oswaldinho reconheceu um importante empresário que havia clicado, algum tempo atrás, jantando com a mulher. Não teve dúvida, foi até o carro vasculhou a caixa até encontrar a prova que ofereceu exultante ao fotografado, como lembrança. Só que a acompanhante nesse dia já era outra. A foto acabou estragando o jantar, o empresário ficou furioso e foi preciso o chef acalmar o poderoso cliente com “o deixa disso” para ele não discutir com Oswaldinho no salão.

Ernane Rocha, pai de Oswaldinho, foi contemporâneo de Juscelino Kubitscheck e, como ele, teve a mesma profissão: telegrafista. Só que JK por pouco tempo, até se formar em medicina. A família Rocha se instalou aqui uma semana antes da inauguração da nova capital, onde Ernane se tornou o primeiro superintendente dos Correios e Telégrafos. Logo em seguida, JK o nomeou chefe postal do Palácio do Planalto, na época em que as comunicações restringiam aos teletipos, código Morse e telefone de manivela.

O jovem Oswaldinho também foi empregado na empresa estatal, primeiro no Rio de Janeiro, na sede da Praça Quinze, onde passava mensagens e “muitas vezes eu colava as fitinhas de papel nos telegramas”, lembra o ágil e elegante octogenário mineiro, que tem corpinho de sessenta.

Ele não exagera nem na comida nem na bebida. Uma taça de vinho basta para acompanhar o prato de pasta do ex-editor de revistas de moda, turismo e social, que pretende relançar ainda no primeiro semestre o Mundo Vip, suspensa em 2016, que chegou a ter 82 páginas numa edição especial.

Moradores da mesma quadra de Brasília unidos pelo talento na cozinha

Liana Sabo

Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar
Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

Vizinhos não são só os de porta. Podem morar no mesmo bloco e se sentir vizinhos. Ou até mesmo de quadra. Há quem se considere vizinho de alguém que resida a uma distância mínima, capaz de ser percorrida a pé: de um bloco para outro. Como no caso do publicitário Charles Marar. Ele até consegue ver do seu próprio apartamento se há luz acesa na cozinha da “vizinha” Neide Pimenta Magalhães, residente em outro bloco da mesma 216 Sul.

A luz acesa ou alguma movimentação é a senha para ele ligar e perguntar com franqueza: “O que você está fazendo?” Invariavelmente, Neide estará cozinhando. Depois da família (filhos, noras, netos e o novo neto Theo, de quatro meses), e dos amigos, a paixão dela é fazer comida. Às vezes até o trivial, mas o que mais a inspira é mesmo o gosto requintado. De um prato tradicional, como a canjiquinha mineira, feita de costelinha de porco, Neide extrai uma explosão de sabores e texturas que não ficam devendo a nenhuma iguaria. Ser convidado para degustar a canjiquinha é um privilégio ímpar. Charles não perde nenhuma chance.

Nascida em Sabinópolis, interior de Minas, Neide viveu no estado por 18 anos quando se casou e foi morar em Aracaju por cinco anos. De lá veio à capital, onde passou a trabalhar no serviço público. O interesse pela gastronomia surgiu depois que o primogênito, já formado, voltou de Londres e passou a cozinhar, aos domingos, mostrando o que aprendera no trabalho em restaurantes. “Foi assim que a luzinha se acendeu e comecei a me interessar pelo tema fazendo as primeiras aulas com a chef Susana Leste na garagem de sua casa na W-3 Sul”, conta a aprendiz de mestre cuca, que também acompanhou as aulas dadas no restaurante Alice, no Lago Norte.

Ela também entende muito de vinho e participa dos cursos da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-DF) com degustações que a deixam apta a harmonizar a bebida com o extenso e variado cardápio de sua autoria.

Outro prato que ela elabora com maestria é o pernil inteiro pururucado. Aliás carne suína é a sua predileção. Embora de origem árabe, o vizinho Charles não é muçulmano, por isso não está impedido de consumir porco — ingrediente vedado a árabes e judeus. Como todo o cristão, ele pode perfeitamente se deliciar com esse tipo de carne macia, saborosa e cada vez mais gastronômica. O que dizer da maciez da raça Duroc, que está conquistando os paladares?

Comida de beduíno

Charles tem nas veias o DNA da boa cozinha. A mãe, Najila Marar, jordaniana de 91 anos, que mora desde 1948 em Bauru (SP), até a pandemia vinha sempre a Brasília preparar o jantar de aniversário do filho, no mês de maio. Na mesa, a culinária árabe, uma das mais antigas e aromáticas do mundo, reinava com uma série de pratos todos feitos artesanalmente, como homus, quibe de bandeja, kafta de forno, arroz com lentilha, babaganuche, coalhada e o exclusivíssimo Mansaf, que tem na base, pão de folha e por cima, arroz de açafrão e carne de cordeiro cozida na coalhada com snobar (pinoli) frito na manteiga.

“Trata-se de uma comida típica de beduíno, que é consumida no deserto com as mãos, daí o pão servir de prato”, esclarece a brasiliense Isadora Marar, formada em nutrição e personal chef com especialização na cozinha árabe/jordaniana, que aprendeu com a avó Najila. “Quando meus filhos eram pequenos, a minha avó passava temporadas comigo me ensinando todas as receitas desenvolvidas por ela”, lembra a neta.

Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar
Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

Já o pai Charles, que também apreendeu com Najila a preparar esse banquete — cuja fartura e generosidade são uma das principais marcas da hospitalidade árabe —, nunca transformou a habilidade em negócio e sempre cozinhou para os amigos. Há dois anos, porém, não podendo receber em casa por causa da covid-19, é a filha que abastece a sua despensa e geladeira. De falafel, esfirras, homus, chanclife e outras iguarias confeccionadas por ela e oferecidas todos os sábados na feira da QI 13 do Lago Sul. “Meu pai gosta de cozinhar para as pessoas”, entrega Isadora.

Apenas amigos

“Sozinhos há mais de duas décadas, Charles e Neide bem que poderiam casar,” propõe Najila, que gostaria muito que o filho tivesse alguém. “O casamento não iria durar um só dia”, reage, com humor, Neide, ciente das diferenças de temperamento e idiossincrasias de cada um. Melhor assim, para não interromper uma amizade profunda e firme que nem a crise sanitária abalou.

Recluso por um ano e meio, Charles quando revolveu sair de casa foi comer na cozinha da Neide, um espaço amplo e equipado com muito bom gosto. Ela também é perita na decoração de mesa e o faz com muitos recursos, graças à coleção de objetos e louças, afinal um dos filhos é sócio-proprietário da principal loja de equipamentos para hotéis e restaurantes da cidade.

Neide também investe na fórmula “viajar para comer”. Ela fez parte da primeira excursão enogastronômica que o ex-adido cultural e de imprensa da Embaixada da França Christian Couesmes, promoveu, no verão europeu de 2003, para a Borgonha e Jura, tendo como destaque “um jantar inesquecível na fabulosa casa de Paul Bocuse em Lyon”, como dizia o programa. Após elogiar a qualidade da comida, Neide escreveu no diário de viagem: “Um jantar no Paul Bocuse nos impele a atitudes mais comedidas, mas isto não aconteceu. Somos um povo alegre, barulhento, feliz e não ficamos tolhidos numa cultura que não é a nossa.

Ficamos muito à vontade, rimos alto, brincamos sem deixar de sentir o prazer de um jantar à francesa, quando o serviço é perfeito e descontraído, muito mais confortável do que um buffet”. A experiência na França serviu para aprimorar a atuação nos sabores.