Vai de bike! Um roteiro para conhecer o centro de Brasília de bicicleta

Iara Pereira*

Brasília é uma verdadeira obra de arte a céu aberto. O Plano Piloto projetado por Lucio Costa e repleto de monumentos de Oscar Niemeyer se tornou um ícone do modernismo brasileiro. A disposição pensada em quatro escalas – monumental, residencial, gregária e bucólica – criou uma cidade parque.

E qual a melhor forma de conhecer um parque se não de bicicleta? O Correio preparou uma rota que passa pelos principais monumentos de Brasília, confira a seguir:

1. Memorial JK

memorial jk

Partindo de um dos pontos mais altos da cidade, nosso passeio começa no Memorial JK. Construído em homenagem ao presidente que transferiu a capital do Brasil para o Planalto Central, o monumento guarda a história por trás da construção da cidade aniversariante. O espaço reúne acervo pessoal e político de Juscelino Kubitschek, com fotos que contam detalhes de sua vida, maquetes, vestes, imagens da construção e inauguração da capital e, ainda, uma reconstituição da biblioteca pessoal trazida diretamente do Rio de Janeiro. O memorial está aberto para visitação de terça a domingo, das 9h às 18h. O ingresso custa R$ 10, com meia-entrada para estudantes e idosos.

2. Mané Garrincha 

estádio mané garrincha

Continuando a rota em direção à Esplanada, você verá, à sua esquerda, o Centro Esportivo de Brasília, formado pelo estádio Arena BRB Mané Garrincha e a  Arena BRB Nilson Nelson. O espaço é palco para shows e competições desportivas, e em breve contará também com um Boulevard. As visitações são gratuitas e acontecem aos sábados, das 9h às 12h.

3. Planetário

planetário de Brasília

De frente para o estádio fica o Planetário de Brasília Luiz Cruls, homenagem ao astrônomo belga responsável pelo mapeamento do Planalto Central. O local é um centro de diversão e contato com a ciência. Durante a visita, é possível admirar um modelo de foguete suborbital usado pela Agência Espacial Brasileira, tirar uma foto ao lado do macacão espacial de Marcos Pontes, único brasileiro cosmonauta, e assistir a um filme em 3D projetado na cúpula do Planetário. O horário de funcionamento é de terça a domingo, das 9h às 21h. Entrada é gratuita.

4. Centro de Convenções Ulysses Guimarães 

 

Ainda no Centro de Diversões de Brasília está o Centro de Convenções Ulysses Guimarães. Inaugurado em março de 1979, o espaço passou por um processo de reforma e ampliação no ano 2000 e foi reinaugurado em setembro de 2005. Agora, com capacidade para abrigar mais de 9 mil pessoas ao mesmo tempo, o Centro de Convenções recebe shows e eventos variados.

5. Torre de TV

A Torre de TV é um marco visual da cidade. O projeto de Lucio Costa foi inaugurado há 55 anos para receber antenas de emissoras de rádio e TV. O mirante da Torre, a 75 metros do chão, é parada obrigatória para quem quer entender toda a simetria do plano piloto. A vista panorâmica das asas Sul e Norte e dos monumentos pelos quais acabamos de passar em nosso passeio são de tirar o fôlego.  A visita à Torre de TV se completa com o passeio pela Fonte Luminosa e pela famosa Feira da Torre, que oferece aos visitantes o melhor do artesanato e da identidade local.  O mirante fica aberto de terça a sexta-feira, das 12h às 17h45. Aos sábados, domingos e feriados, o funcionamento é das 9h às 17h45.

6. Biblioteca Nacional de Brasília

Nos aproximando do fim do passeio, temos a Esplanada dos Ministérios. O vasto gramado acomoda, além dos prédios ministeriais, outros cartões postais da capital, todos projetados por Oscar Niemeyer. Começando com a Biblioteca Nacional, disponível para visitas desde 2008. Além do serviço de empréstimo, a biblioteca permite a realização de eventos culturais, como exposições e palestras. O usuário também pode acessar a internet gratuitamente. De segunda a sexta-feira, a biblioteca funciona das 8h às 20h. Aos sábados e domingos, o público pode visitá-la das 8h às 14h.

7. Museu Nacional da República

O Museu Nacional da República é mais uma obra assinada por Oscar Niemeyer. O espaço em formato de semi-esfera é utilizado para exposições itinerantes de artistas renomados, palestras, mostra de filmes, seminários e eventos. Dessa forma, contribui para a educação democrática por meio da cultura e ativa o turismo. A entrada no espaço é gratuita e pode ser feita de terça a domingo, das 9h às 18h30.

8. Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida

A Catedral Metropolitana concentra todos os elementos pelos quais Niemeyer é reconhecido: linhas arquitetônicas únicas, vidros e espelhos d’água. O templo pode ser visitado de terça a sábado entre 8h e 16h45. Aos domingos, o horário de visitação é das 9h às 17h45.

9. Congresso Nacional

Principal cartão postal de Brasília, o Palácio do Congresso Nacional está situado no fim do Eixo Monumental. A sede do Poder Legislativo é composta por uma cúpula menor, voltada para baixo, que abriga o Plenário do Senado Federal. Já a cúpula maior, voltada para cima, abriga o Plenário da Câmara dos Deputados. Entre as duas cúpulas se encontram duas torres de 28 andares: uma delas pertence à Câmara e a outra, ao Senado. Atualmente as visitas presenciais ao Congresso Nacional estão suspensas e sem previsão para retorno.

10. Praça dos Três Poderes

Enquanto o Congresso ocupa um dos vértices do triângulo que delimita a Praça dos Três Poderes, a base do triângulo é formada pelo Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Para visitar o centro do poder no Brasil  é preciso agendar as visitas por meio dos canais oficiais. Além disso, também é possível encontrar o conjunto cultural da Praça dos Três Poderes, composto pelo Museu da Cidade, o Espaço Lucio Costa e o Panteão da Pátria Tancredo Neves. Todos contando parte da história da idealização e construção da capital do país. As visitas ao Espaço Lucio Costa e ao Panteão da Pátria podem ser feitas de terça a domingo, entre 9h e 18h.

E aí, já preparou sua bike? Veja as imagens do passeio no vídeo:

*Estagiária sob supervisão de Mariana Niederauer

Bolo, café e muita prosa! As famílias que Brasília uniu nos anos 1970

Arthur de Souza

Bolo, café e muita prosa!
O encontro: uma boa conversa toda semana | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Vizinhos desde 1974, as famílias de João Pedro, 91, e Helena Corte Real, 79, se consideram como uma. Nos quase 50 anos de amizade, eles dividem muitas histórias e uma tradição que foi estabelecida há cerca de nove anos, “a tarde do bolo”.

“Estamos sempre levando essa vida boa”. É assim que o militar aposentado João Pedro descreve a história da amizade que possui com a família de Helena Corte. Os dois são os atuais “comandantes” de uma família alegre e brincalhona, que abriu as portas para o Correio e contou um pouco das aventuras vividas durante os 48 anos de relação entre os moradores do Bloco A, na 313 Sul. “Conheci a dona Helena e o José Reis, seu marido, quando eu e minha família recebemos este apartamento. Foi um dia muito alegre, e essa felicidade correu durante todo o período de convivência. Nunca tivemos uma pequena desavença”, afirma João.

Helena relembra que, antes de o marido falecer, ele ia até a casa de Pedro todos os dias, sempre nos fins de tarde, para tomar café. “Isso era religioso. Na época, era apenas o café e muito papo”, brinca. Ela diz que cerca de dois anos depois da morte de José Reis, em 2013, encontrou com João no elevador do prédio. “Ele perguntou se eu queria comer um bolo na casa dele. Lembro-me que era uma quinta-feira e foi daí que criamos a tradição de fazer a tarde do bolo todas as quintas”, afirma Helena. “E é só o bolo. Não tem enfeite, nem cobertura. A única coisa que varia é o sabor. Às vezes, sai um de cenoura, outras de banana”, reforça João. Entre risos, ele relata situações que já viveu com a amiga por conta da reunião semanal. “De vez em quando, a minha empregada muda o jeito de fazer, daí ele murcha, e eu digo para a Helena: ‘Hoje não deu muito certo’. Não tem bolo, mas tem prosa”, ironiza.

Bolo, café e muita prosa!
Juntos na procissão do Fogaréu, em Goiás Velho | Foto: Arquivo pessoal

Muita história para contar

Filha do “seu” João, Raquel Villela, 58, destaca que, além da relação entre os dois, sua mãe (Joana) e Helena tinham uma amizade maravilhosa, sendo amigas inseparáveis. Algo que é confirmado pela aposentada de 79 anos. “A Joana era uma companheirona. Fizemos o enxoval dos netos juntas. No começo, ela não era tão esperta para o tricô. Mas, certo dia, ela me viu fazendo e quis aprender, aí ensinei para a Joana, que acabou ficando craque”, aponta Helena, que também conta um pouco das viagens que os casais costumavam fazer juntos. “Uma vez, fizemos uma espécie de excursão. Fomos para Ouro Preto, Mariana, Serro, Milho Verde e São Gonçalo do Rio das Pedras. Em outra viagem, nós fomos para Goiás Velho, no período em que acontece a Procissão do Fogaréu. Lá, fizemos até fotos segurando a tocha”, lembra.

O encontro: uma boa conversa toda semana.
Amizade sincera: Helena Corte Real, o amigo João Pedro e os filhos Raquel Villela, José Augusto e João Paulo | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Para Helena, os momentos mais marcantes e engraçados desta última viagem foi o momento em que decidiram fazer a viagem. “Meu marido resolveu, da noite para o dia, ir para lá (Goiás Velho). Falou com o João e ele topou. Quando chegamos lá, não estávamos conseguindo encontrar hotel. Depois de muita procura, conseguimos encontrar um quarto, onde dormiu nós quatro. Foi uma confusão só”, detalha aos risos.

A família também lembra das personalidades nada parecidas de João Pedro e José Reis. Raquel comenta que, pelo fato de o pai ser militar, ela e os irmãos tiveram uma criação mais rígida. “Na época de escola, se a aula começava às 7h30, meu pai saía comigo, meus irmãos e os filhos da Helena bem cedo, chegando na porta do colégio às 7h10”, destaca. “Enquanto isso, ‘Zezinho’ — que era contador — tinha uma personalidade oposta. Totalmente tranquilo, parava para conversar com todo mundo e, como era ele que nos buscava na saída, éramos os últimos a sair da escola. No caminho para casa, ainda parava com a gente para tomar um caldo de cana”, recorda.

Helena confessa que, até hoje, não entende como os dois se davam bem. “Acho que dá para dizer que, também na amizade, os opostos se atraem”, brinca. “Até a minha relação com a Joana era assim. Uma filha da Raquel disse, certa vez, que os casamentos estavam errados, e que na verdade, deveria ser eu com o João e a Joana com o meu marido”, conta às risadas.

Bolo, café e muita prosa!
As duas famílias sempre compartilharam a amizade | Foto: Arquivo pessoal

Criançada travessa

Entre os assuntos da conversa, Helena e João lembram dos momentos em que seus filhos foram personagens principais da longa história entre as famílias. “O Paulo (João Paulo), filho da Joana, ia para a minha casa quando era criança e ficava assistindo televisão comigo, na cama. Quando a Joana chegava lá, falava: ‘Não é possível, esse menino aqui!’. Mas não tinha jeito”, destaca. José Augusto Corte Real, 47, é filho de Helena e lembra que também costumava aparecer quase todos os dias na casa de João. “Eu era muito pequeno ainda e não alcançava o botão do quinto andar no elevador. Aí eu parava aqui e pedia para o ‘seu’ João apertar para mim”, conta o servidor público internacional.

Helena encerra comentando os apelidos de alguns dos filhos das famílias. “O José Augusto era o ‘Mexirica’, porque ele competia de bicicross com uma roupa toda laranja. Já o João Paulo, era o ‘Bichado’, pois tudo para ele estava bichado. O tênis estava bichado, a bicicleta estava bichada, etc.”, finaliza a aposentada.

Na época do Natal, as crianças sempre se reuniam
Na época do Natal, as crianças sempre se reuniam | Foto: Arquivo pessoal

Confraria Noroeste leva afeto a quem se sente sozinho na pandemia

Renata Nagashima

Vizinhos do Noroeste
Luana Batista com o cão João e Paula Navarro ( loira ). As mulheres fazem parte de um grupo que tem o objetivo de aproximar os vizinhos do Noroeste. | Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Durante a quarentena, a internet e as redes sociais trouxeram muitos benefícios para uma grande parte da população. Enquanto surgiam possibilidades para o trabalho, de forma remota, as aulas on-line, de adotar novas estratégias de comércio, manter relacionamentos afetivos e até desfrutar do lazer e da cultura foi um desafio. Smartphones e computadores intermediaram um maior contato entre as pessoas durante a pandemia e isso se potencializou para que certas rotinas fossem mantidas.

Nesse período, a tecnologia tem sido fundamental, não só para passar o tempo navegando em redes sociais e em streaming, mas também — e principalmente — para dar continuidade às interações humanas. Grupos de mensagem instantânea uniram, ainda mais, amigos e desconhecidos para minimizar o isolamento.

O grupo Confraria Noroeste veio para trazer afeto para aqueles que se sentiam sozinhos no Noroeste durante a pandemia. A Confraria acabou se tornando um local para fortalecimentos dos laços de amizades e uma rede de apoio entre os vizinhos.

Uma das responsáveis pela criação e administração do grupo é a economista Ana Luiza Champloni, 35 anos. Ela conta que o espaço funciona como uma rede de apoio. “Durante a pandemia, as pessoas estavam muito sozinhas, então o grupo foi um escape. Muitas amizades se formaram e é maravilhoso ver esse laço e bom convívio entre os vizinhos, que vai além de reclamações ou ‘bom dia’ e ‘boa tarde’, quando se esbarram em algum lugar”, afirma.

Ana Paula se mudou para o Noroeste. em 2015, e entrou em um grupo chamado “Girafonas”, onde conheceu as primeiras amigas do bairro. “O grupo foi crescendo e era muito legal, porque acabamos nos aproximando, fazíamos encontros e piqueniques juntas”, recorda. No entanto, com a pandemia, as conversas paralelas aumentaram e Ana Paula teve a ideia de criar um novo grupo apenas para conversas e trocas de vivências. Assim nasceu a Confraria.

“A gente troca muita ideia, indicação e tem muita ajuda. Esse é um canal importante para as pessoas se comunicarem, ainda mais durante um período em que ficavam muito sozinhas em casa”, explica. Por causa da quarentena, muitas mulheres se ofereciam para fazer compras para as pessoas que corriam mais riscos ao saírem de casa. “Amizades surgiram e contribuiu para fortalecer os laços entre as moradoras. Certa vez, uma moça fez aniversário e estava sozinha em casa, mas, mesmo a distância, conseguimos fazê-la se sentir amada. E é a razão de tudo isso”, acrescenta a economista.

Durante as datas comemorativas, as mulheres do grupo organizaram festas de Páscoa e junina on-line, com tudo que se tem direito. Em junho, um trio elétrico com música caipira e quadrilha de dança desfilou entre os prédios do Noroeste. “Foi uma ideia sensacional e ajudou para que, aos poucos, a gente fosse sentindo que as coisas estavam voltando ao normal”, completa.

Portuguesa, Paula Navarro, 50, mora no Noroeste desde 2014 e ela conta que o grupo ajudou bastante a aproximar as pessoas. “O grupo da confraria é basicamente de conversa e ajuda. É interessante a amizade entre elas, porque o que precisar, elas ajudam e você consegue nesse grupo. Fomos criando amizade e nos engajando para ajudar o próximo também”, detalha a empresária.

Ela destaca que iniciativas como essa no bairro resgata o tempo antigo de Brasília, em que as pessoas viviam em comunidade, na porta das casas e nos pilotis dos blocos. “As pessoas de fato convivem entre os vizinhos, as crianças brincam umas com as outras, o pessoal marca eventos e piqueniques, hoje em dia isso é raro”, diz Paula.

Busca

A servidora pública Luana Vieira Batista, 37, hoje é muito grata por essa rede de apoio que encontrou nos vizinhos. João, seu cachorro de estimação fugiu e, graças ao empenho e ajuda que recebeu dos moradores, ele foi encontrado seis dias depois. “Eu tenho certeza que se não fosse essa ajuda, nunca teria encontrado o João”, conta.

Em março ela estava passeando com o animalzinho quando, assustado por causa de outros cachorros, ele fugiu e desapareceu. “Foi desesperador”, recorda Luana. Após o episódio, ela começou a divulgar a foto no Instagram e no grupo do condomínio onde mora. “Os meus vizinhos começaram a mandar para outros grupos do Noroeste e começou uma corrente enorme”, conta. Os moradores do bairro se organizaram para ajudar a servidora pública a encontrar João.

“Eu fiquei chocada com toda essa rede de apoio. Nunca tinha feito parte de grupos de vizinhos e fiquei surpresa e muito comovida com a união e a rede de apoio que os vizinhos formaram. Aqui o pessoal tem esse diferencial, as pessoas procuram se unir e se ajudar”, diz Luana. Agora, os vizinhos querem combinar um piquenique para conhecer o João, que ficou conhecido.

Moradores reativam a Horta Comunitária da 114 Sul

Renata Nagashima

"A gente cria amizades"
Giovanna Bitencourt: relação com a comunidade enriquece a todos | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

“O interesse começa na gente”, foi com esse pensamento que a psicóloga Giovanna Bittencourt de Castro, 29 anos, se motivou em resgatar os laços de amizade e colaboração entre os vizinhos para reativar a Horta Comunitária SQS 114 Sul. “Se a gente não começar, como cobrar dos outros? E com a horta não é diferente. É por meio da nossa motivação inicial que vamos incentivar outras pessoas a terem esse cuidado com o lugar”, acrescenta a jovem.

Moradora do Bloco H em 2018, Giovanna teve a iniciativa de criar um grupo de convivência com os vizinhos da quadra. Para Giovanna, essa relação com a comunidade a enriquece e ela também pode contribuir com as outras pessoas. “A gente cria amizades e um suporte entre os vizinhos”, afirma. Um exemplo, é uma amizade que fez com uma idosa que mora sozinha. “Ela tem um cachorro e eu ia lá às vezes, descia com ele para o Eixão. Eu estava com ela pela companhia e hoje é uma pessoa que é minha amiga”, conta.

Por mais laços como esse, Giovanna não pensou duas vezes em reativar a horta da quadra. “Quando eu soube que um dia tiveram esse espaço, fui atrás de quem também tinha o mesmo interesse que eu”, relata. Assim, a psicóloga conheceu Suzana Ramos Silveira da Rosa, 61. Moradora do Bloco B, ela é uma das vizinhas que participou do processo de implementação da horta.

Em 2013, por meio da iniciativa de duas moradoras do Bloco B, nascia a horta em um pequeno cercado atrás do Jardim de Infância 114 Sul. A intenção inicial era trabalhar com uma horta educativa junto com a escola, mas a parceria não vingou e os moradores da quadra cuidaram do espaço sozinhos. “Fazíamos mutirões, então quem não ajudava durante a semana, vinha no sábado ou domingo, no final das contas todo mundo participava de alguma coisa”, recorda Suzana.

"A gente cria amizades"
Giovanna (E) e Suzana Ramos: a intenção inicial era fazer uma horta educativa | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Canteiros

No entanto, em 2018, com a crise hídrica, os moradores decidiram desativar o espaço. “Não era justo com as pessoas de outras regiões administrativas, que passavam por aqui. Elas não tinham água nem para tomar banho e aqui estávamos regando as plantas”, explica a enfermeira. Na época eram 14 canteiros, área de compostagem e um minhocário. Hoje, o espaço conta com apenas seis canteiros.

Hoje, o objetivo, além de reativar o espaço plenamente, é resgatar o espírito de comunidade entre os vizinhos da SQS 114. “Antes da pandemia a gente se reunia para tudo, organizávamos lanches, aula de tai chi chuan, tínhamos uma convivência boa. É uma coisa que sentimos falta e queremos retomar. Aos poucos vamos conseguindo acender o interesse na comunidade”, acrescenta Suzana.

"A gente cria amizades"
Horta comunitária na 114 sul. Giovanna Bitencourt (cam vermelha) e Suzana Ramos | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Relações

Giovanna concorda com a vizinha e compara a atual aparência da horta com a relação dos vizinhos. “Hoje, vemos uma horta não tão bonita, um pouco seca. Ela não está exuberante, mas eu acho que isso reflete como estão as nossas relações como comunidade. Representa muito da escassez das relações da nossa comunidade. E isso tudo aqui é sobre relações e pensando no próximo”, explica a psicóloga.

Para a jovem, a pandemia ensinou a pensar mais no que é possível fazer para contribuir com o próximo. “Eu venho aqui, cuido e planto não só para o meu benefício, mas para o outro também. Tem gente que vem aqui só para colher. E é um trabalho de via dupla, porque eu confesso que gosto de plantar, mas não lembro de colher e sempre tem alguém que colhe. Mesmo que essa pessoa não esteja ajudando ativamente, eu vou ficar feliz porque alguém está colhendo e se beneficiando disso”, completa.

"A gente cria amizades"
Foto: Minervino Júnior/CB/D.A. Press

Ao som dos garotos de Liverpool: no Lago Sul, vizinhos se reúnem para conversar sobre os Beatles

Pedro Almeida*

Arquivo pessoal
Com os bonecos de cera dos Beatles, em Londres | Foto: Arquivo pessoal

Já se vão 52 anos desde que os Beatles oficializaram o fim da carreira. Em 1970, John, Paul, Ringo e George colocaram um ponto final em um dos projetos musicais mais importantes do século 20. O legado, porém, se perpetua até hoje. As canções compostas nos anos 1960 em Liverpool, na Inglaterra, extrapolaram as fronteiras do espaço e do tempo e chegaram até o Lago Sul, em 2022. O quarteto é motivo de encontro para debates regados a vinho entre os vizinhos Eduardo Levy e José Alexandre, que compartilham da paixão e de uma coleção invejável de artigos sobre a banda.

O carioca Eduardo, que é mais conhecido como Levy, rememora a infância no Rio de Janeiro. Em uma descrição que pinta uma cidade que já não existe mais, ele conta sobre os papos no paredão da Urca e as descobertas musicais. Nos anos 1960, ainda no colégio, Levy descobriu a Modern Sound, uma loja de discos situada na rua Barata Ribeiro, coração de Copacabana. O estabelecimento, que se tornaria um marco cultural da cidade, trazia uma coleção de discos atuais do mercado internacional. Eduardo teve, enfim, a oportunidade de conhecer um tal quarteto que fazia um certo barulho mundo afora. Para praticar um pouco do inglês, ele levou para casa uma “bolacha” dos Beatles e nunca mais foi o mesmo. Hoje, aos 70 anos, ele trocou de capital, mas a idolatria permanece.

José Alexandre não sabe precisar quando, nem por que o amor pelos Beatles se deu. Talvez, a mãe, que tinha uma conexão com a música, pudesse tê-lo introduzido; ou, porventura, o aprendizado do piano tenha sido a chave, já que, ainda que primorosas, as canções do grupo podem ser tocadas com relativa facilidade. José lembra-se, inclusive, de ter, na adolescência, um cachorro chamado John Paul, em homenagem aos vocalistas da banda. Se o início do amor não pode ser pinado, tampouco o fim. Aos 49 anos, o advogado capixaba, que se considera brasiliense, segue aficionado pelo quarteto de Liverpool e faz questão de compartilhar o interesse com os três filhos, que também são fãs da banda.

A quadra 26 do Lago Sul, na qual os beatlemaníacos residem, conta com uma associação de moradores, cuja presidente é esposa de José Alexandre. Em uma das reuniões, sediada no lar do casal, Levy compareceu e notou a vasta coleção de José Alexandre sobre a banda. Nascia, ali, a amizade pautada pelo interesse comum. Dali em diante, a dupla se encontraria incontáveis vezes sem o pretexto da associação de moradores. Para não dizer que os encontros são estritamente monotemáticos, ambos são categóricos ao afirmarem que há um outro assunto importante: o Flamengo. “Mas os papos inteligentes são sobre Beatles”, brinca José Alexandre.

Arquivo pessoal
Eduardo Levy ao atravessar a faixa de pedestre da Abbey Road | Foto: Arquivo pessoal

Quebra-cabeças

Os mais de 20 anos que os separam fazem com que a discussão não se esvazie. Questões geracionais, além dos gostos pessoais, entram em jogo e trazem visões distintas sobre cada uma das peças do vasto quebra-cabeças que é a obra completa dos Beatles. Se José Alexandre aponta Blackbird como a grande canção, Abbey Road como o melhor álbum e George Harrison como o Beatle preferido, Levy enaltece Yesterday, prefere o Álbum Branco e condecora Paul McCartney como o melhor do quarteto.

Além do extenso catálogo, a banda, para a sorte do duo, gera frutos mesmo após meio século de rompimento. Livros, filmes e documentários novos com materiais inéditos estão sempre à disposição todos os anos. As vozes de José e Levy também já se misturaram à da legião de fãs nos shows de Paul McCartney, ativo até os dias de hoje em carreira solo. Para cada novidade, ou no simples prazer de reavivar um disco antigo, basta abrir o vinho, acionar o vizinho e deixar o som rolar.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Crônica: A vizinhança da macacada

 Severino Francisco

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Vou falar de vizinhos peculiares: os macacos-pregos. Não os escolhi. A convivência com animais silvestres é uma das singularidades de Brasília. Moro em um condomínio horizontal, fronteiriço a uma mata cerrada. A chegada dos macacos é mágica. De repente, você ouve um barulho de mato se mexendo. Só que é um alvoroço aéreo, em cima das árvores, de galho em galho, a 10 ou 15 metros de altura.

Eles formam uma turma simpática, mas bagunceira. Fazem acrobacias de deixar o Cirque du Soleil no chinelo. Nunca vi nenhum macaco despencar do alto por um movimento em falso. E não revelam extrema destreza apenas no espaço aéreo.

Certa vez, fiquei apreensivo, pois um macaco teve a ideia temerária de transitar sobre uma cerca de arame farpado. Evitei gritar, permaneci estático, imóvel como a estátua do silêncio, com medo de assustá-lo e provocar um acidente. No entanto, com incrível habilidade, ele atravessou toda a extensão do fio farpado, incólume, tranquilamente, sem sequer dar uma olhadinha no lugar em que pisava.

Quando os vejo em acrobacias, tenho vontade de dizer o mesmo que Rubem Braga falou a um sujeito que fazia malabarismos em uma corda suspensa em cima dos prédios, a mais de 20 metros de altura: “Eu quero ver é aqui embaixo”.

Em uma madrugada brasiliana, acordei assustado com o barulho do que me parecia um pagode ou uma pelada em cima do telhado. A zoada se dirigia para um lado e, em seguida, guinava, abruptamente, para outro. Levantei voado da cama, em dúvida se estava sonhando, na tentativa de desvendar o enigma. De repente, avistei a silhueta de um macaco no alto de uma faixa de vidro e dei uma bronca.

Não foi suficiente para afugentá-los. Abri a porta da sala e joguei uma pedra nas árvores próximas, só para dispersar. No entanto, em razão talvez da falta de aquecimento e da rotina de exercícios físicos, torci o braço e tive de fazer fisioterapia durante mais de um mês. E o pior é que o fisioterapeuta estava mais preocupado com a saúde dos macacos do que com a minha: “E os macaquinhos? Cuida bem dos macaquinhos, hein?”, recomendava sempre.

Nas férias, resolvi botar moral na macacada. Armei uma rede, peguei um livro para ler e fiquei de plantão. Quando se aproximavam, eu os espantava. A situação estava sob controle e ia bem. No entanto, numa tarde, ouvi um barulho, prestei atenção e levei um tremendo susto. Vi o que me parecia ser um macaco de duas cabeças.

Todavia, observando melhor, constatei que era apenas uma mãe com o filhote nas costas. Ela me mirou com os olhos pungentes, faiscantes e interrogativos, como se perguntasse: “Não vai me deixar alimentar meu filhote?”

Aquela cena minou-lhe a convicção saneadora. Liberei a mangueira e, desde esse dia, perdi a moral com a macacada. No período das chuvas, eles quebraram oito telhas e desarrumaram 22. As goteiras se espalharam pela casa, pingava para todos os lados. Os meus dois netos, Aurora, 8, e Judá, 4, abriram guarda-chuvas para transitar pela sala e levar baldes para recolher a água que gotejava.

Pedi ao senhor Hermínio para subir no telhado e arrumar. Fui eu quem invadiu o território deles. Mais recentemente, tive de suprimir algumas árvores para construir um muro de divisa com vizinhos e a macacada arrefeceu a bagunça no telhado. Esses macacos aprontaram tantas que viraram personagens de caderno especial.Salvaram-me muitas vezes. Valeu, macacada!

Amizade além do tempo: companheirismo e respeito que atravessa décadas

Edis Henrique Peres

Amizade além do tempo
Kátia Kouzak (D) e Vera Hildebrand: momentos de alegria e de tristeza. | Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Uma amizade que viu Brasília nascer e que esteve presente nos momentos mais alegres e nos mais solitários e desesperançosos uma da outra. Assim se define o vínculo de quase 62 anos entre Vera Hildebrand Pires da Cunha, 75 anos, e Kátia Abudakir Kouzak, 76. As duas se conheceram na adolescência, quando chegaram à capital do país, inaugurada no mesmo ano. Desde então, o laço segue firme e inquebrantável entre as duas amigas, que são “praticamente irmãs”. Religiosamente, aos domingos, Vera deixa sua casa na Asa Norte, passa na padaria, e vai para o Lago Sul, visitar Kátia.

“Chamamos de café da manhã da Vera”, conta Kátia, aos risos, sobre o banquete que a amiga traz da panificadora. Na mesa de varanda, elas montam a refeição e batem papo. O hábito de compartilhar lanches entre as duas é antigo, e vem ainda da juventude, na época em que estudavam juntas na Comissão de Administração do Sistema Educacional de Brasília (Caseb). “A gente comia a mesma coisa no intervalo: um sonho e um Grapette (refrigerante de uva)”, lembra Kátia. “Esse era o nosso lanche das 10h”, acrescenta.

Vera foi a primeira das duas a chegar em Brasília. “Dia 13 de abril de 1960, tinha 13 anos, era uma quarta-feira, quando vim para cá. Fiquei encantada, porque Brasília estava lotada de barraquinhas de acampamento”, conta. Já Kátia chegou dois meses depois, em 12 de julho do mesmo ano. “Na época morávamos na SQS 107, uma no Bloco A e outra no Bloco D. E íamos juntas para o colégio. A amizade começou porque estudávamos na mesma sala”, diz Vera.

Para as duas amigas, as lembranças ainda são vívidas e enquanto relatam as memórias, elas sorriem com o revisitar dos dias de infância. “Aproveitamos muito a nossa juventude”, salienta Vera, que recorda do tratamento que realizou no hospital Sarah Kubitschek. “Como nasci com paralisia cerebral, eu fiz acompanhamento por muitos anos no hospital, comecei por volta dos 14 e segui até uns 20 anos, ia cerca de três vezes por semana”, conta.

Kátia revela que acompanhava a amiga nessas consultas até que foi proibida. “Brincava tanto (no hospital), assanhava os velhinhos, jogava peteca e fazia de tudo. Até que fui proibida de ir”, conta, entre risos. “A Vera chegou para mim nesse dia toda triste, dizendo: oh, Kátia, a direção não quer que você vá mais não”, diz.

O que mantém o laço até os dias de hoje, é a “amizade pura”. “Geralmente as pessoas têm algum interesse, quer alguma coisa. Mas a nossa amizade dura tanto tempo, porque ela é constante. E na hora que a gente precisar, sabemos que podemos contar uma com a outra”, ressalta Vera. Kátia acrescenta que as duas buscam simplesmente a companhia uma da outra, pois é isso que as fazem bem.

Amor e admiração

Ao longo das seis décadas de companheirismo entre Kátia e Vera, as duas passaram por momentos marcantes. Mesmo em cursos de graduação diferentes, Kátia estudando ciências contábeis, e Vera, psicologia, o vínculo se manteve. Kátia garante que a união entre as duas vem de um pacto de muito amor e admiração. “Não temos o mesmo sangue, mas somos que nem irmãs. E olha que somos bem diferentes na personalidade”, diz.

No espírito de companheirismo, quando Kátia estava no hospital para ganhar o primeiro filho, Vera foi chamada, de madrugada, para acompanhar a amiga. “Eu era muito jovem, tinha 25 anos, era o meu primeiro filho, me sentia despreparada. Estava assustada e a Vera era a pessoa que eu queria do meu lado para me acolher, porque eu estava perdida”, detalha. Vera não só acompanhou o parto de Kátia como é madrinha do filho dela, Solon Kouzak.

Mas além dos momentos de alegria, as duas são um suporte nos desafios e dificuldades. Kátia lembra que quando o marido ficou muito doente, Vera ia ao hospital visitá-la. “Meu esposo ficou um ano e quatro meses muito debilitado. Nesses grandes momentos, nas coisas que mudaram a nossa vida, ela (Vera) estava do meu lado. Quando meu marido estava doente e depois quando ele partiu eu enfrentei todo tipo de problema, com sócio e doença — fiquei cardíaca —, e foi a Vera que me apoiou”, se emociona Kátia.

Vera também enfrentou a perda do esposo e conseguiu superar o luto graças a ajuda da amiga. “Meu marido teve câncer de pulmão, ficou três meses muito ruim e depois partiu. Agora faz quatro anos, o tempo passa muito rápido. Quando ele foi embora, foi a Kátia que me lembrava que a vida não acabou, que ele não ia querer que a minha vida parasse. Em razão disso, a gente ficou mais unida. Foram esses momentos, os essenciais e que fizeram toda a diferença”, avalia Vera.

“Eu vi Brasília nascer”

Para Kátia, foi “puro destino” que viesse para a capital e encontrasse aqui uma amizade de uma vida. “Meu tio era militar da Aeronáutica e eu queria estudar na capital federal. Sou paulista e primeiro fui morar no Rio de Janeiro, que era a capital do país, com os meus tios. Depois, meu tio foi transferido para Brasília e eu vim com eles, como meus tutores”, afirma.

Já Vera veio do Rio de Janeiro, porque o pai era da Fundação Educacional e foi o responsável por trazer os professores do país e criar o modelo de ensino da capital. “Quando eu cheguei, Brasília estava cheia de barraquinhas e todo mundo tinha no carro um adesivo escrito ‘Eu vi Brasília nascer’. Nas noites de sábado, a gente descia para baixo dos prédios com violão e vitrolas e ficava cantando e dançando. Lembro até hoje, da festa da inauguração (da cidade), que me marcou muito, em que fizeram uma dança ao lado das conchas (do Senado e da Câmara) e soltaram tecidos que chegavam quase até embaixo. Eu me lembro muito disso”, afirma. Vera arremata: “Na próxima encarnação, já pedi para nascer aqui, em Brasília”.

Crônica: Maravilha de Brasília

Dad Squarisi

Brasília

Na década de 1970, recebi um casal de amigos equatorianos. Fizemos um tour pela cidade. Foi um fim de semana de visitas, idas e vindas. Quando foram embora, perguntei-lhes o que tinham achado da nova capital. A resposta:

— Deu a impressão de uma cidade construída por extraterrestres, que a plantaram aqui e voltaram pra casa.

Queixaram-se da falta de gente nas ruas, falta de movimento, falta de alma. Se o casal voltasse hoje a Brasília e passasse um fim de semana aqui, veria que a capital dos brasileiros mudou. O brasiliense descobriu o lazer ao ar livre. A urbe ganhou vida.

Como não é uma ilha sem pai nem mãe, reflete os problemas das grandes cidades nacionais. Tem violência, desemprego, corrupção, segregação social, congestionamento de trânsito, filas em hospitais, transporte público deficitário.

Ela também projeta qualidades que enchem os brasileiros de orgulho. O brasiliense não buzina, respeita a faixa de pedestres, cumprimenta o desconhecido na rua, no elevador, no ônibus ou no metrô. Lê muito, frequenta bibliotecas, zela pelo meio ambiente para manter o ar respirável, as águas limpas e as áreas verdes intocadas.

Multidões vão às ruas. Manifestantes vestem o Eixo Monumental de verde-amarelo no belo exercício da cidadania. Acampam nos gramados do Congresso Nacional ou na Praça dos Três Poderes pra pressionar as autoridades e reivindicar direitos.

Nos feriados e fins de semana, a cidade se transforma. Brasília deixa de ser o corpo com cabeça, tronco e rodas. Ganha pernas. A população lota parques e ruas. Corredores invadem o asfalto.

Ciclistas pedalam em vias exclusivas ou misturados com pedestres que vão e vêm.

O Eixão dos carros vira Eixão do lazer. Gente pequena e gente grande enchem o domingo de cores, vozes e odores. Crianças correm, gritam, jogam bola, puxam carrinhos e passeiam cachorros. Skatistas se equilibram em voos que desafiam a gravidade.

Cadeirantes circulam, vendedores negociam, artistas se exibem, olhares se encontram. A capital dos brasileiros traz pras ruas seu patrimônio mais precioso — as pessoas. O casal equatoriano tem de voltar pra Brasília.

 

José Carlos Coutinho: “O brasiliense inventou as próprias esquinas”

Severino Francisco

José Carlos Vieira

ED ALVES/CB/D.A Press
Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

O professor aposentado de arquitetura da Universidade de Brasília (UnB) José Carlos Coutinho chegou a Brasília em 1968, com 33 anos, a idade de Cristo. Podia ser uma crucificação vir morar num lugar ermo, mas foi uma ressurreição. Veio de Porto Alegre para dar um curso de seis meses e nunca mais voltou, tornou-se um brasiliense de corpo e de alma. Ele é uma das figuras mais elegantes, distintas e admiradas da cidade. Frequenta os principais eventos culturais de Brasília e o amigo Vladimir Carvalho espalhou a versão de que ele já foi visto em três lugares ao mesmo tempo. Nesta entrevista, ele fala sobre a singularidade das relações de vizinhança, os lugares encantadores e as ameaças ao futuro de Brasília.

Antigamente, as pessoas não ficavam em Brasília nas férias e, quando podiam, nem nos fins de semana. Como cidade rompeu os estereótipos e passou a criar uma identidade?

Existem os hóspedes da cidade, mas a cidade cresceu muito e tem um contingente que permanece e abraçou a cidade. Quer sossego, recolhimento. E Brasília tem muitos lugares amáveis e acolhedores. Eu, por exemplo, não sinto falta nenhuma de sair da cidade.

Que lugares considera encantadores em Brasília?

Gosto muito do Pontão, dos parquinhos de entrequadras. Neste momento, estou na Praça das Carpas na 308 Sul, não existe isso em lugar nenhum. O que me encanta é a juventude, as crianças brincando, as mulheres passeando com seus cachorros. Acho encantador. O contraste entre as vidas que estão acabando e as que estão se iniciando. Hoje, há muitos programas atraentes na cidade. Ontem, fui à Escola de Música assistir a uma Missa de Bach, executada por um coral e orquestra. São aqueles momentos em que Brasília parece uma cidade e uma cidade civilizada. Tem bons cinemas, boa música, bons filmes. O Parque da Cidade é muito bonito.

Que lugar recomendaria para uma visita?

Recomendo ir até a Pedra Fundamental de Brasília, próximo a Planaltina. A maioria das pessoas nunca foi lá. Tem um horizonte de 360 graus, ali, você se sente senhor do mundo. O Lago não é só interessante no Pontal. Digo às pessoas que elas não se dão conta de que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza. Parece mentira que quase ninguém conhece o criador do Lago Paranoá. Foi uma pessoa que veio do Rio de Janeiro na Missão Cruls, chamado Auguste Glaziou. Não tem nenhuma uma homenagem no espaço urbano que lembra a sua existência. Está na hora celebrar Joaquim Cardozo (Joaquim Maria Moreira Cardozo foi um engenheiro estrutural que ajudou Oscar Niemeyer, além de ser poeta, contista, dramaturgo, professor universitário) ou Glaziou. Não precisa ser nada muito grandioso, bastava fazer um monumento. Gosto da Ponte do Arcos, que tem uma prainha deliciosa, bem popular, com acesso de ônibus para as pessoas simples fazerem piqueniques ou nadar. Se há algo popular, é lá. Sou um observador social, mais do que ver, gosto de observar e imaginar o que se passa com aquelas pessoas.

Como vê essa história de que Brasília não tem esquinas e as pessoas não se encontram?

Isso virou piada, não se pode reduzir as singularidades de Brasília. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar. Tenho um grupo de amigos que, todas as sextas, marca um ponto para se encontrar. Tem a Banca da Conceição, eu brincava com ela: “Você criou uma nova esquina de Brasília”. O habitante da cidade é muito criativo. A nossa obrigação é orientar para que seja para uma solução respeitosa do projeto urbanístico da cidade.

Brasília foi pensada para as pessoas usufruírem os espaços públicos, onde os vizinhos pudessem ter uma interação entre eles e as áreas ao redor. Essa ideia de Brasília persiste ainda hoje?

Criar um espaço urbano para permitir interações entre os que mora na mesma área não é invenção do Lucio Costa; é uma ideia tirada da sociologia urbana e do urbanismo americanos. A proposta era reproduzir em área pequena as relações de um lugar interiorano. Cada unidade deveria abranger em torno de 2 mil habitantes, com comércio, locais para lazer e escola. Mais do que local de ensino, ela é concebida como local de convívio. Muitos pais se conheciam em função das crianças. Isso funcionou durante algum tempo. Acontece que a população envelhece, as crianças se tornaram adultas e moram em outros lugares. Há um processo de transformação. Hoje, é preciso romper a barreira das relações virtuais. Algumas vezes, as praças estão vazias porque as pessoas estão na frente dos notebooks ou dos celulares, conversando com alguém da Finlândia. Isso é perigoso. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos constatou o declínio no QI da humanidade, um emburrecimento da humanidade por se fechar nos mundos virtuais.

Os clubes de unidade e de vizinhança têm um papel importante nessa mistura de gente vinda de várias regiões do país. Essa célula urbana deu frutos?

Apesar de tudo, as unidades de vizinhança completas das quadras 108, 308, 107, 307 formam esse quarteto importante, pois têm o jardim da infância, a escola primária e escola secundária, com a proposta de ensino em tempo integral, concebido por Anísio Teixeira. Tem igreja, cinema, restaurantes, comércio e clube. O clube, que antes atendia a população moradora, se tornou um equipamento como os outros, que acolhe pessoas de todos os lugares. Mesmo assim, é um equipamento agregador. É útil, trabalhei no Instituto do Patrimônio Histórico e promovi o tombamento das unidades de vizinhança mais completas. O Oscar começou a jogar basquete em um desses clubes. São equipamentos essenciais, mesmo que sofram um processo de transformação inevitável.

O que se perdeu e o que se evoluiu das ideias de Lucio Costa para a capital?

Eu acho que mais do que a Esplanada e a Praça dos Três poderes, a Unidade de Vizinhança é o ponto alto do Plano Piloto de Lucio Costa. Só lamento que seja privilégio de 10% da população de Brasília. Por que não ser extensiva das cidades satélites? Houve um empobrecimento da administração de Brasília que depauperou as propostas iniciais. Chegou haver um deputado que pediu a transformação das superquadras em condomínios fechados. É um absurdo, a ideia da superquadra é a de espaço público transitável em todas as direções. O piloti é um espaço público. Você atravessa o prédio, são graus de liberdade total do solo.

“Digo às pessoas que elas não se dão conta que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza”

 Vemos nos anos anteriores à pandemia a volta das pessoas às áreas públicas da cidade, carnavais de rua, piqueniques e eventos de toda natureza… É esse o DNA de Brasília?

Acredito que sim, a tendência das pessoas é ocuparem os espaços públicos. Gosto muito do Setor Comercial Sul, é bonito ver a travessia da população trabalhadora. Os espaços dos shopping centers são expressão do enclausuramento da vida pública. Morei algum tempo na Inglaterra e visitei um shopping-center que era agradabilíssimo no início. Era unidade fechada, climatizada, com jardim e canto dos pássaros. Mas, depois, percebi que o jardim era artificial, as árvores eram de plástico e os cantos eram gravados. Quer dizer, estávamos no admirável mundo novo. Não tem nada a ver com o plano de Brasília, que contempla uma escala bucólica maravilhosa.

O antropólogo James Holston, autor de Brasília: Cidade modernista, disse que a cidade era triste. Como percebe as ideias dele?

Olha, conheci o James Holston. Ele chegou a Brasília com ideias prévias e não encontrou a Brasília que imaginava. Em vez de rever suas ideias, passou a negar Brasília. Lamentava, por exemplo, o tipo de vegetação das superquadras, pois ficou muita alta e ocupava o espaço dos edifícios. Mas eu acho que isso é uma sorte: tem edifícios que precisam de árvores bem altas para formar uma cortina verde que os proteja do sol e do barulho.

Como vê o futuro de Brasília? Não existe uma séria ameaça de que a escala bucólica da cidade e a qualidade de vida sejam comprometidas pela concepção rodoviária dos governantes?

Concordo inteiramente, haja vista a macarronada que fizeram no Sudoeste, invadindo o Parque da Cidade. É uma mentalidade rodoviarista. Está na hora de pensar a cidade com uma outra lógica de transportes. Já estão falando em duas novas pontes e em uma avenida interbairros no Lago Sul. Não são apenas soluções técnicas, são soluções financeiras. São obras de que os empreiteiros gostam muito. Os beneficiados não serão os motoristas, mas, sim, os empreiteiros e as imobiliárias. Sou pela simplificação do trânsito e pela primazia ao transporte coletivo. Não tem maior absurdo, a lógica seria os carros diminuírem de tamanho para ocuparem menos espaços. Mas o que a gente observa são veículos cada vez mais gigantescos, cada vez mais parecidos com ônibus individuais. Falta bom senso e políticas públicas. Esse é o verdadeiro sentido da política: estimular as boas tendências.

“Essa história de que Brasília não tem esquinas virou piada. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar”

 

Na quadra modelo, uma amizade que atravessa décadas

Felicidade compartilhada
Vizinhas de Superquadra, Rosa Regina Faleiros (direita) e Noêmia Vasconcelos | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Na quadra mais antiga de Brasília, desenhada por Oscar Niemeyer e inaugurada em 1960, se forjou uma amizade que dura mais de 20 anos e percorreu continentes. Entre viagens, almoços e cafezinhos, Rosa Regina Faleiros, 70 anos, e a amiga Noêmia Vasconcelos Victor, 79, compartilham risadas, desabafos e espantam a solidão. O laço entre as duas nasceu na superquadra 108 Sul, quando Noêmia se mudou para o mesmo bloco de Rosa Regina, em 2000.

“Fui morar na 108 e a Regina era síndica, então tínhamos contato contínuo. Aos poucos, começamos a sair juntas para lanchar e a amizade foi surgindo muito naturalmente. Depois, precisei mudar do Bloco I para o F, mas a amizade permaneceu. Nós duas saímos para comemorar aniversários, falar sobre a família, dizer como estão os netos”, detalha Noêmia.

A aposentada revela que as amigas chegaram a visitar o exterior. “Um dos nossos melhores programas foi uma viagem que fizemos para Portugal e Espanha. Começamos (o tour) em Lisboa, e fomos em direção à Espanha, parando em diversos pontos. Minha filha foi junto porque ela dirige no exterior. Foi uma viagem maravilhosa, a gente curtiu muito. E tinha outras pessoas da quadra 108 na viagem que também são amigas nossas”, relembra.

Segundo ela, o vínculo também é um auxílio nas horas de necessidade. “Regina é muito comunicativa e prestativa. Ela gosta de dirigir para qualquer lugar, já eu não gosto de pegar o carro. Então ela me ajuda quando preciso. Uma amizade boa assim é muito saudável, porque os nossos filhos já se casaram e tendo esse vínculo a gente sai do isolamento e se diverte. Contar com outras pessoas para passear e não ficar só é muito importante”, avalia.

Passeio de amigas

Rosa Regina assegura que o laço entre as duas se fortaleceu “pelo que havia em comum” entre as aposentadas. “Ela era viúva e eu era divorciada. Como ficávamos muito só, começamos a sair para tomar um cafezinho, um chopp e para pegar um cinema. Fizemos uma amizade entre três amigas, mas a terceira do grupo voltou para o Rio de Janeiro e agora quem mantêm esse vínculo somos eu e ela. A questão é que a pandemia atrapalhou muito os nossos passeios. Antes, às sexta-feiras ou aos sábados, a gente almoçava fora, porque gostamos muito de feijoada”, salienta.

Depois do prato típico, as duas amigas paravam no Praliné Confeitaria Suíça, tomavam sorvete e visitavam o Casa Park. “Isso já era por volta de 16h, a gente dava uma olhadinha nas lojas, e depois ia para o cinema. E mesmo após a sessão, ainda tínhamos pique para ir comer uma pizza e tomar um chopinho. Eram dias muito agradáveis que dava para colocar toda a conversa em dia. Agora, estamos voltando a nos encontrar aos poucos. Almoçando no comércio local, comendo um lanche, saindo de vez em quando. Nada igual a programação que fazíamos antes, devido ao risco do vírus”, pondera.

As viagens ao exterior não foram as únicas feitas por Noêmia e Rosa Regina: as amigas também visitaram Aracaju, Rio de Janeiro e São Paulo. “A gente mora sozinha e os filhos se casaram, então, querendo ou não, surge um pouquinho de solidão. Essa convivência supre esse espaço. A nossa amizade serve como desabafo, contamos dos problemas, do que está acontecendo na nossa vida, das nossas mágoas. Colocamos para fora os nossos problemas com alguém que a gente confia”, salienta.

Amor pelo DF

Além das outras semelhanças, Noêmia e Rosa Regina compartilham uma mesma paixão: o amor pela capital do país. Rosa Regina chegou à capital em 1962, quando tinha 10 anos. “Meu pai era servidor público do Ministério de Minas e Energia e morávamos em São João Del-Rei, em Minas Gerais. Na época, o que chamava os servidores para a capital era o apartamento funcional, que os moradores recebiam ao vim para cá. Quando chegamos, recebemos o apartamento na 108 e eu passei minha infância na quadra, estudava na Escola Classe, visitava o Clube Vizinhança para lazer e frequentava a Igrejinha. Para a gente era uma benção viver nessa quadra, porque tudo era próximo e nessa época ninguém tinha carro”, lembra.

Os anos se passaram e, com o casamento, Rosa Regina deixou o lugar em que formou a maior parte das memórias da infância. “Sempre quis voltar para 108, por isso, quando tive oportunidade, em 1995, eu financiei um apartamento no Bloco I. Aqui (na quadra 108) fui síndica durante 12 anos, deixei o cargo há quatro anos”, informa. Rosa Regina acrescenta: “Falo com muito orgulho que sou moradora de Brasília, porque não existe cidade igual. Esse traçado da capital não existe em outro lugar do mundo. Para mim, é a cidade mais bonita, principalmente a vista aérea, que a gente vê nos filmes e na televisão, com tanta árvore e tanto verde. Embora tenha nascido em Minas, minha vida se formou aqui, em Brasília”.

Noêmia compartilha da mesma opinião da amiga. “Conheço muitas cidades, mas Brasília é muito moderna e organizada, e gosto muito daqui principalmente pela arborização do Plano Piloto. Tenho um carinho muito grande pela cidade porque foi onde cresci profissionalmente”, finaliza.