Crônica: A vizinhança da macacada

 Severino Francisco

kleber sales

Vou falar de vizinhos peculiares: os macacos-pregos. Não os escolhi. A convivência com animais silvestres é uma das singularidades de Brasília. Moro em um condomínio horizontal, fronteiriço a uma mata cerrada. A chegada dos macacos é mágica. De repente, você ouve um barulho de mato se mexendo. Só que é um alvoroço aéreo, em cima das árvores, de galho em galho, a 10 ou 15 metros de altura.

Eles formam uma turma simpática, mas bagunceira. Fazem acrobacias de deixar o Cirque du Soleil no chinelo. Nunca vi nenhum macaco despencar do alto por um movimento em falso. E não revelam extrema destreza apenas no espaço aéreo.

Certa vez, fiquei apreensivo, pois um macaco teve a ideia temerária de transitar sobre uma cerca de arame farpado. Evitei gritar, permaneci estático, imóvel como a estátua do silêncio, com medo de assustá-lo e provocar um acidente. No entanto, com incrível habilidade, ele atravessou toda a extensão do fio farpado, incólume, tranquilamente, sem sequer dar uma olhadinha no lugar em que pisava.

Quando os vejo em acrobacias, tenho vontade de dizer o mesmo que Rubem Braga falou a um sujeito que fazia malabarismos em uma corda suspensa em cima dos prédios, a mais de 20 metros de altura: “Eu quero ver é aqui embaixo”.

Em uma madrugada brasiliana, acordei assustado com o barulho do que me parecia um pagode ou uma pelada em cima do telhado. A zoada se dirigia para um lado e, em seguida, guinava, abruptamente, para outro. Levantei voado da cama, em dúvida se estava sonhando, na tentativa de desvendar o enigma. De repente, avistei a silhueta de um macaco no alto de uma faixa de vidro e dei uma bronca.

Não foi suficiente para afugentá-los. Abri a porta da sala e joguei uma pedra nas árvores próximas, só para dispersar. No entanto, em razão talvez da falta de aquecimento e da rotina de exercícios físicos, torci o braço e tive de fazer fisioterapia durante mais de um mês. E o pior é que o fisioterapeuta estava mais preocupado com a saúde dos macacos do que com a minha: “E os macaquinhos? Cuida bem dos macaquinhos, hein?”, recomendava sempre.

Nas férias, resolvi botar moral na macacada. Armei uma rede, peguei um livro para ler e fiquei de plantão. Quando se aproximavam, eu os espantava. A situação estava sob controle e ia bem. No entanto, numa tarde, ouvi um barulho, prestei atenção e levei um tremendo susto. Vi o que me parecia ser um macaco de duas cabeças.

Todavia, observando melhor, constatei que era apenas uma mãe com o filhote nas costas. Ela me mirou com os olhos pungentes, faiscantes e interrogativos, como se perguntasse: “Não vai me deixar alimentar meu filhote?”

Aquela cena minou-lhe a convicção saneadora. Liberei a mangueira e, desde esse dia, perdi a moral com a macacada. No período das chuvas, eles quebraram oito telhas e desarrumaram 22. As goteiras se espalharam pela casa, pingava para todos os lados. Os meus dois netos, Aurora, 8, e Judá, 4, abriram guarda-chuvas para transitar pela sala e levar baldes para recolher a água que gotejava.

Pedi ao senhor Hermínio para subir no telhado e arrumar. Fui eu quem invadiu o território deles. Mais recentemente, tive de suprimir algumas árvores para construir um muro de divisa com vizinhos e a macacada arrefeceu a bagunça no telhado. Esses macacos aprontaram tantas que viraram personagens de caderno especial.Salvaram-me muitas vezes. Valeu, macacada!

Amizade além do tempo: companheirismo e respeito que atravessa décadas

Edis Henrique Peres

Amizade além do tempo
Kátia Kouzak (D) e Vera Hildebrand: momentos de alegria e de tristeza. | Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Uma amizade que viu Brasília nascer e que esteve presente nos momentos mais alegres e nos mais solitários e desesperançosos uma da outra. Assim se define o vínculo de quase 62 anos entre Vera Hildebrand Pires da Cunha, 75 anos, e Kátia Abudakir Kouzak, 76. As duas se conheceram na adolescência, quando chegaram à capital do país, inaugurada no mesmo ano. Desde então, o laço segue firme e inquebrantável entre as duas amigas, que são “praticamente irmãs”. Religiosamente, aos domingos, Vera deixa sua casa na Asa Norte, passa na padaria, e vai para o Lago Sul, visitar Kátia.

“Chamamos de café da manhã da Vera”, conta Kátia, aos risos, sobre o banquete que a amiga traz da panificadora. Na mesa de varanda, elas montam a refeição e batem papo. O hábito de compartilhar lanches entre as duas é antigo, e vem ainda da juventude, na época em que estudavam juntas na Comissão de Administração do Sistema Educacional de Brasília (Caseb). “A gente comia a mesma coisa no intervalo: um sonho e um Grapette (refrigerante de uva)”, lembra Kátia. “Esse era o nosso lanche das 10h”, acrescenta.

Vera foi a primeira das duas a chegar em Brasília. “Dia 13 de abril de 1960, tinha 13 anos, era uma quarta-feira, quando vim para cá. Fiquei encantada, porque Brasília estava lotada de barraquinhas de acampamento”, conta. Já Kátia chegou dois meses depois, em 12 de julho do mesmo ano. “Na época morávamos na SQS 107, uma no Bloco A e outra no Bloco D. E íamos juntas para o colégio. A amizade começou porque estudávamos na mesma sala”, diz Vera.

Para as duas amigas, as lembranças ainda são vívidas e enquanto relatam as memórias, elas sorriem com o revisitar dos dias de infância. “Aproveitamos muito a nossa juventude”, salienta Vera, que recorda do tratamento que realizou no hospital Sarah Kubitschek. “Como nasci com paralisia cerebral, eu fiz acompanhamento por muitos anos no hospital, comecei por volta dos 14 e segui até uns 20 anos, ia cerca de três vezes por semana”, conta.

Kátia revela que acompanhava a amiga nessas consultas até que foi proibida. “Brincava tanto (no hospital), assanhava os velhinhos, jogava peteca e fazia de tudo. Até que fui proibida de ir”, conta, entre risos. “A Vera chegou para mim nesse dia toda triste, dizendo: oh, Kátia, a direção não quer que você vá mais não”, diz.

O que mantém o laço até os dias de hoje, é a “amizade pura”. “Geralmente as pessoas têm algum interesse, quer alguma coisa. Mas a nossa amizade dura tanto tempo, porque ela é constante. E na hora que a gente precisar, sabemos que podemos contar uma com a outra”, ressalta Vera. Kátia acrescenta que as duas buscam simplesmente a companhia uma da outra, pois é isso que as fazem bem.

Amor e admiração

Ao longo das seis décadas de companheirismo entre Kátia e Vera, as duas passaram por momentos marcantes. Mesmo em cursos de graduação diferentes, Kátia estudando ciências contábeis, e Vera, psicologia, o vínculo se manteve. Kátia garante que a união entre as duas vem de um pacto de muito amor e admiração. “Não temos o mesmo sangue, mas somos que nem irmãs. E olha que somos bem diferentes na personalidade”, diz.

No espírito de companheirismo, quando Kátia estava no hospital para ganhar o primeiro filho, Vera foi chamada, de madrugada, para acompanhar a amiga. “Eu era muito jovem, tinha 25 anos, era o meu primeiro filho, me sentia despreparada. Estava assustada e a Vera era a pessoa que eu queria do meu lado para me acolher, porque eu estava perdida”, detalha. Vera não só acompanhou o parto de Kátia como é madrinha do filho dela, Solon Kouzak.

Mas além dos momentos de alegria, as duas são um suporte nos desafios e dificuldades. Kátia lembra que quando o marido ficou muito doente, Vera ia ao hospital visitá-la. “Meu esposo ficou um ano e quatro meses muito debilitado. Nesses grandes momentos, nas coisas que mudaram a nossa vida, ela (Vera) estava do meu lado. Quando meu marido estava doente e depois quando ele partiu eu enfrentei todo tipo de problema, com sócio e doença — fiquei cardíaca —, e foi a Vera que me apoiou”, se emociona Kátia.

Vera também enfrentou a perda do esposo e conseguiu superar o luto graças a ajuda da amiga. “Meu marido teve câncer de pulmão, ficou três meses muito ruim e depois partiu. Agora faz quatro anos, o tempo passa muito rápido. Quando ele foi embora, foi a Kátia que me lembrava que a vida não acabou, que ele não ia querer que a minha vida parasse. Em razão disso, a gente ficou mais unida. Foram esses momentos, os essenciais e que fizeram toda a diferença”, avalia Vera.

“Eu vi Brasília nascer”

Para Kátia, foi “puro destino” que viesse para a capital e encontrasse aqui uma amizade de uma vida. “Meu tio era militar da Aeronáutica e eu queria estudar na capital federal. Sou paulista e primeiro fui morar no Rio de Janeiro, que era a capital do país, com os meus tios. Depois, meu tio foi transferido para Brasília e eu vim com eles, como meus tutores”, afirma.

Já Vera veio do Rio de Janeiro, porque o pai era da Fundação Educacional e foi o responsável por trazer os professores do país e criar o modelo de ensino da capital. “Quando eu cheguei, Brasília estava cheia de barraquinhas e todo mundo tinha no carro um adesivo escrito ‘Eu vi Brasília nascer’. Nas noites de sábado, a gente descia para baixo dos prédios com violão e vitrolas e ficava cantando e dançando. Lembro até hoje, da festa da inauguração (da cidade), que me marcou muito, em que fizeram uma dança ao lado das conchas (do Senado e da Câmara) e soltaram tecidos que chegavam quase até embaixo. Eu me lembro muito disso”, afirma. Vera arremata: “Na próxima encarnação, já pedi para nascer aqui, em Brasília”.

Legado roqueiro da Plebe Rude é fruto de amizade de quase 5 décadas

Renata Nagashima

Arquivo pessoal
André X e Philippe Seabra: 40 anos de rock e muita estrada | Foto: Arquivo pessoal

Banda icônica do rock de Brasília, a Plebe Rude completou 41 anos de existência e a história do grupo caminha com a relação dos amigos André Philippe de Seabra, 55 anos, e André X Mueller, 60. Os dois se conheceram há quase cinco décadas, quando o mais novo ainda era uma criança, mas eles não imaginavam o legado que criariam juntos.

Formada em 14 de julho de 1981, a Plebe Rude, viria a se transformar numa das principais bandas de punk rock do Brasil. O grupo, originalmente, tinha como integrantes Philippe Seabra (guitarra e vocal), André X (baixo), Ameba (guitarra) e Gutje (bateria). Tempos depois, os dois últimos foram substituídos por Clemente e Marcelo Capucci. A Plebe chegou a lançar sete discos de estúdio e dois gravados ao vivo.

André veio de Curitiba para a capital em 1970, com os pais que eram professores da Universidade de Brasília (UnB). Por um tempo, o baixista morou na Colina, onde conheceu a maioria da galera da “Tchurma”, composta por jovens que mais tardar viriam fundar outras bandas como Aborto Elétrico, que posteriormente deu origem Capital Inicial e Legião Urbana, Blitx 64, Metralhas e outras.

Quando se mudou dos Estados Unidos para o Distrito Federal, em 1976, Philippe Seabra tinha apenas 9 anos e sequer falava português. Filho de um diplomata português com uma paraense, a família decidiu vir para o Brasil para que a mãe de Seabra ficasse perto da família, já que o avô dela era deputado em Brasília. Segundo ele, só começou a se sentir brasiliense quando conheceu a famosa Tchurma.

Os dois amigos se encontraram por meio de Alex, irmão mais velho de Philippe. “Ele era amigo do meu irmão e eu era mais aquele pirralhinho que ninguém dava bola”, brinca Seabra. No Lago Norte, as duas famílias moravam na mesma quadra e os mais velhos iam para a escola juntos, mas André e Philippe não se aproximaram de cara por conta da diferença de idade.

Depois de alguns anos, em 1978, André X se mudou com a família para a Inglaterra, onde a mãe faria um doutorado. “Foi bem na época da explosão do punk, então eu ficava gravando as bandas novas na rádio e mandando para o Alex, só que ele meio que ignorou. Mas o Philippe não, ele pegou e começou a tirar essas músicas na guitarra”, recorda o baixista.

Quando voltou para Brasília, André estava determinado a montar uma banda e começou a busca pelos integrantes. “Um dia eu estava na casa do Alex e ouço alguém tocar o Stiff Little Fingers, que é uma das bandas que a gente adorava. A pessoa estava tocando direitinho. Daí Alex me disse que era o irmão dele. Convidei o Philippe e desde então estamos aí, há mais de 40 anos andando juntos na Plebe.”

Crônica: Maravilha de Brasília

Dad Squarisi

Brasília

Na década de 1970, recebi um casal de amigos equatorianos. Fizemos um tour pela cidade. Foi um fim de semana de visitas, idas e vindas. Quando foram embora, perguntei-lhes o que tinham achado da nova capital. A resposta:

— Deu a impressão de uma cidade construída por extraterrestres, que a plantaram aqui e voltaram pra casa.

Queixaram-se da falta de gente nas ruas, falta de movimento, falta de alma. Se o casal voltasse hoje a Brasília e passasse um fim de semana aqui, veria que a capital dos brasileiros mudou. O brasiliense descobriu o lazer ao ar livre. A urbe ganhou vida.

Como não é uma ilha sem pai nem mãe, reflete os problemas das grandes cidades nacionais. Tem violência, desemprego, corrupção, segregação social, congestionamento de trânsito, filas em hospitais, transporte público deficitário.

Ela também projeta qualidades que enchem os brasileiros de orgulho. O brasiliense não buzina, respeita a faixa de pedestres, cumprimenta o desconhecido na rua, no elevador, no ônibus ou no metrô. Lê muito, frequenta bibliotecas, zela pelo meio ambiente para manter o ar respirável, as águas limpas e as áreas verdes intocadas.

Multidões vão às ruas. Manifestantes vestem o Eixo Monumental de verde-amarelo no belo exercício da cidadania. Acampam nos gramados do Congresso Nacional ou na Praça dos Três Poderes pra pressionar as autoridades e reivindicar direitos.

Nos feriados e fins de semana, a cidade se transforma. Brasília deixa de ser o corpo com cabeça, tronco e rodas. Ganha pernas. A população lota parques e ruas. Corredores invadem o asfalto.

Ciclistas pedalam em vias exclusivas ou misturados com pedestres que vão e vêm.

O Eixão dos carros vira Eixão do lazer. Gente pequena e gente grande enchem o domingo de cores, vozes e odores. Crianças correm, gritam, jogam bola, puxam carrinhos e passeiam cachorros. Skatistas se equilibram em voos que desafiam a gravidade.

Cadeirantes circulam, vendedores negociam, artistas se exibem, olhares se encontram. A capital dos brasileiros traz pras ruas seu patrimônio mais precioso — as pessoas. O casal equatoriano tem de voltar pra Brasília.

 

José Carlos Coutinho: “O brasiliense inventou as próprias esquinas”

Severino Francisco

José Carlos Vieira

ED ALVES/CB/D.A Press
Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

O professor aposentado de arquitetura da Universidade de Brasília (UnB) José Carlos Coutinho chegou a Brasília em 1968, com 33 anos, a idade de Cristo. Podia ser uma crucificação vir morar num lugar ermo, mas foi uma ressurreição. Veio de Porto Alegre para dar um curso de seis meses e nunca mais voltou, tornou-se um brasiliense de corpo e de alma. Ele é uma das figuras mais elegantes, distintas e admiradas da cidade. Frequenta os principais eventos culturais de Brasília e o amigo Vladimir Carvalho espalhou a versão de que ele já foi visto em três lugares ao mesmo tempo. Nesta entrevista, ele fala sobre a singularidade das relações de vizinhança, os lugares encantadores e as ameaças ao futuro de Brasília.

Antigamente, as pessoas não ficavam em Brasília nas férias e, quando podiam, nem nos fins de semana. Como cidade rompeu os estereótipos e passou a criar uma identidade?

Existem os hóspedes da cidade, mas a cidade cresceu muito e tem um contingente que permanece e abraçou a cidade. Quer sossego, recolhimento. E Brasília tem muitos lugares amáveis e acolhedores. Eu, por exemplo, não sinto falta nenhuma de sair da cidade.

Que lugares considera encantadores em Brasília?

Gosto muito do Pontão, dos parquinhos de entrequadras. Neste momento, estou na Praça das Carpas na 308 Sul, não existe isso em lugar nenhum. O que me encanta é a juventude, as crianças brincando, as mulheres passeando com seus cachorros. Acho encantador. O contraste entre as vidas que estão acabando e as que estão se iniciando. Hoje, há muitos programas atraentes na cidade. Ontem, fui à Escola de Música assistir a uma Missa de Bach, executada por um coral e orquestra. São aqueles momentos em que Brasília parece uma cidade e uma cidade civilizada. Tem bons cinemas, boa música, bons filmes. O Parque da Cidade é muito bonito.

Que lugar recomendaria para uma visita?

Recomendo ir até a Pedra Fundamental de Brasília, próximo a Planaltina. A maioria das pessoas nunca foi lá. Tem um horizonte de 360 graus, ali, você se sente senhor do mundo. O Lago não é só interessante no Pontal. Digo às pessoas que elas não se dão conta de que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza. Parece mentira que quase ninguém conhece o criador do Lago Paranoá. Foi uma pessoa que veio do Rio de Janeiro na Missão Cruls, chamado Auguste Glaziou. Não tem nenhuma uma homenagem no espaço urbano que lembra a sua existência. Está na hora celebrar Joaquim Cardozo (Joaquim Maria Moreira Cardozo foi um engenheiro estrutural que ajudou Oscar Niemeyer, além de ser poeta, contista, dramaturgo, professor universitário) ou Glaziou. Não precisa ser nada muito grandioso, bastava fazer um monumento. Gosto da Ponte do Arcos, que tem uma prainha deliciosa, bem popular, com acesso de ônibus para as pessoas simples fazerem piqueniques ou nadar. Se há algo popular, é lá. Sou um observador social, mais do que ver, gosto de observar e imaginar o que se passa com aquelas pessoas.

Como vê essa história de que Brasília não tem esquinas e as pessoas não se encontram?

Isso virou piada, não se pode reduzir as singularidades de Brasília. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar. Tenho um grupo de amigos que, todas as sextas, marca um ponto para se encontrar. Tem a Banca da Conceição, eu brincava com ela: “Você criou uma nova esquina de Brasília”. O habitante da cidade é muito criativo. A nossa obrigação é orientar para que seja para uma solução respeitosa do projeto urbanístico da cidade.

Brasília foi pensada para as pessoas usufruírem os espaços públicos, onde os vizinhos pudessem ter uma interação entre eles e as áreas ao redor. Essa ideia de Brasília persiste ainda hoje?

Criar um espaço urbano para permitir interações entre os que mora na mesma área não é invenção do Lucio Costa; é uma ideia tirada da sociologia urbana e do urbanismo americanos. A proposta era reproduzir em área pequena as relações de um lugar interiorano. Cada unidade deveria abranger em torno de 2 mil habitantes, com comércio, locais para lazer e escola. Mais do que local de ensino, ela é concebida como local de convívio. Muitos pais se conheciam em função das crianças. Isso funcionou durante algum tempo. Acontece que a população envelhece, as crianças se tornaram adultas e moram em outros lugares. Há um processo de transformação. Hoje, é preciso romper a barreira das relações virtuais. Algumas vezes, as praças estão vazias porque as pessoas estão na frente dos notebooks ou dos celulares, conversando com alguém da Finlândia. Isso é perigoso. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos constatou o declínio no QI da humanidade, um emburrecimento da humanidade por se fechar nos mundos virtuais.

Os clubes de unidade e de vizinhança têm um papel importante nessa mistura de gente vinda de várias regiões do país. Essa célula urbana deu frutos?

Apesar de tudo, as unidades de vizinhança completas das quadras 108, 308, 107, 307 formam esse quarteto importante, pois têm o jardim da infância, a escola primária e escola secundária, com a proposta de ensino em tempo integral, concebido por Anísio Teixeira. Tem igreja, cinema, restaurantes, comércio e clube. O clube, que antes atendia a população moradora, se tornou um equipamento como os outros, que acolhe pessoas de todos os lugares. Mesmo assim, é um equipamento agregador. É útil, trabalhei no Instituto do Patrimônio Histórico e promovi o tombamento das unidades de vizinhança mais completas. O Oscar começou a jogar basquete em um desses clubes. São equipamentos essenciais, mesmo que sofram um processo de transformação inevitável.

O que se perdeu e o que se evoluiu das ideias de Lucio Costa para a capital?

Eu acho que mais do que a Esplanada e a Praça dos Três poderes, a Unidade de Vizinhança é o ponto alto do Plano Piloto de Lucio Costa. Só lamento que seja privilégio de 10% da população de Brasília. Por que não ser extensiva das cidades satélites? Houve um empobrecimento da administração de Brasília que depauperou as propostas iniciais. Chegou haver um deputado que pediu a transformação das superquadras em condomínios fechados. É um absurdo, a ideia da superquadra é a de espaço público transitável em todas as direções. O piloti é um espaço público. Você atravessa o prédio, são graus de liberdade total do solo.

“Digo às pessoas que elas não se dão conta que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza”

 Vemos nos anos anteriores à pandemia a volta das pessoas às áreas públicas da cidade, carnavais de rua, piqueniques e eventos de toda natureza… É esse o DNA de Brasília?

Acredito que sim, a tendência das pessoas é ocuparem os espaços públicos. Gosto muito do Setor Comercial Sul, é bonito ver a travessia da população trabalhadora. Os espaços dos shopping centers são expressão do enclausuramento da vida pública. Morei algum tempo na Inglaterra e visitei um shopping-center que era agradabilíssimo no início. Era unidade fechada, climatizada, com jardim e canto dos pássaros. Mas, depois, percebi que o jardim era artificial, as árvores eram de plástico e os cantos eram gravados. Quer dizer, estávamos no admirável mundo novo. Não tem nada a ver com o plano de Brasília, que contempla uma escala bucólica maravilhosa.

O antropólogo James Holston, autor de Brasília: Cidade modernista, disse que a cidade era triste. Como percebe as ideias dele?

Olha, conheci o James Holston. Ele chegou a Brasília com ideias prévias e não encontrou a Brasília que imaginava. Em vez de rever suas ideias, passou a negar Brasília. Lamentava, por exemplo, o tipo de vegetação das superquadras, pois ficou muita alta e ocupava o espaço dos edifícios. Mas eu acho que isso é uma sorte: tem edifícios que precisam de árvores bem altas para formar uma cortina verde que os proteja do sol e do barulho.

Como vê o futuro de Brasília? Não existe uma séria ameaça de que a escala bucólica da cidade e a qualidade de vida sejam comprometidas pela concepção rodoviária dos governantes?

Concordo inteiramente, haja vista a macarronada que fizeram no Sudoeste, invadindo o Parque da Cidade. É uma mentalidade rodoviarista. Está na hora de pensar a cidade com uma outra lógica de transportes. Já estão falando em duas novas pontes e em uma avenida interbairros no Lago Sul. Não são apenas soluções técnicas, são soluções financeiras. São obras de que os empreiteiros gostam muito. Os beneficiados não serão os motoristas, mas, sim, os empreiteiros e as imobiliárias. Sou pela simplificação do trânsito e pela primazia ao transporte coletivo. Não tem maior absurdo, a lógica seria os carros diminuírem de tamanho para ocuparem menos espaços. Mas o que a gente observa são veículos cada vez mais gigantescos, cada vez mais parecidos com ônibus individuais. Falta bom senso e políticas públicas. Esse é o verdadeiro sentido da política: estimular as boas tendências.

“Essa história de que Brasília não tem esquinas virou piada. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar”

 

Na quadra modelo, uma amizade que atravessa décadas

Felicidade compartilhada
Vizinhas de Superquadra, Rosa Regina Faleiros (direita) e Noêmia Vasconcelos | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Na quadra mais antiga de Brasília, desenhada por Oscar Niemeyer e inaugurada em 1960, se forjou uma amizade que dura mais de 20 anos e percorreu continentes. Entre viagens, almoços e cafezinhos, Rosa Regina Faleiros, 70 anos, e a amiga Noêmia Vasconcelos Victor, 79, compartilham risadas, desabafos e espantam a solidão. O laço entre as duas nasceu na superquadra 108 Sul, quando Noêmia se mudou para o mesmo bloco de Rosa Regina, em 2000.

“Fui morar na 108 e a Regina era síndica, então tínhamos contato contínuo. Aos poucos, começamos a sair juntas para lanchar e a amizade foi surgindo muito naturalmente. Depois, precisei mudar do Bloco I para o F, mas a amizade permaneceu. Nós duas saímos para comemorar aniversários, falar sobre a família, dizer como estão os netos”, detalha Noêmia.

A aposentada revela que as amigas chegaram a visitar o exterior. “Um dos nossos melhores programas foi uma viagem que fizemos para Portugal e Espanha. Começamos (o tour) em Lisboa, e fomos em direção à Espanha, parando em diversos pontos. Minha filha foi junto porque ela dirige no exterior. Foi uma viagem maravilhosa, a gente curtiu muito. E tinha outras pessoas da quadra 108 na viagem que também são amigas nossas”, relembra.

Segundo ela, o vínculo também é um auxílio nas horas de necessidade. “Regina é muito comunicativa e prestativa. Ela gosta de dirigir para qualquer lugar, já eu não gosto de pegar o carro. Então ela me ajuda quando preciso. Uma amizade boa assim é muito saudável, porque os nossos filhos já se casaram e tendo esse vínculo a gente sai do isolamento e se diverte. Contar com outras pessoas para passear e não ficar só é muito importante”, avalia.

Passeio de amigas

Rosa Regina assegura que o laço entre as duas se fortaleceu “pelo que havia em comum” entre as aposentadas. “Ela era viúva e eu era divorciada. Como ficávamos muito só, começamos a sair para tomar um cafezinho, um chopp e para pegar um cinema. Fizemos uma amizade entre três amigas, mas a terceira do grupo voltou para o Rio de Janeiro e agora quem mantêm esse vínculo somos eu e ela. A questão é que a pandemia atrapalhou muito os nossos passeios. Antes, às sexta-feiras ou aos sábados, a gente almoçava fora, porque gostamos muito de feijoada”, salienta.

Depois do prato típico, as duas amigas paravam no Praliné Confeitaria Suíça, tomavam sorvete e visitavam o Casa Park. “Isso já era por volta de 16h, a gente dava uma olhadinha nas lojas, e depois ia para o cinema. E mesmo após a sessão, ainda tínhamos pique para ir comer uma pizza e tomar um chopinho. Eram dias muito agradáveis que dava para colocar toda a conversa em dia. Agora, estamos voltando a nos encontrar aos poucos. Almoçando no comércio local, comendo um lanche, saindo de vez em quando. Nada igual a programação que fazíamos antes, devido ao risco do vírus”, pondera.

As viagens ao exterior não foram as únicas feitas por Noêmia e Rosa Regina: as amigas também visitaram Aracaju, Rio de Janeiro e São Paulo. “A gente mora sozinha e os filhos se casaram, então, querendo ou não, surge um pouquinho de solidão. Essa convivência supre esse espaço. A nossa amizade serve como desabafo, contamos dos problemas, do que está acontecendo na nossa vida, das nossas mágoas. Colocamos para fora os nossos problemas com alguém que a gente confia”, salienta.

Amor pelo DF

Além das outras semelhanças, Noêmia e Rosa Regina compartilham uma mesma paixão: o amor pela capital do país. Rosa Regina chegou à capital em 1962, quando tinha 10 anos. “Meu pai era servidor público do Ministério de Minas e Energia e morávamos em São João Del-Rei, em Minas Gerais. Na época, o que chamava os servidores para a capital era o apartamento funcional, que os moradores recebiam ao vim para cá. Quando chegamos, recebemos o apartamento na 108 e eu passei minha infância na quadra, estudava na Escola Classe, visitava o Clube Vizinhança para lazer e frequentava a Igrejinha. Para a gente era uma benção viver nessa quadra, porque tudo era próximo e nessa época ninguém tinha carro”, lembra.

Os anos se passaram e, com o casamento, Rosa Regina deixou o lugar em que formou a maior parte das memórias da infância. “Sempre quis voltar para 108, por isso, quando tive oportunidade, em 1995, eu financiei um apartamento no Bloco I. Aqui (na quadra 108) fui síndica durante 12 anos, deixei o cargo há quatro anos”, informa. Rosa Regina acrescenta: “Falo com muito orgulho que sou moradora de Brasília, porque não existe cidade igual. Esse traçado da capital não existe em outro lugar do mundo. Para mim, é a cidade mais bonita, principalmente a vista aérea, que a gente vê nos filmes e na televisão, com tanta árvore e tanto verde. Embora tenha nascido em Minas, minha vida se formou aqui, em Brasília”.

Noêmia compartilha da mesma opinião da amiga. “Conheço muitas cidades, mas Brasília é muito moderna e organizada, e gosto muito daqui principalmente pela arborização do Plano Piloto. Tenho um carinho muito grande pela cidade porque foi onde cresci profissionalmente”, finaliza.

Escoteiros de Brasília se conectam com a comunidade

Edis Henrique Peres

Arquivo Pessoal
O grupo de escoteiros Lis do Lago tem uma grande atuação social na região | Foto: Arquivo pessoal

O grupo se organiza, entre a vegetação, para montar o acampamento. Os mais velhos orientam os “lobinhos” sobre como dividir as tarefas, a maneira correta de acender a fogueira e estruturar as barracas. Os escoteiros, além de aprenderem sobre como lidar com situações de perigo e sobrevivência, também são instruídos com ensinamentos e valores como lealdade e ajuda ao próximo. O Grupo Escoteiro Lis do Lago nasceu em Brasília há 38 anos e desde então tem uma história de atuação com os moradores do Lago Norte e de diversas regiões administrativas da capital. Rafael Werneburg começou a prática do escotismo aos 10 anos de idade, e hoje, aos 26 anos, o morador do Lago Norte atua como voluntário, auxiliando a nova geração de escoteiros da capital federal.

“Minha mãe tinha uma amiga que trabalhava no grupo de escoteiros e ela queria apresentar o movimento para mim, nessa época, ainda nem morávamos no Lago Norte”, conta. Rafael afirma que fez muitos amigos ao longo do período que esteve no grupo de escoteiros. “Muitos que tenho afinidade até hoje. São vínculos que vão se construindo e ficando para a vida, porque ficamos muito tempo em atividades e acampamentos e isso fortalece a relação, principalmente porque no escotismo aprendemos a valorizar muito as amizades que construímos”, destaca.

Em retrospectiva, o químico confessa: “ser parte do grupo de escoteiro moldou todos os aspectos da minha vida, seja com relação ao trabalho, interpessoal, seja as escolhas profissionais. No movimento escoteiro se busca desenvolver aquilo que mais interessa à criança e ao jovem e eu tinha muito interesse em ciência exatas. Foi no grupo que aprendi a aplicar o conceito de liderança, por exemplo, porque precisamos estar à frente de outras pessoas, das patrulhas e matilhas. Foi o grupo que trouxe ferramentas para que eu expressasse essa liderança de forma saudável”, opina.

Ao longo de anos no grupo de escoteiros, Rafael fez uma amizade que ultrapassa somente os acampamentos. Lívia Maia, 26 anos, administradora e moradora do Lago Norte entrou no Lis do Lago aos seis anos e meio, em 2006. “Fiquei no movimento a minha vida toda e me afastei quando tinha 22 anos, mas meu irmão continua no escotismo. Conheci o Rafael logo quando ele entrou. Penso que a amizade de escoteiro é uma amizade diferente, porque passamos por muitas situações complicadas juntas. Vamos a acampamentos em que a barraca rasga, fazemos viagens que duram semanas e é natural que nesse tempo aconteça algum perrengue. É uma amizade em que a pessoa fica muito próxima de ser alguém da família”, avalia.

Lívia confessa: “a amizade minha e do Rafa foi se construindo ao longo da vida inteira e ainda estudávamos na mesma escola, então isso estreitou ainda mais a nossa relação. Já acampamos, inclusive, em outros países, chegando a ficar meses viajando. O mais longe que já fui foi na Islândia. E acho que um dos episódios que marcaram muito foi quando estávamos acampando e de madrugada passou um cupinzeiro atravessando o acampamento e eles saíram rasgando as barracas. E o Rafael, que sempre foi responsável, começou a liderar e a ajudar os outros, levantando as barracas para que a gente não ficasse sem e orientando os mais novos, que ainda não sabiam o que fazer. Sempre tem esse espírito, dos mais experientes ensinar os outros o que eles devem fazer”, explica.

Desenvolvimento

Chefe de tropa, Deomar Rosado, 66 anos, começou no grupo como voluntário, para conseguir uma vaga para o filho, e desde então, se dedica ao Lis do Lago. “O escotismo trabalha as áreas de desenvolvimento social, afetivo e espiritual, com a realização de educação lúdica em espaços abertos. Estou no grupo há 30 anos e a gente realmente se engaja, as famílias participam, se cria um vínculo de amizade entre todos que é muito forte”, revela.

Deomar detalha que o objetivo é que as crianças e jovens aprendam na prática os conteúdos. “Eles se organizam e entendem o conceito de equipe. Também é trabalhado a questão da sustentabilidade, de cuidar dos animais e das plantas, da biodiversidade. E sempre buscamos os adultos voluntários. Além disso, em cada faixa etária existe um ponto a se desenvolver, nos mais novos, há a fantasia; nos adolescentes, focamos no vínculo e amizade; nos jovens de 15 a 17 anos, tem a questão do empoderamentos e dos desafios; e a partir dos 18 anos, eles começam a querer ser pioneiros, porque estão entrando na faculdade, estão no serviço, então existe muito trabalho focado na autonomia”, afirma.

Antes da pandemia, o grupo tinha cerca de 140 escoteiros, mas atualmente, as atividades estão voltando aos poucos, segundo Deomar. “Temos cerca de 90 escoteiros na ativa, e 25 voluntários adultos. Nosso objetivo é retomar as atividades, principalmente essa carência por adultos voluntários, porque quanto mais temos, maior o número de crianças que podemos monitorar no acampamento”, explica.

Tradição

Na família de Lívia, participar do grupo Lis do Lago é praticamente uma tradição. “As minhas irmãs que têm mais de 30 anos, foram escoteiras, e meu irmão, que hoje tem a metade da minha idade, está com treze anos, é escoteiro. Então o Lago Norte é realmente ligado pelo Lis do Lago, e toda uma geração familiar também se une devido ao escotismo. Minha mãe até hoje está muito envolvida nas atividades do grupo”, admite.

Para Rafael, além da vivência no grupo de escoteiros, um cartão-postal de Brasília também marcou a sua infância. “Até fiquei recentemente morando em São Paulo, mas voltei para Brasília. Aqui tem um diferencial, gosto muito da organização da cidade, da forma como ela foi construída e tenho uma memória afetiva muito forte com a cidade, principalmente com a Torre de TV. Antigamente, a feirinha ficava bem embaixo da Torre e sempre íamos lá no fim de semana. Isso sempre foi algo que ficou marcado, acho que tanto pelo visual da Torre em si, mas também por ser um lugar que a gente (pelo mirante) consegue ver a cidade inteira)”, pondera.

Festa junina da 213 Sul: tradição desde a década de 1990

Edis Henrique Peres

Carlos Vieira/CB/D.A.Press
João Matos e Eliane Abreu com o álbum de imagens das festas juninas no Bloco A da 213 Sul | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Os meninos pintam no rosto um bigode que simula a barba que ainda vai crescer, enquanto as moças, de chiquinha, bochechas coradas com maquiagem e pintinhas marcadas de lápis de olho rodopiam com os vestidos coloridos e rodados. De chapéu de palha, a quadrilha entra ao som das músicas típicas e ao grito de “olha a cobra”, todos pulam. É festa junina! Para os moradores da SQS 213, do Bloco A, o festejo é uma tradição com quase 30 anos de história. “Os três primeiros anos, praticamente, era apenas uma festa para os nossos filhos, depois foi crescendo, e o bloco G começou a nos ajudar. No fim, fizemos 29 edições. Paramos por causa da pandemia”, conta João Matos, 80 anos, servidor público aposentado.

João relembra que foi a filha, Patrícia, que deu o primeiro impulso para o surgimento da tradição do arraial. “Aqui no prédio temos muitos nordestinos e gaúchos. Eu sou do Ceará, por exemplo, e todo mundo é muito animado para festejar. Minha filha também era festeira e, brincando com as crianças, inventaram de fazer uma quadrilha, e nós, os pais, acabamos incentivando a animação deles”, detalha.

Outra moradora que atuou nos quase 30 anos de festa, Eliane Abreu, 73, servidora pública aposentada do GDF (Governo do Distrito Federal), lembra que as crianças se dedicavam na produção de bandeirolas feitas com jornal e revista. “Fizemos algo simples nos dois primeiros anos, somente para os moradores do nosso bloco. As crianças dançavam a quadrilha e os pais desciam, cada um com um prato: trazíamos bolo, pipoca e balas doces”, revela.

Rapidamente, o espírito de São João cresceu e tomou proporções maiores. “Uma das moradoras, muito animada aqui do bloco, começou a descer com violão para tocar com as crianças e então começamos uma quadrilha também com os adultos. Aos poucos foi se formando as barraquinhas, de canjica, galinhada, feijão tropeiro, tudo feito pelos próprios moradores. Quando percebemos, a festa tinha tomado outro ar e precisávamos até pedir autorização para o GDF para realizá-la. Não era mais só uma festinha de criança, como começou”, afirma João.

Eliane diz que o foco era reunir as famílias da quadra. “Lógico que quem passasse e quisesse participar era bem vindo. E isso foi se tornando cada vez mais comum, a nossa festa unia a quadra toda, e quem vinha uma vez, cobrava a festa no ano seguinte e a comemoração começou a ficar famosa. Só não fizemos nos últimos anos por causa da pandemia”, ressalta.

Arquivo Pessoal
Grupo de moradores reunidos para cortar os ingredientes para o cachorro-quente da festa | Foto: Arquivo pessoal

Compromisso

Responsável por fazer o cachorro-quente para a festa, Eliane relembra o que considera os melhores momentos do grupo: “a noite de véspera”. “A festa tem uma comissão organizadora, que tem entre 15 e 20 pessoas. No início, precisávamos fazer várias reuniões para organizar tudo, e como não tínhamos salão no nosso bloco, as reuniões eram feitas a cada dia, na casa de uma pessoa. E isso era por si só muito animado. Ao fim, a pessoa servia um jantar, e era uma diversão só”, conta.

A realização do evento, contudo, demandava um grande esforço dos organizadores, com dias dedicados ao preparo dos alimentos, compras e licenças necessárias. Eliane e João, apesar disso, recordam com alegria das noites que o grupo passava, praticamente em claro, para conseguir preparar as comidas típicas. “A gente precisava na noite anterior se reunir na casa de alguém para cortar a charque, a cebolinha, preparar a carne para o espetinho e cortar a cebola. Quem não tinha dado reunião na sua casa, trazia a comida daquele dia que seria a nossa refeição. Era muito trabalhoso, mas ao mesmo tempo era divertido. A esposa do João, por exemplo, era responsável por temperar a canjica. Meu esposo era quem cuidava das finanças da festa, porque ele é auditor fiscal”, acrescenta Eliane.

Aos poucos, a Comissão pegou o ritmo da organização do evento e não precisava de tantas reuniões. “A gente já tinha um script a seguir. Mas a cada ano, anotamos os erros e acertos e conversamos ao fim da festa para ver o que não devíamos fazer e o que tinha funcionado. Para que no ano seguinte, fosse ainda melhor”, pontua a aposentada.

João revela que, com o passar do tempo, como os moradores foram envelhecendo, o grupo decidiu diminuir o número de afazeres manuais. “Antes, a gente montava as barracas e cavava os buracos para erguê-las. Mas do meio para o fim, percebemos que não dava mais, então compramos a estrutura de metal. Temos até hoje as lonas, as barracas, o fogão e a churrasqueira guardadas”, salienta.

Solidariedade

Em dois grandes álbuns, parte da história da festa junina da SQS 213 é eternizada. Um deles é um arquivo com os diversos documentos de cupons fiscais, rendimentos das festas, gastos e atas das reuniões. O grupo, inicialmente, teve dúvidas do que fazer com o valor arrecadado no arraial até que tiveram a ideia de doar o valor para alguma instituição de caridade.

“A gente decidia tudo em votação. E quando decidimos pela festa não sabíamos o que fazer com o excedente, então um morador sugeriu doar e todo mundo apoiou”, recorda. “Mas antes disso, para levantar o dinheiro que seria investido, cada membro da Comissão emprestava um valor nessa etapa inicial. A festa era feita no sábado, e no dia seguinte, no domingo, já pagávamos, para cada um, o que tinham emprestado. Nunca nem um morador ficou sem receber. Logo depois fazíamos uma reunião de rendimentos e do que tinha sido gasto, e escolhíamos para qual entidade seria destinado a doação”, explica.

Já o segundo álbum, guardado ainda com mais esmero, é um convite à memória. A cada página, as fotografias contam a história dos moradores: um vínculo que vai além da festa junina, que se traduz em amizade entre os residentes do Bloco A e também de afeto com a capital do país. “Vim para Brasília para passar somente um ano, cheguei em 2 de novembro de 1981, saindo do Espírito Santo com meu esposo. Hoje, mesmo visitando meus familiares que moram lá, logo quero voltar. Meu lugar é aqui, onde criei meus filhos. A gente acaba se apegando. As pessoas falam que aqui não tem praia, mas eu não sinto falta”, frisa.

Na Asa Norte, empatia, preocupação e interação mesmo durante o isolamento

Arthur de Souza

 Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
Marta Simone (E), Teresa Cristina (C) e Silvia Perez: ações para unir os moradores | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press

A síndica do Bloco H da 210 Norte, Silvia Perez, 58 anos, idealizou — junto aos moradores do edifício — eventos que proporcionam uma melhor convivência e funcionam como uma válvula de escape para momentos difíceis, como a pandemia. Empatia, preocupação e interação. São essas as palavras que, talvez, possam definir a união entre Teresa Cristina, 59 anos, Silvia Perez e todos os moradores do Bloco H.

As duas vizinhas entram em cena como as principais cabeças por trás de eventos que acontecem no prédio, que são criados com a intenção de gerar mais aproximação entre os moradores. Apesar de não ter mais residência no edifício, Silvia se mantém como síndica, com aprovação dos vizinhos, e conta que a primeira ideia surgiu quando ainda morava na quadra. “Há algum tempo, fiz uma iniciativa que se chamava ‘entre vizinhos’, e era justamente com a pretensão de estimular os moradores a se conhecerem e conviverem”, comenta.

“Nós fazíamos a preparação para os eventos, decidindo sobre decoração e o que seria servido, por exemplo. Isto já era algo muito positivo, porque as pessoas acabavam se conhecendo durante as reuniões e amizades acabaram sendo feitas”, relembra. Teresa, que ainda mora no edifício, é uma das que criou amizades com os primeiros eventos. “Uma vizinha do meu andar foi embora para Curitiba, mas mantemos a amizade até hoje. Também teve uma professora belga, que veio para cá fazer doutorado na Universidade de Brasília (UnB) e acabei criando uma boa relação”, relembra.

Aproximação essencial

Com a pandemia, Silvia diz que todos os moradores passaram a se preocupar uns com os outros, momento em que tiveram a ideia de criar mais um evento, para manter a interação, mesmo em um momento de pouco contato. “Além de imprimir algumas rotinas, como fazer telefonemas, tivemos a ideia de fazer o “troca-troca” de livros, em 2021, que foi muito bem aceito por todos”, frisa. Teresa lembra que foi tudo feito no improviso. “Conseguimos uma base de madeira e colocamos os livros nela, dividindo de acordo com o tema de cada um, tudo no protocolo de segurança sanitária. Quem pegava o livro, não tinha a obrigação de devolver e, o saldo que ficou, nós doamos. Passaram por aqui, cerca de 400 títulos diferentes”, destaca.

Para Silvia, o evento foi muito significativo. “A gente via pessoas que nunca tinham saído de casa, desde o começo da pandemia, descer com um livro e voltar com outro. Isso me fez pensar que os moradores estavam receptivos a buscar algum tipo de integração”, pondera. “É muito importante porque, principalmente durante a pandemia, a tensão foi tão grande, que vimos muitas brigas entre pessoas que moram próximas e, esse tipo de ação, diminui muito o atrito. Foi algo bastante legal, pois estávamos em um momento difícil, tudo fechado e, de repente, acha-se um jeito de fazer a interação entre os vizinhos”, considera Teresa.

Outros eventos

As duas reforçam que não foi só o troca-troca de livros que teve êxito nas intenções de integrar. “No carnaval que antecedeu a pandemia, em 2020, eu e a Silvia bolamos uma decoração. Fomos em Taguatinga comprar os adereços e, enquanto estávamos arrumando, o pessoal passava e se empolgava, perguntando o que iria acontecer”, detalha Teresa, que brinca afirmando que “a grande vantagem de fazer um evento como esse, no pilotis do prédio, é que o pessoal não precisou se preocupar com blitz (risos)”.

“Esse ano, no feriado de carnaval, com as pessoas vacinadas e tendo menor receio de sair de casa, tivemos a ideia de fazer um evento de habilidades pandêmicas. Cada um trazia algo que aprendeu e/ou aprimorou nesses dois anos de isolamento. E acabou virando um sarau, teve até violino”, lembra. Silvia revela que mais uma iniciativa de integração deve acontecer em breve, também com a essência da troca entre os moradores. “Qualquer coisa que a pessoa tenha e não queria mais, ela poderá trazer para doar. Sempre na intenção de propiciar a integração, pois, se a gente conseguir que duas pessoas, pelo menos, participem, já é algo interessante”, torce.

Além disso, a síndica do bloco comenta que, devido ao sucesso que os eventos fizeram, existe um planejamento para criar uma espécie de cronograma. “A ideia é tentar propiciar uma frequência maior nesses momentos de interação, para aproximar mais os vizinhos. Até porque, eles são as pessoas mais próximas que a gente tem aqui”, reforça.

Efeito positivo

Quem aproveitou os eventos foi a advogada Marta Simone do Carmo, 47. “As interações foram de grande ajuda. Na pandemia, também estava receosa em sair de casa e, agora nesse período mais ameno, trazer essa possibilidade de confraternização entre vizinhos novamente, é algo que faz a gente se sentir vivo outra vez”, afirma Marta.

Para ela, o bloco onde mora contribui para a criação desse tipo de iniciativa. “Penso que existe uma coisa muito especial. Todos têm uma preocupação muito grande em fazer essa troca, essa conversa”, considera a moradora. A advogada afirma que participar dos eventos foi uma experiência única. “Agregou muito na questão da valorização da convivência entre vizinhos, na amizade e na solidariedade. Além disso, quando colocamos os registros nos grupos, faz com que outros também se interessem em participar”, aponta.

“Praia” perto de casa: beach tennis para aliviar a tensão no Noroeste

Pedro Almeida*

ED ALVES/CB/D.A.Press
Ester Mauch, Beatriz França (C) e Ana Claudia: uma amizade que une esporte e qualidade de vida | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

A ocasião faz o esportista. Não são raros os casos de craques de diversas modalidades que começaram no esporte pela comodidade de ter um espaço para praticar perto de onde moram. Para provar que a proximidade entre a casa e a quadra faz toda a diferença, o bairro do Noroeste apostou em campos de areia no intuito de incentivar os esportes de praia. O resultado foi positivo. As vizinhas Ester Mauch, 33 anos, Ana Cláudia Gomes, 35, e Beatriz, 35, se tornaram adeptas do beach tennis, ou tênis de praia, febre no bairro.

Em 2020, o mundo parou. A pandemia freou a sociedade e aboliu, por tempo indeterminado, o conceito de reuniões, especialmente em locais fechados. Aqueles que gostavam de se exercitar nos ginásios e academias sofreram um impacto a mais. No primeiro momento, as atividades físicas ficaram restritas aos quintais e salas de estar, que tiveram os sofás arrastados para o canto para se tornarem academias improvisadas.

Com um melhor entendimento da covid-19, as atividades ao ar livre foram paulatinamente liberadas. Ainda sem poder frequentar a academia, as vizinhas Ester, Ana Cláudia e Beatriz avistaram, da janela do prédio no Noroeste, uma nova possibilidade. Elas ainda não sabiam, mas a caixa de areia de pouco mais de 200 metros quadrados na praça traria um respiro frente às dificuldades vividas e mudaria a rotina das três.

Em pleno Cerrado, a fina areia branca confinada no paralelepípedo retangular emula a faixa à beira-mar. O calor, apesar de seco, nada deve ao clima litorâneo de verão. O beach tennis que leva, no nome, a palavra “praia”, achou uma nova casa bem longe de lá. O esporte, jogado por quatro pessoas, duas contra duas, funciona como uma mistura de tênis e vôlei de praia. A dupla de jogadores tem de passar a bola para o outro lado sem deixar que ela toque o chão dentro das quatro linhas. A lógica de pontuação segue a do tênis, dividida em sets e games. No Noroeste, contudo, há uma regra especial: que promova a socialização dos frequentadores.

Na ânsia de voltar a mexer o corpo e na comodidade de apenas precisar pegar o elevador até o pilotis, as três afundaram os pés descalços nos finos grãos e empunharam a raquete. O jogo cumpriu o prometido: fez o corpo suar e manter-se saudável; mas, além disso, trouxe um ouro escondido. O trio de vizinhas não se conhecia. Foi bem ali, resgatando a amistosidade de uma orla, que as três tornaram-se grandes amigas.

Hoje, o jogo é mero detalhe na relação. Ester, Ana Cláudia e Beatriz criaram um laço que vai muito além do campo e fazem, nas palavras de Ester, “de tudo juntas”, mas sem deixar de bater ponto nas sessões matinais do passatempo praiano. Pela frequência que as vizinhas vão à quadra, elas acabam por se encontrarem mais entre si do que com outras amigas que não praticam o esporte. Fica cômodo trocar confissões no banco de espera entre as partidas. À medida que as conversas avançavam, também progredia a proximidade. Hoje, as três já planejam uma viagem em conjunto, mas sem esquecer de colocar as raquetes na bagagem.

O trio não é caso isolado. Atualmente, o grupo de jogadores do bairro já soma duzentos participantes. Os equipamentos, comprados com a ajuda de todos, estão disponíveis para quem quiser a qualquer hora. Basta avisar os colegas e buscar na portaria do prédio. Se a luz das ruas já estiver prestes a ser apagada, basta acionar os holofotes instalados por eles e acionados por controle remoto. A pequena caixa de areia revolucionou um bairro inteiro. Mais do que 200 jogadores, o Noroeste ganha 200 vizinhos unidos. Neste caso, a ocasião fez a vizinhança.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira