Já se vão 52 anos desde que os Beatles oficializaram o fim da carreira. Em 1970, John, Paul, Ringo e George colocaram um ponto final em um dos projetos musicais mais importantes do século 20. O legado, porém, se perpetua até hoje. As canções compostas nos anos 1960 em Liverpool, na Inglaterra, extrapolaram as fronteiras do espaço e do tempo e chegaram até o Lago Sul, em 2022. O quarteto é motivo de encontro para debates regados a vinho entre os vizinhos Eduardo Levy e José Alexandre, que compartilham da paixão e de uma coleção invejável de artigos sobre a banda.
O carioca Eduardo, que é mais conhecido como Levy, rememora a infância no Rio de Janeiro. Em uma descrição que pinta uma cidade que já não existe mais, ele conta sobre os papos no paredão da Urca e as descobertas musicais. Nos anos 1960, ainda no colégio, Levy descobriu a Modern Sound, uma loja de discos situada na rua Barata Ribeiro, coração de Copacabana. O estabelecimento, que se tornaria um marco cultural da cidade, trazia uma coleção de discos atuais do mercado internacional. Eduardo teve, enfim, a oportunidade de conhecer um tal quarteto que fazia um certo barulho mundo afora. Para praticar um pouco do inglês, ele levou para casa uma “bolacha” dos Beatles e nunca mais foi o mesmo. Hoje, aos 70 anos, ele trocou de capital, mas a idolatria permanece.
José Alexandre não sabe precisar quando, nem por que o amor pelos Beatles se deu. Talvez, a mãe, que tinha uma conexão com a música, pudesse tê-lo introduzido; ou, porventura, o aprendizado do piano tenha sido a chave, já que, ainda que primorosas, as canções do grupo podem ser tocadas com relativa facilidade. José lembra-se, inclusive, de ter, na adolescência, um cachorro chamado John Paul, em homenagem aos vocalistas da banda. Se o início do amor não pode ser pinado, tampouco o fim. Aos 49 anos, o advogado capixaba, que se considera brasiliense, segue aficionado pelo quarteto de Liverpool e faz questão de compartilhar o interesse com os três filhos, que também são fãs da banda.
A quadra 26 do Lago Sul, na qual os beatlemaníacos residem, conta com uma associação de moradores, cuja presidente é esposa de José Alexandre. Em uma das reuniões, sediada no lar do casal, Levy compareceu e notou a vasta coleção de José Alexandre sobre a banda. Nascia, ali, a amizade pautada pelo interesse comum. Dali em diante, a dupla se encontraria incontáveis vezes sem o pretexto da associação de moradores. Para não dizer que os encontros são estritamente monotemáticos, ambos são categóricos ao afirmarem que há um outro assunto importante: o Flamengo. “Mas os papos inteligentes são sobre Beatles”, brinca José Alexandre.
Quebra-cabeças
Os mais de 20 anos que os separam fazem com que a discussão não se esvazie. Questões geracionais, além dos gostos pessoais, entram em jogo e trazem visões distintas sobre cada uma das peças do vasto quebra-cabeças que é a obra completa dos Beatles. Se José Alexandre aponta Blackbird como a grande canção, Abbey Road como o melhor álbum e George Harrison como o Beatle preferido, Levy enaltece Yesterday, prefere o Álbum Branco e condecora Paul McCartney como o melhor do quarteto.
Além do extenso catálogo, a banda, para a sorte do duo, gera frutos mesmo após meio século de rompimento. Livros, filmes e documentários novos com materiais inéditos estão sempre à disposição todos os anos. As vozes de José e Levy também já se misturaram à da legião de fãs nos shows de Paul McCartney, ativo até os dias de hoje em carreira solo. Para cada novidade, ou no simples prazer de reavivar um disco antigo, basta abrir o vinho, acionar o vizinho e deixar o som rolar.
*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira
“O interesse começa na gente”, foi com esse pensamento que a psicóloga Giovanna Bittencourt de Castro, 29 anos, se motivou em resgatar os laços de amizade e colaboração entre os vizinhos para reativar a Horta Comunitária SQS 114 Sul. “Se a gente não começar, como cobrar dos outros? E com a horta não é diferente. É por meio da nossa motivação inicial que vamos incentivar outras pessoas a terem esse cuidado com o lugar”, acrescenta a jovem.
Moradora do Bloco H em 2018, Giovanna teve a iniciativa de criar um grupo de convivência com os vizinhos da quadra. Para Giovanna, essa relação com a comunidade a enriquece e ela também pode contribuir com as outras pessoas. “A gente cria amizades e um suporte entre os vizinhos”, afirma. Um exemplo, é uma amizade que fez com uma idosa que mora sozinha. “Ela tem um cachorro e eu ia lá às vezes, descia com ele para o Eixão. Eu estava com ela pela companhia e hoje é uma pessoa que é minha amiga”, conta.
Por mais laços como esse, Giovanna não pensou duas vezes em reativar a horta da quadra. “Quando eu soube que um dia tiveram esse espaço, fui atrás de quem também tinha o mesmo interesse que eu”, relata. Assim, a psicóloga conheceu Suzana Ramos Silveira da Rosa, 61. Moradora do Bloco B, ela é uma das vizinhas que participou do processo de implementação da horta.
Em 2013, por meio da iniciativa de duas moradoras do Bloco B, nascia a horta em um pequeno cercado atrás do Jardim de Infância 114 Sul. A intenção inicial era trabalhar com uma horta educativa junto com a escola, mas a parceria não vingou e os moradores da quadra cuidaram do espaço sozinhos. “Fazíamos mutirões, então quem não ajudava durante a semana, vinha no sábado ou domingo, no final das contas todo mundo participava de alguma coisa”, recorda Suzana.
Canteiros
No entanto, em 2018, com a crise hídrica, os moradores decidiram desativar o espaço. “Não era justo com as pessoas de outras regiões administrativas, que passavam por aqui. Elas não tinham água nem para tomar banho e aqui estávamos regando as plantas”, explica a enfermeira. Na época eram 14 canteiros, área de compostagem e um minhocário. Hoje, o espaço conta com apenas seis canteiros.
Hoje, o objetivo, além de reativar o espaço plenamente, é resgatar o espírito de comunidade entre os vizinhos da SQS 114. “Antes da pandemia a gente se reunia para tudo, organizávamos lanches, aula de tai chi chuan, tínhamos uma convivência boa. É uma coisa que sentimos falta e queremos retomar. Aos poucos vamos conseguindo acender o interesse na comunidade”, acrescenta Suzana.
Relações
Giovanna concorda com a vizinha e compara a atual aparência da horta com a relação dos vizinhos. “Hoje, vemos uma horta não tão bonita, um pouco seca. Ela não está exuberante, mas eu acho que isso reflete como estão as nossas relações como comunidade. Representa muito da escassez das relações da nossa comunidade. E isso tudo aqui é sobre relações e pensando no próximo”, explica a psicóloga.
Para a jovem, a pandemia ensinou a pensar mais no que é possível fazer para contribuir com o próximo. “Eu venho aqui, cuido e planto não só para o meu benefício, mas para o outro também. Tem gente que vem aqui só para colher. E é um trabalho de via dupla, porque eu confesso que gosto de plantar, mas não lembro de colher e sempre tem alguém que colhe. Mesmo que essa pessoa não esteja ajudando ativamente, eu vou ficar feliz porque alguém está colhendo e se beneficiando disso”, completa.
O cheiro que exala da chapa ou o aroma de um bolo caseiro recém-saído do forno são suficientes para atiçar o olfato dos moradores à volta. No caso de Adriana Nunes, comediante do grupo Melhores do Mundo, o perfume da cozinha trouxe o vizinho, como em um desenho animado, à porta de casa. O que ela não sabia é que, ao abrir, encontraria Roberto Carlos Varejão de Freitas, o Beto, um velho amigo.
Beto não é, tecnicamente, brasiliense, mas se considera um, afinal chegou de Recife com apenas 1 ano de idade. Falar sobre boa vizinhança parece abrir uma fenda de nostalgia na memória dele. Morador da Asa Sul, ele rememora um tempo em que as boas relações entre os moradores eram a lei. As portas dos apartamentos estavam sempre abertas, literal e figurativamente. Os gramados eram tomados pelas amizades que não cabiam apenas no pilotis.
Ter crescido neste clima amistoso o moldou de forma que sua atual residência já foi confundida por transeuntes com uma casa de festas. Basta qualquer desculpa surgir para que ele abra a garagem, disponha as mesas no gramado e ponha música para tocar. Quando não está com uma festa planejada, Beto comanda um quiosque de lanches na 215 Sul. Desde 1986 no ponto, ele comenta que recebe filhos adultos dos originais frequentadores do espaço. Nos 36 anos de comércio e com um sem-número de clientes assíduos, uma trupe de comédia que batia ponto por ali acabaria por se destacar na cidade.
Em 1995, por acaso, em 21 de abril daquele ano, a companhia de comédia Melhores do Mundo foi oficialmente criada. No sexteto original, que segue junto até hoje, havia Adriana Nunes. Formada pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, a atriz já passou por uma gama de trabalhos até se encontrar na comédia. Com o grupo, por fim, se estabeleceria como uma das grandes comediantes de Brasília e ganharia visibilidade nacional. Peças como Jingle béus, Notícias populares, Hermanoteu na terra de Godah e Sexo — a comédia estão cravadas na mente do público. Adriana participou, também, do Zorra total, programa de comédia da Rede Globo.
Em dado momento da carreira do grupo, Os Melhores do Mundo foram residentes, por aproximadamente uma década, no Teatro dos Bancários, na comercial da 314 e 315 Sul. Para brindar a casa lotada ou para simplesmente matar a fome acumulada do dia corrido, um bom lanche rápido caía bem. E o quiosque do Beto ficava a apenas uma tesourinha de distância. Por vezes, ele foi o responsável por alimentar a trupe no fim da noite.
A mãe de Adriana, com aversão a manter-se no mesmo local por muito tempo, se mudou diversas vezes dentro de Brasília. Antes de ter a própria independência, a comediante a acompanhava nas aventuras para habitar novas casas. Mais recentemente, a última mudança foi para Pirenópolis. Adriana, que já vivia com a própria família, resolveu reviver os tempos de mãe e filha e foi passar o tempo pandêmico na mesma cidade. Para a comodidade dos filhos, porém, era necessário ter um local em Brasília. A atriz encontrou uma residência na Asa Sul que funciona como uma espécie de vila. Os vizinhos compartilham de uma área comum no fundo das casas. Interessada pelo conceito, que traz proximidade e segurança, Adriana fincou bandeira por lá.
Animada com o novo lar, a artista preparou um bolo especial e logo pôs no forno. No tempo do fermento dar corpo à massa e dos aromas se espalharem, alguém bate à porta. Era Beto. Aquele que, por vezes, serviu Adriana seria, agora, servido por ela. O pedaço de bolo com café propiciou, bem à moda brasileira, uma conversa para que os amigos colocassem o papo em dia e se atualizassem após tantos anos de amizade. O filho de Beto, hoje adulto, confessou a Adriana que tentava acompanhar o pai nas apresentações do grupo, mas que acabava ficando de fora por não ter idade para assistir aos espetáculos. Se Beto recebia a segunda geração de frequentadores do quiosque, Adriana estava diante da segunda geração de fãs. Por fim, a mesa desta relação estava posta e farta. O cheiro que sai da chapa ou o aroma de um bolo caseiro recém saído do forno são suficientes para reatar a amizade dos moradores à volta.
Vou falar de vizinhos peculiares: os macacos-pregos. Não os escolhi. A convivência com animais silvestres é uma das singularidades de Brasília. Moro em um condomínio horizontal, fronteiriço a uma mata cerrada. A chegada dos macacos é mágica. De repente, você ouve um barulho de mato se mexendo. Só que é um alvoroço aéreo, em cima das árvores, de galho em galho, a 10 ou 15 metros de altura.
Eles formam uma turma simpática, mas bagunceira. Fazem acrobacias de deixar o Cirque du Soleil no chinelo. Nunca vi nenhum macaco despencar do alto por um movimento em falso. E não revelam extrema destreza apenas no espaço aéreo.
Certa vez, fiquei apreensivo, pois um macaco teve a ideia temerária de transitar sobre uma cerca de arame farpado. Evitei gritar, permaneci estático, imóvel como a estátua do silêncio, com medo de assustá-lo e provocar um acidente. No entanto, com incrível habilidade, ele atravessou toda a extensão do fio farpado, incólume, tranquilamente, sem sequer dar uma olhadinha no lugar em que pisava.
Quando os vejo em acrobacias, tenho vontade de dizer o mesmo que Rubem Braga falou a um sujeito que fazia malabarismos em uma corda suspensa em cima dos prédios, a mais de 20 metros de altura: “Eu quero ver é aqui embaixo”.
Em uma madrugada brasiliana, acordei assustado com o barulho do que me parecia um pagode ou uma pelada em cima do telhado. A zoada se dirigia para um lado e, em seguida, guinava, abruptamente, para outro. Levantei voado da cama, em dúvida se estava sonhando, na tentativa de desvendar o enigma. De repente, avistei a silhueta de um macaco no alto de uma faixa de vidro e dei uma bronca.
Não foi suficiente para afugentá-los. Abri a porta da sala e joguei uma pedra nas árvores próximas, só para dispersar. No entanto, em razão talvez da falta de aquecimento e da rotina de exercícios físicos, torci o braço e tive de fazer fisioterapia durante mais de um mês. E o pior é que o fisioterapeuta estava mais preocupado com a saúde dos macacos do que com a minha: “E os macaquinhos? Cuida bem dos macaquinhos, hein?”, recomendava sempre.
Nas férias, resolvi botar moral na macacada. Armei uma rede, peguei um livro para ler e fiquei de plantão. Quando se aproximavam, eu os espantava. A situação estava sob controle e ia bem. No entanto, numa tarde, ouvi um barulho, prestei atenção e levei um tremendo susto. Vi o que me parecia ser um macaco de duas cabeças.
Todavia, observando melhor, constatei que era apenas uma mãe com o filhote nas costas. Ela me mirou com os olhos pungentes, faiscantes e interrogativos, como se perguntasse: “Não vai me deixar alimentar meu filhote?”
Aquela cena minou-lhe a convicção saneadora. Liberei a mangueira e, desde esse dia, perdi a moral com a macacada. No período das chuvas, eles quebraram oito telhas e desarrumaram 22. As goteiras se espalharam pela casa, pingava para todos os lados. Os meus dois netos, Aurora, 8, e Judá, 4, abriram guarda-chuvas para transitar pela sala e levar baldes para recolher a água que gotejava.
Pedi ao senhor Hermínio para subir no telhado e arrumar. Fui eu quem invadiu o território deles. Mais recentemente, tive de suprimir algumas árvores para construir um muro de divisa com vizinhos e a macacada arrefeceu a bagunça no telhado. Esses macacos aprontaram tantas que viraram personagens de caderno especial.Salvaram-me muitas vezes. Valeu, macacada!
Uma amizade que viu Brasília nascer e que esteve presente nos momentos mais alegres e nos mais solitários e desesperançosos uma da outra. Assim se define o vínculo de quase 62 anos entre Vera Hildebrand Pires da Cunha, 75 anos, e Kátia Abudakir Kouzak, 76. As duas se conheceram na adolescência, quando chegaram à capital do país, inaugurada no mesmo ano. Desde então, o laço segue firme e inquebrantável entre as duas amigas, que são “praticamente irmãs”. Religiosamente, aos domingos, Vera deixa sua casa na Asa Norte, passa na padaria, e vai para o Lago Sul, visitar Kátia.
“Chamamos de café da manhã da Vera”, conta Kátia, aos risos, sobre o banquete que a amiga traz da panificadora. Na mesa de varanda, elas montam a refeição e batem papo. O hábito de compartilhar lanches entre as duas é antigo, e vem ainda da juventude, na época em que estudavam juntas na Comissão de Administração do Sistema Educacional de Brasília (Caseb). “A gente comia a mesma coisa no intervalo: um sonho e um Grapette (refrigerante de uva)”, lembra Kátia. “Esse era o nosso lanche das 10h”, acrescenta.
Vera foi a primeira das duas a chegar em Brasília. “Dia 13 de abril de 1960, tinha 13 anos, era uma quarta-feira, quando vim para cá. Fiquei encantada, porque Brasília estava lotada de barraquinhas de acampamento”, conta. Já Kátia chegou dois meses depois, em 12 de julho do mesmo ano. “Na época morávamos na SQS 107, uma no Bloco A e outra no Bloco D. E íamos juntas para o colégio. A amizade começou porque estudávamos na mesma sala”, diz Vera.
Para as duas amigas, as lembranças ainda são vívidas e enquanto relatam as memórias, elas sorriem com o revisitar dos dias de infância. “Aproveitamos muito a nossa juventude”, salienta Vera, que recorda do tratamento que realizou no hospital Sarah Kubitschek. “Como nasci com paralisia cerebral, eu fiz acompanhamento por muitos anos no hospital, comecei por volta dos 14 e segui até uns 20 anos, ia cerca de três vezes por semana”, conta.
Kátia revela que acompanhava a amiga nessas consultas até que foi proibida. “Brincava tanto (no hospital), assanhava os velhinhos, jogava peteca e fazia de tudo. Até que fui proibida de ir”, conta, entre risos. “A Vera chegou para mim nesse dia toda triste, dizendo: oh, Kátia, a direção não quer que você vá mais não”, diz.
O que mantém o laço até os dias de hoje, é a “amizade pura”. “Geralmente as pessoas têm algum interesse, quer alguma coisa. Mas a nossa amizade dura tanto tempo, porque ela é constante. E na hora que a gente precisar, sabemos que podemos contar uma com a outra”, ressalta Vera. Kátia acrescenta que as duas buscam simplesmente a companhia uma da outra, pois é isso que as fazem bem.
Amor e admiração
Ao longo das seis décadas de companheirismo entre Kátia e Vera, as duas passaram por momentos marcantes. Mesmo em cursos de graduação diferentes, Kátia estudando ciências contábeis, e Vera, psicologia, o vínculo se manteve. Kátia garante que a união entre as duas vem de um pacto de muito amor e admiração. “Não temos o mesmo sangue, mas somos que nem irmãs. E olha que somos bem diferentes na personalidade”, diz.
No espírito de companheirismo, quando Kátia estava no hospital para ganhar o primeiro filho, Vera foi chamada, de madrugada, para acompanhar a amiga. “Eu era muito jovem, tinha 25 anos, era o meu primeiro filho, me sentia despreparada. Estava assustada e a Vera era a pessoa que eu queria do meu lado para me acolher, porque eu estava perdida”, detalha. Vera não só acompanhou o parto de Kátia como é madrinha do filho dela, Solon Kouzak.
Mas além dos momentos de alegria, as duas são um suporte nos desafios e dificuldades. Kátia lembra que quando o marido ficou muito doente, Vera ia ao hospital visitá-la. “Meu esposo ficou um ano e quatro meses muito debilitado. Nesses grandes momentos, nas coisas que mudaram a nossa vida, ela (Vera) estava do meu lado. Quando meu marido estava doente e depois quando ele partiu eu enfrentei todo tipo de problema, com sócio e doença — fiquei cardíaca —, e foi a Vera que me apoiou”, se emociona Kátia.
Vera também enfrentou a perda do esposo e conseguiu superar o luto graças a ajuda da amiga. “Meu marido teve câncer de pulmão, ficou três meses muito ruim e depois partiu. Agora faz quatro anos, o tempo passa muito rápido. Quando ele foi embora, foi a Kátia que me lembrava que a vida não acabou, que ele não ia querer que a minha vida parasse. Em razão disso, a gente ficou mais unida. Foram esses momentos, os essenciais e que fizeram toda a diferença”, avalia Vera.
“Eu vi Brasília nascer”
Para Kátia, foi “puro destino” que viesse para a capital e encontrasse aqui uma amizade de uma vida. “Meu tio era militar da Aeronáutica e eu queria estudar na capital federal. Sou paulista e primeiro fui morar no Rio de Janeiro, que era a capital do país, com os meus tios. Depois, meu tio foi transferido para Brasília e eu vim com eles, como meus tutores”, afirma.
Já Vera veio do Rio de Janeiro, porque o pai era da Fundação Educacional e foi o responsável por trazer os professores do país e criar o modelo de ensino da capital. “Quando eu cheguei, Brasília estava cheia de barraquinhas e todo mundo tinha no carro um adesivo escrito ‘Eu vi Brasília nascer’. Nas noites de sábado, a gente descia para baixo dos prédios com violão e vitrolas e ficava cantando e dançando. Lembro até hoje, da festa da inauguração (da cidade), que me marcou muito, em que fizeram uma dança ao lado das conchas (do Senado e da Câmara) e soltaram tecidos que chegavam quase até embaixo. Eu me lembro muito disso”, afirma. Vera arremata: “Na próxima encarnação, já pedi para nascer aqui, em Brasília”.
Vizinhos não são só os de porta. Podem morar no mesmo bloco e se sentir vizinhos. Ou até mesmo de quadra. Há quem se considere vizinho de alguém que resida a uma distância mínima, capaz de ser percorrida a pé: de um bloco para outro. Como no caso do publicitário Charles Marar. Ele até consegue ver do seu próprio apartamento se há luz acesa na cozinha da “vizinha” Neide Pimenta Magalhães, residente em outro bloco da mesma 216 Sul.
A luz acesa ou alguma movimentação é a senha para ele ligar e perguntar com franqueza: “O que você está fazendo?” Invariavelmente, Neide estará cozinhando. Depois da família (filhos, noras, netos e o novo neto Theo, de quatro meses), e dos amigos, a paixão dela é fazer comida. Às vezes até o trivial, mas o que mais a inspira é mesmo o gosto requintado. De um prato tradicional, como a canjiquinha mineira, feita de costelinha de porco, Neide extrai uma explosão de sabores e texturas que não ficam devendo a nenhuma iguaria. Ser convidado para degustar a canjiquinha é um privilégio ímpar. Charles não perde nenhuma chance.
Nascida em Sabinópolis, interior de Minas, Neide viveu no estado por 18 anos quando se casou e foi morar em Aracaju por cinco anos. De lá veio à capital, onde passou a trabalhar no serviço público. O interesse pela gastronomia surgiu depois que o primogênito, já formado, voltou de Londres e passou a cozinhar, aos domingos, mostrando o que aprendera no trabalho em restaurantes. “Foi assim que a luzinha se acendeu e comecei a me interessar pelo tema fazendo as primeiras aulas com a chef Susana Leste na garagem de sua casa na W-3 Sul”, conta a aprendiz de mestre cuca, que também acompanhou as aulas dadas no restaurante Alice, no Lago Norte.
Ela também entende muito de vinho e participa dos cursos da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-DF) com degustações que a deixam apta a harmonizar a bebida com o extenso e variado cardápio de sua autoria.
Outro prato que ela elabora com maestria é o pernil inteiro pururucado. Aliás carne suína é a sua predileção. Embora de origem árabe, o vizinho Charles não é muçulmano, por isso não está impedido de consumir porco — ingrediente vedado a árabes e judeus. Como todo o cristão, ele pode perfeitamente se deliciar com esse tipo de carne macia, saborosa e cada vez mais gastronômica. O que dizer da maciez da raça Duroc, que está conquistando os paladares?
Comida de beduíno
Charles tem nas veias o DNA da boa cozinha. A mãe, Najila Marar, jordaniana de 91 anos, que mora desde 1948 em Bauru (SP), até a pandemia vinha sempre a Brasília preparar o jantar de aniversário do filho, no mês de maio. Na mesa, a culinária árabe, uma das mais antigas e aromáticas do mundo, reinava com uma série de pratos todos feitos artesanalmente, como homus, quibe de bandeja, kafta de forno, arroz com lentilha, babaganuche, coalhada e o exclusivíssimo Mansaf, que tem na base, pão de folha e por cima, arroz de açafrão e carne de cordeiro cozida na coalhada com snobar (pinoli) frito na manteiga.
“Trata-se de uma comida típica de beduíno, que é consumida no deserto com as mãos, daí o pão servir de prato”, esclarece a brasiliense Isadora Marar, formada em nutrição e personal chef com especialização na cozinha árabe/jordaniana, que aprendeu com a avó Najila. “Quando meus filhos eram pequenos, a minha avó passava temporadas comigo me ensinando todas as receitas desenvolvidas por ela”, lembra a neta.
Já o pai Charles, que também apreendeu com Najila a preparar esse banquete — cuja fartura e generosidade são uma das principais marcas da hospitalidade árabe —, nunca transformou a habilidade em negócio e sempre cozinhou para os amigos. Há dois anos, porém, não podendo receber em casa por causa da covid-19, é a filha que abastece a sua despensa e geladeira. De falafel, esfirras, homus, chanclife e outras iguarias confeccionadas por ela e oferecidas todos os sábados na feira da QI 13 do Lago Sul. “Meu pai gosta de cozinhar para as pessoas”, entrega Isadora.
Apenas amigos
“Sozinhos há mais de duas décadas, Charles e Neide bem que poderiam casar,” propõe Najila, que gostaria muito que o filho tivesse alguém. “O casamento não iria durar um só dia”, reage, com humor, Neide, ciente das diferenças de temperamento e idiossincrasias de cada um. Melhor assim, para não interromper uma amizade profunda e firme que nem a crise sanitária abalou.
Recluso por um ano e meio, Charles quando revolveu sair de casa foi comer na cozinha da Neide, um espaço amplo e equipado com muito bom gosto. Ela também é perita na decoração de mesa e o faz com muitos recursos, graças à coleção de objetos e louças, afinal um dos filhos é sócio-proprietário da principal loja de equipamentos para hotéis e restaurantes da cidade.
Neide também investe na fórmula “viajar para comer”. Ela fez parte da primeira excursão enogastronômica que o ex-adido cultural e de imprensa da Embaixada da França Christian Couesmes, promoveu, no verão europeu de 2003, para a Borgonha e Jura, tendo como destaque “um jantar inesquecível na fabulosa casa de Paul Bocuse em Lyon”, como dizia o programa. Após elogiar a qualidade da comida, Neide escreveu no diário de viagem: “Um jantar no Paul Bocuse nos impele a atitudes mais comedidas, mas isto não aconteceu. Somos um povo alegre, barulhento, feliz e não ficamos tolhidos numa cultura que não é a nossa.
Ficamos muito à vontade, rimos alto, brincamos sem deixar de sentir o prazer de um jantar à francesa, quando o serviço é perfeito e descontraído, muito mais confortável do que um buffet”. A experiência na França serviu para aprimorar a atuação nos sabores.
Banda icônica do rock de Brasília, a Plebe Rude completou 41 anos de existência e a história do grupo caminha com a relação dos amigos André Philippe de Seabra, 55 anos, e André X Mueller, 60. Os dois se conheceram há quase cinco décadas, quando o mais novo ainda era uma criança, mas eles não imaginavam o legado que criariam juntos.
Formada em 14 de julho de 1981, a Plebe Rude, viria a se transformar numa das principais bandas de punk rock do Brasil. O grupo, originalmente, tinha como integrantes Philippe Seabra (guitarra e vocal), André X (baixo), Ameba (guitarra) e Gutje (bateria). Tempos depois, os dois últimos foram substituídos por Clemente e Marcelo Capucci. A Plebe chegou a lançar sete discos de estúdio e dois gravados ao vivo.
André veio de Curitiba para a capital em 1970, com os pais que eram professores da Universidade de Brasília (UnB). Por um tempo, o baixista morou na Colina, onde conheceu a maioria da galera da “Tchurma”, composta por jovens que mais tardar viriam fundar outras bandas como Aborto Elétrico, que posteriormente deu origem Capital Inicial e Legião Urbana, Blitx 64, Metralhas e outras.
Quando se mudou dos Estados Unidos para o Distrito Federal, em 1976, Philippe Seabra tinha apenas 9 anos e sequer falava português. Filho de um diplomata português com uma paraense, a família decidiu vir para o Brasil para que a mãe de Seabra ficasse perto da família, já que o avô dela era deputado em Brasília. Segundo ele, só começou a se sentir brasiliense quando conheceu a famosa Tchurma.
Os dois amigos se encontraram por meio de Alex, irmão mais velho de Philippe. “Ele era amigo do meu irmão e eu era mais aquele pirralhinho que ninguém dava bola”, brinca Seabra. No Lago Norte, as duas famílias moravam na mesma quadra e os mais velhos iam para a escola juntos, mas André e Philippe não se aproximaram de cara por conta da diferença de idade.
Depois de alguns anos, em 1978, André X se mudou com a família para a Inglaterra, onde a mãe faria um doutorado. “Foi bem na época da explosão do punk, então eu ficava gravando as bandas novas na rádio e mandando para o Alex, só que ele meio que ignorou. Mas o Philippe não, ele pegou e começou a tirar essas músicas na guitarra”, recorda o baixista.
Quando voltou para Brasília, André estava determinado a montar uma banda e começou a busca pelos integrantes. “Um dia eu estava na casa do Alex e ouço alguém tocar o Stiff Little Fingers, que é uma das bandas que a gente adorava. A pessoa estava tocando direitinho. Daí Alex me disse que era o irmão dele. Convidei o Philippe e desde então estamos aí, há mais de 40 anos andando juntos na Plebe.”
Duas das lojas mais antigas da comercial 308 Sul têm uma história de amizade entre os proprietários que começou ainda na infância, quando eles eram levados pelos pais para trabalhar no período de férias ou no contraturno das aulas. Ao longo de mais de 50 anos como vizinhos de parede, Jean Skaf, 55 anos e proprietário da loja de roupas Sua Casa Malhas; e Francisco de Andrade, 63 anos, da loja agropecuária Casa Renato, compartilham visitas em jogos clássicos de futebol e solidariedade em momentos dolorosos na vida um do outro.
“Passamos o tempo inteiro na loja, até mais do que ficamos em casa, então essa relação saudável entre a vizinhança do comércio é interessante, porque um ajuda o outro. Quando precisa trocar dinheiro, quando tem algum problema ou algum lojista está em dúvida sobre a índole de alguém, por exemplo, essa parceria é muito importante. Os comércios vizinhos são de pessoas muito presentes no cotidiano e esse vínculo se cria naturalmente. E com o Francisco, isso é ainda mais forte”, destaca Jean.
A loja de roupa Sua Casa Malhas foi aberta pelo pai de Jean em 1968. “Meu pai veio do Líbano. Primeiro ele parou no Porto de Santos, depois foi para São Paulo, seguiu para Bela Vista, no interior de Goiás, onde morava o meu tio. E, de lá, ele veio para Brasília e trouxe a família, para começar uma nova etapa da vida. Eu cheguei no Brasil com um ano e meio de idade. A loja foi aberta em novembro de 1968”, detalha.
Com o tempo, a cordialidade entre os vizinhos de comércio foi evoluindo, até se transformar em amizade. “Eu cresci na quadra e o Francisco começou a trabalhar com o pai. A minha amizade com ele dura 45 anos e sempre foi marcada pela lealdade e pela dignidade. Eu, inclusive, fui padrinho de casamento dele. Sempre estamos juntos. Saímos para almoçar juntos. Ele é um irmão que Deus colocou no caminho da minha vida. E é algo natural, porque no dia a dia estamos ali, na loja, se vendo”, argumenta.
Acolhimento
Francisco, da agropecuária Casa Renato, conta um hábito dos amigos. “Costumamos tomar um café da tarde, quase todos os dias juntos, aqui de frente para as duas lojas. Isso é por volta de 16h40. Quando o papo está bom, só saio de lá quando os meninos começam a baixar as portas da loja”, confessa. “Nesse momento aproveitamos para conversar de tudo: futebol, sobre o comércio, algo que aconteceu na nossa vida, de política meio de leve, para não ter discussão”, acrescenta.
A Casa Renato foi fundada em 1962, quando os pais de Francisco chegaram de Minas Gerais. “Meu pai tinha alguns negócios que não estavam dando certo, então ele decidiu vir para Brasília para recomeçar. Em 1961 ele já tinha visitado um amigo aqui e, no ano seguinte, decidiu vir de vez. Cheguei quando tinha 4 anos, mas me considero de Brasília”, ressalta.
Jean tem o mesmo vínculo com a capital que o recebeu de “braços abertos”. “Aqui é onde eu cresci, onde vivo e criei meus filhos, tenho meus amigos, é uma cidade iluminada. Uma cidade que parece que tem um imã que atrai a gente. Mesmo que você viaje, você fica louco para voltar. Amo Brasília em toda a plenitude. Um dos meus pontos prediletos é o laguinho da 308 sul, em frente ao Bloco F, pois ia muito lá na minha infância. Além dele, tem a Igrejinha de Fátima”, conta.
Sobre o vínculo com a famosa Igrejinha, Jean confessa: “vou para lá quando preciso encontrar paz. Sempre frequentei a missa com meus pais quando criança, e quando preciso de um momento de reflexão, encontrar alguma solução, pensar no cotidiano, sento nos banquinhos ao lado da Igrejinha e fico ali”, menciona.
Paixão pelo futebol
Os dois amigos também estiveram presentes nos momentos importantes da vida um do outros. “O Francisco costuma vir à loja aos domingos cuidar dos passarinhos e uma vez ele chegou e ouviu um barulho dentro da minha loja e me avisou que alguém a estava invadindo. Por causa disso, consegui chegar a tempo de prender o homem dentro da loja até a polícia chegar”, explica.
Os lojistas, contudo, são apaixonados por times rivais no futebol: Jean é flamenguista e Francisco é torcedor do Fluminense. Jean lembra que ficou “traumatizado” com a disputa de 1995, do Fla-Flu, no Maracanã. “Fiquei insistindo com o Francisco para a gente ir assistir, até que ele aceitou. A gente conseguiu uma passagem e o ingresso do jogo de última hora e fomos para o Rio de Janeiro. Mas aí, o Flamengo perde de 3 a 2 para o Fluminense com o gol de barriga do Renato Gaúcho”, lamenta.
Francisco se lembra do episódio. “Eu não queria ir, porque duvidava da vitória do Fluminense. No fim, o Jean voltou meio triste depois da vitória do Fluminense, mas mesmo assim, a gente se divertiu bastante na viagem”, destaca. O proprietário da Casa Renato salienta que a amizade, muito além dos momentos divertidos, foi importante para superar os desafios impostos pela vida. “Quando meu pai morreu o Jean meu deu força. Assim como eu estive com ele na morte da mãe dele. É sempre assim. Nesses momentos uma pessoa pode conversar com o outro, desabafar”, complementa.
Parceria
A parceria entre os comerciantes da quadra não se restringe aos lojistas históricos da 308. Valéria Soares, 61 anos, da loja Tribalistas, chegou em 2020, mas se sente bem recebida e é participativa nos grupos dos proprietários. “Vim para cá (308 Sul) por causa da pandemia, que obrigou muita gente a fechar suas lojas e bagunçou as finanças das pessoas. Antes, a Tribalistas ficava dentro de um shopping. E muda bastante ser uma loja de rua, porque aqui a gente se une para se ajudarem, por exemplo, na questão de segurança”, observa.
Valéria detalha que os lojistas possuem um grupo no WhatsApp para se comunicar e organizar diversas ações na quadra comercial. “Quando é época festiva, de Natal, por exemplo, nos preparamos para decorar a quadra e deixar tudo bonito, cada um colaborando de uma forma. Há um engajamento muito grande entre todos, de ajuda. E com o tempo, todo mundo vai conversando, formando amizades, compartilhando um pouco de si com o outro”, expõe.
Na década de 1970, recebi um casal de amigos equatorianos. Fizemos um tour pela cidade. Foi um fim de semana de visitas, idas e vindas. Quando foram embora, perguntei-lhes o que tinham achado da nova capital. A resposta:
— Deu a impressão de uma cidade construída por extraterrestres, que a plantaram aqui e voltaram pra casa.
Queixaram-se da falta de gente nas ruas, falta de movimento, falta de alma. Se o casal voltasse hoje a Brasília e passasse um fim de semana aqui, veria que a capital dos brasileiros mudou. O brasiliense descobriu o lazer ao ar livre. A urbe ganhou vida.
Como não é uma ilha sem pai nem mãe, reflete os problemas das grandes cidades nacionais. Tem violência, desemprego, corrupção, segregação social, congestionamento de trânsito, filas em hospitais, transporte público deficitário.
Ela também projeta qualidades que enchem os brasileiros de orgulho. O brasiliense não buzina, respeita a faixa de pedestres, cumprimenta o desconhecido na rua, no elevador, no ônibus ou no metrô. Lê muito, frequenta bibliotecas, zela pelo meio ambiente para manter o ar respirável, as águas limpas e as áreas verdes intocadas.
Multidões vão às ruas. Manifestantes vestem o Eixo Monumental de verde-amarelo no belo exercício da cidadania. Acampam nos gramados do Congresso Nacional ou na Praça dos Três Poderes pra pressionar as autoridades e reivindicar direitos.
Nos feriados e fins de semana, a cidade se transforma. Brasília deixa de ser o corpo com cabeça, tronco e rodas. Ganha pernas. A população lota parques e ruas. Corredores invadem o asfalto.
Ciclistas pedalam em vias exclusivas ou misturados com pedestres que vão e vêm.
O Eixão dos carros vira Eixão do lazer. Gente pequena e gente grande enchem o domingo de cores, vozes e odores. Crianças correm, gritam, jogam bola, puxam carrinhos e passeiam cachorros. Skatistas se equilibram em voos que desafiam a gravidade.
Cadeirantes circulam, vendedores negociam, artistas se exibem, olhares se encontram. A capital dos brasileiros traz pras ruas seu patrimônio mais precioso — as pessoas. O casal equatoriano tem de voltar pra Brasília.
O professor aposentado de arquitetura da Universidade de Brasília (UnB) José Carlos Coutinho chegou a Brasília em 1968, com 33 anos, a idade de Cristo. Podia ser uma crucificação vir morar num lugar ermo, mas foi uma ressurreição. Veio de Porto Alegre para dar um curso de seis meses e nunca mais voltou, tornou-se um brasiliense de corpo e de alma. Ele é uma das figuras mais elegantes, distintas e admiradas da cidade. Frequenta os principais eventos culturais de Brasília e o amigo Vladimir Carvalho espalhou a versão de que ele já foi visto em três lugares ao mesmo tempo. Nesta entrevista, ele fala sobre a singularidade das relações de vizinhança, os lugares encantadores e as ameaças ao futuro de Brasília.
Antigamente, as pessoas não ficavam em Brasília nas férias e, quando podiam, nem nos fins de semana. Como cidade rompeu os estereótipos e passou a criar uma identidade?
Existem os hóspedes da cidade, mas a cidade cresceu muito e tem um contingente que permanece e abraçou a cidade. Quer sossego, recolhimento. E Brasília tem muitos lugares amáveis e acolhedores. Eu, por exemplo, não sinto falta nenhuma de sair da cidade.
Que lugares considera encantadores em Brasília?
Gosto muito do Pontão, dos parquinhos de entrequadras. Neste momento, estou na Praça das Carpas na 308 Sul, não existe isso em lugar nenhum. O que me encanta é a juventude, as crianças brincando, as mulheres passeando com seus cachorros. Acho encantador. O contraste entre as vidas que estão acabando e as que estão se iniciando. Hoje, há muitos programas atraentes na cidade. Ontem, fui à Escola de Música assistir a uma Missa de Bach, executada por um coral e orquestra. São aqueles momentos em que Brasília parece uma cidade e uma cidade civilizada. Tem bons cinemas, boa música, bons filmes. O Parque da Cidade é muito bonito.
Que lugar recomendaria para uma visita?
Recomendo ir até a Pedra Fundamental de Brasília, próximo a Planaltina. A maioria das pessoas nunca foi lá. Tem um horizonte de 360 graus, ali, você se sente senhor do mundo. O Lago não é só interessante no Pontal. Digo às pessoas que elas não se dão conta de que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza. Parece mentira que quase ninguém conhece o criador do Lago Paranoá. Foi uma pessoa que veio do Rio de Janeiro na Missão Cruls, chamado Auguste Glaziou. Não tem nenhuma uma homenagem no espaço urbano que lembra a sua existência. Está na hora celebrar Joaquim Cardozo (Joaquim Maria Moreira Cardozo foi um engenheiro estrutural que ajudou Oscar Niemeyer, além de ser poeta, contista, dramaturgo, professor universitário) ou Glaziou. Não precisa ser nada muito grandioso, bastava fazer um monumento. Gosto da Ponte do Arcos, que tem uma prainha deliciosa, bem popular, com acesso de ônibus para as pessoas simples fazerem piqueniques ou nadar. Se há algo popular, é lá. Sou um observador social, mais do que ver, gosto de observar e imaginar o que se passa com aquelas pessoas.
Como vê essa história de que Brasília não tem esquinas e as pessoas não se encontram?
Isso virou piada, não se pode reduzir as singularidades de Brasília. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar. Tenho um grupo de amigos que, todas as sextas, marca um ponto para se encontrar. Tem a Banca da Conceição, eu brincava com ela: “Você criou uma nova esquina de Brasília”. O habitante da cidade é muito criativo. A nossa obrigação é orientar para que seja para uma solução respeitosa do projeto urbanístico da cidade.
Brasília foi pensada para as pessoas usufruírem os espaços públicos, onde os vizinhos pudessem ter uma interação entre eles e as áreas ao redor. Essa ideia de Brasília persiste ainda hoje?
Criar um espaço urbano para permitir interações entre os que mora na mesma área não é invenção do Lucio Costa; é uma ideia tirada da sociologia urbana e do urbanismo americanos. A proposta era reproduzir em área pequena as relações de um lugar interiorano. Cada unidade deveria abranger em torno de 2 mil habitantes, com comércio, locais para lazer e escola. Mais do que local de ensino, ela é concebida como local de convívio. Muitos pais se conheciam em função das crianças. Isso funcionou durante algum tempo. Acontece que a população envelhece, as crianças se tornaram adultas e moram em outros lugares. Há um processo de transformação. Hoje, é preciso romper a barreira das relações virtuais. Algumas vezes, as praças estão vazias porque as pessoas estão na frente dos notebooks ou dos celulares, conversando com alguém da Finlândia. Isso é perigoso. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos constatou o declínio no QI da humanidade, um emburrecimento da humanidade por se fechar nos mundos virtuais.
Os clubes de unidade e de vizinhança têm um papel importante nessa mistura de gente vinda de várias regiões do país. Essa célula urbana deu frutos?
Apesar de tudo, as unidades de vizinhança completas das quadras 108, 308, 107, 307 formam esse quarteto importante, pois têm o jardim da infância, a escola primária e escola secundária, com a proposta de ensino em tempo integral, concebido por Anísio Teixeira. Tem igreja, cinema, restaurantes, comércio e clube. O clube, que antes atendia a população moradora, se tornou um equipamento como os outros, que acolhe pessoas de todos os lugares. Mesmo assim, é um equipamento agregador. É útil, trabalhei no Instituto do Patrimônio Histórico e promovi o tombamento das unidades de vizinhança mais completas. O Oscar começou a jogar basquete em um desses clubes. São equipamentos essenciais, mesmo que sofram um processo de transformação inevitável.
O que se perdeu e o que se evoluiu das ideias de Lucio Costa para a capital?
Eu acho que mais do que a Esplanada e a Praça dos Três poderes, a Unidade de Vizinhança é o ponto alto do Plano Piloto de Lucio Costa. Só lamento que seja privilégio de 10% da população de Brasília. Por que não ser extensiva das cidades satélites? Houve um empobrecimento da administração de Brasília que depauperou as propostas iniciais. Chegou haver um deputado que pediu a transformação das superquadras em condomínios fechados. É um absurdo, a ideia da superquadra é a de espaço público transitável em todas as direções. O piloti é um espaço público. Você atravessa o prédio, são graus de liberdade total do solo.
“Digo às pessoas que elas não se dão conta que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza”
Vemos nos anos anteriores à pandemia a volta das pessoas às áreas públicas da cidade, carnavais de rua, piqueniques e eventos de toda natureza… É esse o DNA de Brasília?
Acredito que sim, a tendência das pessoas é ocuparem os espaços públicos. Gosto muito do Setor Comercial Sul, é bonito ver a travessia da população trabalhadora. Os espaços dos shopping centers são expressão do enclausuramento da vida pública. Morei algum tempo na Inglaterra e visitei um shopping-center que era agradabilíssimo no início. Era unidade fechada, climatizada, com jardim e canto dos pássaros. Mas, depois, percebi que o jardim era artificial, as árvores eram de plástico e os cantos eram gravados. Quer dizer, estávamos no admirável mundo novo. Não tem nada a ver com o plano de Brasília, que contempla uma escala bucólica maravilhosa.
O antropólogo James Holston, autor de Brasília: Cidade modernista, disse que a cidade era triste. Como percebe as ideias dele?
Olha, conheci o James Holston. Ele chegou a Brasília com ideias prévias e não encontrou a Brasília que imaginava. Em vez de rever suas ideias, passou a negar Brasília. Lamentava, por exemplo, o tipo de vegetação das superquadras, pois ficou muita alta e ocupava o espaço dos edifícios. Mas eu acho que isso é uma sorte: tem edifícios que precisam de árvores bem altas para formar uma cortina verde que os proteja do sol e do barulho.
Como vê o futuro de Brasília? Não existe uma séria ameaça de que a escala bucólica da cidade e a qualidade de vida sejam comprometidas pela concepção rodoviária dos governantes?
Concordo inteiramente, haja vista a macarronada que fizeram no Sudoeste, invadindo o Parque da Cidade. É uma mentalidade rodoviarista. Está na hora de pensar a cidade com uma outra lógica de transportes. Já estão falando em duas novas pontes e em uma avenida interbairros no Lago Sul. Não são apenas soluções técnicas, são soluções financeiras. São obras de que os empreiteiros gostam muito. Os beneficiados não serão os motoristas, mas, sim, os empreiteiros e as imobiliárias. Sou pela simplificação do trânsito e pela primazia ao transporte coletivo. Não tem maior absurdo, a lógica seria os carros diminuírem de tamanho para ocuparem menos espaços. Mas o que a gente observa são veículos cada vez mais gigantescos, cada vez mais parecidos com ônibus individuais. Falta bom senso e políticas públicas. Esse é o verdadeiro sentido da política: estimular as boas tendências.
“Essa história de que Brasília não tem esquinas virou piada. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar”