Moradora do Lago Norte resgata gatos abandonados com apoio de vizinhos

Texto: Arthur de Souza

Solidariedade com os gatos
Cilene Maria Camargo faz parte do grupo de vizinhos que cuidam de gatos abandonados no Condomínio Privê no Lago Norte | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Mesmo tendo a fama de ser um animal solitário e que não é muito adepto ao carinho, os gatos também podem ser responsáveis por unir uma vizinhança, e a história de Cilene Maria de Camargos, 56 anos, moradora do Lago Norte, se encaixa como um desses exemplos. A servidora pública conta que sempre teve paixão por felinos, de modo geral. Contudo, foi em 2005 que ela passou a ter um olhar diferente para os gatinhos. “Fui para Palmas passar o carnaval na casa de uma irmã, e minha afilhada ajudou uma filhote. Só que lá, ninguém gostava de gatos, então acabei trazendo para Brasília”, comenta.

Na época, Cilene morava na Asa Norte e lembra que fez seu primeiro resgate um ano após adotar o filhote que trouxe de Palmas. “Só que os dois não se deram muito bem e tive que arrumar uma doação, que também também foi um sucesso”, revela. “A partir daí, nunca parei. As coisas foram acontecendo gradativamente e, quando percebi,  estava com uma ‘gatoeira’, resgatando gatos em vários locais. Comecei a seguir alguns deles, para saber se eram mansos, se tinham donos ou onde se escondiam, era diário”, detalha a servidora pública.

Após mais de 15 anos fazendo o trabalho na Asa Norte, Cilene se mudou para o Setor de Mansões do Lago Norte, onde o projeto se manteve. “Lembro-me que, ao chegar, alguns vizinhos já alimentavam e cuidavam de um ou outro gato, porém, a população felina cresceu muito rapidamente, pois eles não eram castrados. Eu me vi morando em uma rua com uma colônia de gatos em pleno crescimento”, conta. Foi quando ela conheceu uma vizinha, chamada Dalva, que fazia o trabalho no local. “Começamos uma parceria e amizade que proporcionou o resgate de dezenas de gatos e algumas ninhadas pegando com as mãos. Entre maio de 2021 e abril de 2022, realizamos 32 castrações, entre adultos capturados e filhotes em lar temporário”, destaca.

Elo fundamental

A nora de Dalva, Camila Martins, 40, também é vizinha de Cilene e, assim como a sogra, ajuda no projeto. Ela conta que, mesmo antes de a servidora pública chegar, havia um trabalho desenvolvido, que começou quase da mesma forma que o da Asa Norte. “Uma gata apareceu com o rabinho cortado e infeccionado. A gente a pegou, minha sogra colocou antibiótico no leite, foi amansando e foi tratando essa gata, até fazer uma cirurgia para tirar a parte que estava comprometida”, lembra. “No que a gente levou ao veterinário para fazer o procedimento, descobrimos que ela estava prenha. Foi feita a cesária, tirou todos os gatinhos e um dos fruto dessa mãezinha que a gente resgatou, está comigo atualmente”, comenta.

Solidariedade com os gatos
Com a amiga Camila Martins e os bichanos: parceria e afeto. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Depois da mudança de Cilene, a administradora diz que o projeto ficou ainda mais robusto. “A união com a Cilene nessa iniciativa foi fundamental, porque a minha sogra começou cuidando primeiro de um gato, aí depois viraram dois, três e, de repente, tínhamos dez gatos”, enumera. “Criamos um grupo com moradores no WhatsApp e lá a gente divulga fotos, presta contas e faz balanço de quantos gatinhos foram resgatados, castrados, além da quantidade de ração que está sendo comprada”, detalha Camila.

Muito a ser feito

Apesar das parcerias, Cilene e Camila contam que a adesão de outros vizinhos ao projeto ainda está mais concentrada no ‘virtual’. “Quem realmente põe a mão na massa é a Cilene e minha sogra. Eu ajudo financeiramente e ajudo quando eu posso nas ninhadas de pequenininhos, para cuidar. Infelizmente, a união presencial ainda é pouca”, confessa Camila. Além disso, Cilene comenta que, no decorrer desses meses, elas têm enfrentado muitas dificuldades, como a resistência da comunidade. “Divulguei alguns casos de resgate no grupo do condomínio e alguma ajuda apareceu, não suficiente ainda para 100% das despesas”, lamenta.

Solidariedade com os gatos
Depois de capturados, os bichinhos são encaminhados a adoção |Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Mesmo assim, a servidora pública comemora que, por meio da doação de mais de 20 moradores, conseguiram que muitos gatos fossem castrados em um curto espaço de tempo. “No momento, ainda temos dois gatos adultos que precisam ser resgatados para castração, contudo, é um número bem mais fácil de trabalhar”, diz. “O trabalho é árduo, incansável e acredito que, divulgando cada vez mais essas ações solidárias aos animais que vivem em situação de abandono, as pessoas vão se sentir motivadas a participar, olhando para o lado, para as ruas, para os estacionamentos e que ajude ou inicie no cuidado dos animais”, espera Cilene, afirmando que, quem estiver interessado em ajudar de alguma forma — seja com doações ou fazendo uma adoção —, pode entrar em contato através do telefone 61 981308483.

De olho no futuro

Cilene diz esperar que essa ‘corrente do bem’ tenha cada vez mais elos. “Em todos os locais existem animais abandonados e a solução para ajudá-los é a participação de todos”, pondera. E é justamente o que Camila tem feito na própria casa. Ela e o marido amam os animais e estão passando esse carinho para a filha. “Sempre que a gente via um cachorrinho na rua ou um gatinho a gente procurava ajudar. Ela cresceu vendo a gente fazer e desenvolver esse hábito, o amor pelos bichos, então, foi um movimento natural. Hoje em dia, ela faz porque ama”, conta.

Solidariedade com os gatos
Cilene dá alimentação e monitora os animais | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Apesar de ter pouco tempo — pois trabalha cerca de 12h por dia —, ela sempre tenta ajudar quando está com a filha. “Onde a gente encontra um bichinho em situação de abandono, procuramos socorrer, tirar uma foto para divulgar, dar comida, água, essas coisas”, complementa Camila.

Solidariedade com os gatos
Com a pandemia, o número de animais abandonados aumentou no DF | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Pianista norte-americana encanta vizinhos com música clássica no Lago Sul

Pedro Almeida*

A musicista convidou o amigo havaiano Patrick Yim para acompanhá-la ao violino. Arquivo pessoal
A musicista convidou o amigo havaiano Patrick Yim para acompanhá-la ao violino | Foto: Arquivo pessoal

Onde as palavras falham, a música fala. Há seis meses em Brasília, a pianista clássica norte-americana Jennifer Heemstra, que ainda não domina o português, encontrou nas teclas do piano uma forma de dialogar com a nova vizinhança. De portas abertas, Jen recebe os vizinhos para concertos intimistas na própria sala de estar, no Lago Sul.

Nascida na cidade de Grand Rapids, em Michigan, nos Estados Unidos, Jennifer Heemstra estudou piano na Universidade Estadual do Michigan e, posteriormente, concluiu um mestrado em música no Cleveland Institute of Music. Como solista e musicista de câmara, se apresentou nos Estados Unidos, Europa, Ásia, Emirados Árabes e, agora, no Brasil. O amor pela música, evidente na devoção acadêmica, se alinhou, também, ao interesse por causas sociais. Além das teclas brancas e pretas, Jennifer comanda duas ONGs: a Kolkata Classics, que atua em Kolkata, na Índia, com aulas de música clássica para crianças e acesso à saúde voltado para mulheres vítimas de tráfico; a Pitch Pipe Foundation leva a melodia para os veteranos de guerra dos Estados Unidos.

Recém-chegada a Brasília, a artista se diz apaixonada pela beleza da cidade e pelo frescor do ar da capital. As plantas exóticas em meio ao concreto e o calor e receptividade dos moradores a encantaram logo na chegada. Nos primeiros dias de casa nova, ela foi convidada pelos vizinhos a assistir uma apresentação musical natalina no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A generosidade do convite e a musicalidade dos brasileiros tornaram aquela experiência impactante e um marco do novo começo.

Jen viu as ondas sonoras emitidas pelo piano dela se dissiparem nas barreiras invisíveis da pandemia. As possíveis praças e salas de concerto da cidade estavam fechadas. Diante da impossibilidade de se apresentar, a pianista resolveu reinventar a própria sala de estar. Em posse de alguns equipamentos de show, Jen montou um cenário profissional em casa, centralizou o piano na sala e convidou o amigo Patrick Yim, que veio do Havaí para acompanhá-la ao violino.

Concerto na casa de Jennifer Heemstra: uma ação cultural para reunir a comunidade. Arquivo pessoal
Concerto na casa de Jennifer Heemstra: uma ação cultural para reunir a comunidade | Foto: Arquivo pessoal

Os vizinhos foram, então, convocados para presenciar o novo projeto. Uma hora antes do horário marcado, o jardim estava aberto com drinques e petiscos para que Jen conhecesse os novos amigos de rua. Se o inglês dos moradores, por vezes, não era o melhor, a música serviria de linguagem universal. E a conversa com notas rendeu de forma harmoniosa. Em duas semanas, a dupla se apresentou seis vezes. Em um segundo momento, Jen promoveu mais um ciclo de apresentações com o duo de violinistas Luciana Caixeta e Ricardo Palmezano.

Para completar, fez uma versão da apresentação voltada somente para as crianças do bairro. Atualmente, com a melhora da pandemia, a artista já voltou a se apresentar em salas de concerto, mas mantém uma periodicidade de uma ou duas apresentações por mês em casa para reunir os, agora, amigos da rua.

Uma das moradoras da rua é a brasiliense Núbia Holanda Cavalcante, taquígrafa da Câmara dos Deputados. Ela relata que gosta de receber bem os novos vizinhos. Ao ver o marido de Jennifer, que chegou primeiro, fazia questão de cumprimentá-lo. Nas conversas ao portão, ele destacava as qualidades da esposa musicista, que estava por vir.

Burocracia

Quando Jennifer chegou, Núbia foi conhecê-la. A vizinha e o marido convidaram o casal de estrangeiros para entrar e bater um papo. A visita rendeu ótimas conversas e deu início à amizade. Antes mesmo de Jennifer anunciar o primeiro concerto para a rua, Núbia teve o privilégio de conseguir ouvi-la ensaiar da própria casa. Quando o convite veio, foi impossível recusar. O emocionante concerto cumpriu o papel de unir a rua e quebrar o marasmo pandêmico. Núbia relata se inspirar na força de vontade de Jennifer. A taquígrafa relata que a pianista, apesar das adversidades burocráticas brasileiras e dos diversos “não” recebidos, não impedissem o projeto.

Jennifer e Núbia provam que uma vizinhança unida é aquela que dialoga. Seja em qual língua for; inglês ou português. Contanto que os sons vibrem pelo ar, há a possibilidade de amizades incríveis. No caso da vizinha na quadra 26 do Lago Sul, fala-se música.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Moradores do Noroeste se unem para resgatar cães e gatos na rua

Renata Nagashima

Carlos Vieira/CB/D.A.Press
Stephanie Cunha (D) e Fernanda Nogueira: ação solidária no Bazar de Vizinhas

Engana-se quem acha que os vizinhos só se reúnem para fazer festas ou confraternizar. No Noroeste, os moradores dedicam esforços durante todo o ano para amparar animais de rua que foram abandonados ou esquecidos por ex-moradores. O excesso de cães e gatos deixados para trás nas ruas é uma realidade presente no setor e fez com que surgissem verdadeiros guardiões dos pets, que abraçaram a causa animal e lutam pelos direitos desses bichos.

No final de 2016, uma desocupação em uma área de invasão no Noroeste tirou 77 famílias de catadores de recicláveis que viviam irregularmente no local. As pessoas foram embora, mas os animais que ficavam no local, foram deixadas para trás e passaram a perambular pelas ruas do setor. “Esses bichinhos ficaram sozinhos no meio do mato e começaram a vir para cá. Então, o Noroeste ficou com matilhas de animais pelas ruas”, conta Stephanie Cunha, 55 anos, moradora do setor há nove anos.

Tocadas pela situação dos animais, algumas moradoras se juntaram para ajudar. Elas foram resgatando cães e gatos aos poucos. Os bichos eram castrados e depois levados para abrigos. “A demanda foi aumentando, mais vizinhos foram se unindo para apoiar a causa e assim o grupo Resgate Noroeste nasceu, pequenininho e entre moradores daqui mesmo. E cada vez mais crescendo o número de cachorros e gatos. Começamos a nos estruturar, continuamos a resgatar e ano passado a gente virou ONG”, relata Stephanie, que hoje é vice-presidente da Associação de Proteção Animal Resgate Noroeste.

Desde que o grupo se formou, 450 cães foram retirados das ruas e encaminhados para adoção. Quando resgatados, eles são levados para uma clínica parceira do Resgate, onde passam por um check-up, fazem todos os exames de sangue e imagem. Estando tudo certo, os animais são levados para um hotel parceiro, no Gama, fazem uma quarentena, em seguida são castrados e vacinados. “Depois desse processo nós fazemos o trabalho de divulgação nas nossas páginas para que eles sejam adotados e deem lugar para mais animais saírem das ruas”, explica.

Reprodução/Resgate Noroeste
Animais são resgatados e colocados para adoção pela ONG Resgate Noroeste | Foto: Reprodução/Resgate Noroeste

Para financiar as ações, os voluntários promovem ações como vendas de quentinha e bazar beneficente, que atualmente funciona em uma loja cedida por um vizinho que se solidarizou com a causa. “Os próprios vizinhos doam as coisas que vendemos no bazar. Tudo isso aqui é uma união de esforços”, completa Stephanie.

Além de ajudar os animais, o grupo também serviu para unir e fortalecer os laços de amizade entre os vizinhos. “Isso fez com que as pessoas se conhecessem, criamos muitas amizades. Aí todo mundo desce um determinado horário, os cachorros brincam, as pessoas se confraternizam. Eu acho que isso também movimentou, criamos grupos de mensagens, as pessoas conversam e trocam mais ideia”, afirma.

Uma das amizades que Stephanie fez foi com a professora, Fernanda Nogueira, 38, que atualmente cuida do bazar solidário com a vice-presidente da ONG. E ela garante que o que mais a atraiu para morar no setor foi a quantidade de projetos e a aproximação entre os vizinhos. “A gente organiza eventos, bazares, a gente ajuda cachorro, ajuda família carente e, ao mesmo tempo, fortalece o vínculo entre os vizinho”, diz.

A professora compara o Noroeste com uma cidade do interior. “Aqui o povo é muito bairrista. Então, tem o grupo do bar que a gente pergunta ‘quem quer tomar uma hoje?’ e já acha uma companhia. A gente desce sozinho para o bar e encontra a galera, não precisa sair de casa acompanhado necessariamente. Temos  que ter esse vínculo, para qualquer coisa tem um vizinho disponível para sair com você”, destaca Fernanda.

Artigo: Brasília, cidade da esperança

Lia Zanotta Machado | Professora emérita de antropologia da UnB

Webert da Cruz/Divulga??o
Grupo Seu Estrelo. A quinta Roda…: Camila Oliveira e Tico Magalhães como personagens dos mitos do Cerrado. | Foto: Webert da Cruz/Divulgação

Brasília: centro político ou cidade habitada e vivida? Centro político parece casar bem com os estereótipos de cidade planejada e fria, cidade monumental, sem esquinas e sem socialidade. A cidade vivida pode se tornar invisível para os que aqui não moram em Brasília. Brasília, ao longe e de longe, se torna sinônimo do governo instalado, amando-a ou rejeitando-a, sem sequer dar-se conta que o projeto se tornou uma cidade e já completa 62 anos. Planejada nas linhas de uma cruz concebida por Lucio Costa, é vista como o desenho de um avião, do alto da Torre de TV, com suas duas grandes asas: a Asa Norte e a Asa Sul unidas verticalmente pelo corpo do avião: o chamado Eixo Monumental.

O projeto original de Brasília previa apenas 500 mil habitantes no ano 2000. Incluía Plano Piloto e arredores que sequer previam moradia para os candangos e pioneiros que construíram Brasília. Muito menos que ela se constituiria em importante polo de atração de migração. Brasília possui uma população estimada total de 3.094.325 de habitantes, o que faz da capital a terceira maior cidade do país, atrás de São Paulo e Rio de Janeiro.

Nem cruz, nem avião. Para os habitantes de Brasília, as linhas que demarcam Brasília são hoje outras: são as linhas quadradas do contorno do Distrito Federal que abriga suas 33 regiões administrativas. O Quadrado, ou melhor: o Quadradinho é cantado em verso e prosa. O Quadradinho é afeto. É viver a cidade. “Derrubar muros e erguer pontes, unir pessoas e lugares” dentro do “quadradinho”, é um mote que antagoniza e enfrenta a anterior percepção de “Brasília como Plano Piloto cercado de cidades satélites”. É uma percepção abrangente, democrática, diante de uma cidade que cresce sem parar por todos os lados. Um “quadradinho todo num só” é possível?

A inovação é a tecla que articula a percepção de Brasília projeto e Brasília cidade que cresce e se expande. Os meios para isso seriam e devem ser muitos. Necessário mais infraestrutura urbana, mais transportes e cada vez mais cuidado com a sustentabilidade e meio-ambiente.

Contudo a construção da identificação dos brasilienses com Brasília como um todo, com o seu “quadrado”, se dá pelas redes de sociabilidade: redes de vizinhança que se constroem em espaços próximos entre oriundos de diversas origens do Nordeste ao Sudeste. E pelas redes sociais de parentes que atravessam e articulam diversas e diferentes regiões administrativas. Mas não só.

De quantas origens podemos falar sobre os habitantes de Brasília? Hoje, de acordo com as estimativas do IBGE, estamos pela primeira vez com maioria simples de nascidos na cidade versus migrantes. Em 2011, 51,8% eram migrantes. Brasília é formada por gente de todos os lugares, todas as idades e de muitas gerações. É uma mistura de sotaques e culturas do Nordeste, Sudeste, Norte e Sul do país e de estrangeiros.

A identificação abrangente de Brasília se vem fazendo, não só pelas redes sociais, mas pela produção cultural musical e artística, chamada incessantemente para pensar e construir a percepção de Brasília.

Renato Russo é pioneiro. Canta e conta Brasília em seus diversos pontos e locais, muito além do Plano Piloto. Produzir memória cultural significa em Brasília, produzir memórias e sotaques das mais diversas partes do Brasil, mas sempre com inovação. Seu Teodoro havia trazido o Boi-Bumbá do Maranhão para Sobradinho e para a Universidade de Brasília em 1962 e aí permanece. Chico Simões, trouxe o Mamulengo Presepada em 1985 para Taguatinga e Tico Magalhães trouxe para Brasília em 2004 o Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro (foto), que criou o mito do Calango Voador com personagens do Cerrado e do Planalto Central a partir do maracatu e o cavalo marinho de Pernambuco. Entre tantos outros. A inovação e a criatividade se impõem. Porque há que se mesclar, articular diversidades e produzir sincretismos.

O Clube do Choro busca introduzir a brasilidade e sua diversidade para Brasília. Foi fundado em 1977, mesmo ano que eu chegava em Brasília como professora de antropologia da UnB. Sua fundação se deu na casa da premiada flautista e também professora da UnB, Odete Ernest Dias, tornando-se seu primeiro presidente o citarista Avena de Castro. Em 1993, foram retomadas as atividades do Clube do Choro, conseguindo novo espaço projetado para o Clube e criada a Escola Brasileira do Choro. Hoje, há já 15 anos o grupo Samba Urgente nascido dessa escola, inova e afirma que a cidade de Brasília é muito mais. Não é uma cidade de político. É uma cidade vivida, solidária, vivaz, esperançosa e construtora do futuro. Uma cidade síntese cultural como já dizia meu amigo e grande antropólogo Roque Laraia.

Paixão pela cultura gera amigos de luta e de poesia na cena artística do DF

Edis Henrique Peres

Edis Henrique Peres/CB/DA Press
Vicente Sá (E) e Renato Matos, são amigos e compartilham entre si músicas brasilienses | Foto: Edis Henrique Peres/CB/D.A. Press

Unidos pelo amor à arte, artistas plásticos, poetas e produtores culturais encontraram no companheirismo não apenas um vínculo de amizade sólida, mas também um laço familiar. “Uma relação que foi se construindo e se fortalecendo ao longo do tempo e que hoje faz com que sejamos mais que amigos, somos praticamente irmãos”, define Lúcia Leão, 66 anos, coordenadora do Espaço Cultural Leão da Serra. A amazonense deixou o estado natal para ir estudar no Rio de Janeiro, mas em 1977 se mudou da cidade carioca e veio construir a vida em Brasília. Produtora cultural, ela conta que logo que chegou à capital  conheceu o artista plástico Renato Matos, 70, que nos anos seguintes se tornaria um grande amigo. O também cantor e compositor lembra do começo dessa parceria com orgulho: “Foi ela (Lúcia) que produziu meu primeiro disco. Uma história antiga, mas uma história maravilhosa”.

As idas e vindas dessa amizade uniu um terceiro artista ao grupo: o marido de Lúcia, o poeta Vicente Sá, 65. “Eu conhecia Renato de vista, mas ainda muito pouco. Depois produzimos alguns projetos juntos e, por causa da Lúcia, nossa relação foi se estreitando. Então aconteceu que há cerca de nove anos ele precisava de um local para montar seu ateliê e tínhamos um espaço na propriedade. Agora ele é nosso vizinho”, relata. “Como não é muito longe uma casa da outra, a gente costuma se encontrar para conversar no meio do caminho”, brinca Vicente.

A afinidade garante, inclusive, colaborações em trabalhos artísticos. “Temos músicas que escrevemos juntos, eu e o Renato. É um trabalho que fazemos constantemente. De vez em quando, outros amigos vêm até aqui, de 15 em 15 dias, para compormos algo, em um exercício de produção. Tem dia que dá certo, outros que não tem resultado. Mas com essa prática já temos umas dez músicas escritas. Outras vezes, eu também vou ao ateliê do Renato ver os quadros em que ele está trabalhando. Somos grandes parceiros do trabalho um do outro”, garante Vicente.

Luta pela cultura

Natural de Pedreira, Maranhão, Vicente Sá chegou em Brasília aos 11 anos de idade, em 1968. “Ainda era ditadura. Meus pais vieram para cá porque meu irmão mais velho passou na UnB (Universidade de Brasília) então todo mundo veio junto. Sou o mais novo de 19 irmãos. No fim, Brasília influencia muito o que produzo, porque praticamente me criei aqui, morei em várias regiões administrativas e semanalmente publico crônicas em minhas redes sociais sobre a cidade”, cita.

Lúcia conta que por muito tempo disse que Brasília era uma cidade sem avós. “As pessoas vinham para cá separadas da família, sem ter os parentes mais próximos morando aqui. Então quando você precisava de alguma coisa, que seriam situações que geralmente pedimos ajuda para a nossa mãe, irmã, ou algum familiar, aqui em Brasília contávamos com nossos amigos. Então são esses amigos que vão se tornando essas pessoas com laços profundos, de relações muito sólidas. Os amigos tem que contar com os outros para criar essa rede de solidariedade, e não somente porque somos artistas e enfrentamos desafios parecidos, mas porque somos gente”, defende.

“Uma relação que foi se construindo e se fortalecendo ao longo do tempo e que hoje faz com que sejamos mais que amigos, somos praticamente irmãos”

Lúcia Leão, coordenadora do Espaço Cultural Leão da Serra

Maestro Cláudio Cohen divide paixão pela música com vizinho na Asa Sul

Irlam Rocha Lima

 Claudio Cohen ( azul ), maestro da Orquestra Sinfonica do Teatro Nacional e Paulo Roberto Nogueira, servidor público aposentado
Claudio Cohen (azul), maestro da Orquestra Sinfonica do Teatro Nacional e Paulo Roberto Nogueira, servidor público aposentado | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

A intensa atividade que desenvolve, como maestro da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, inviabiliza o violinista Cláudio Cohen manter uma agenda social. Ele se permite, no final de semana, fazer caminhada, tomar banho de sol e almoçar no clube que frequenta, sempre com a mulher Fabiane. Por vezes, o casal e o filho Bruno, de 12 anos, vão a algum restaurante próximo de onde moram.

Como os concertos da sinfônica voltaram a ocorrer regularmente, agora às 20h, de terça-feira, no auditório do Museu Nacional da República, Cohen divide o tempo entre o escritório da orquestra, que fica na Biblioteca Nacional, os ensaios no Cine Brasília, e o estúdio que mantém em casa, onde guarda livros, discos, partituras e filmes de concertos, além do violino italiano do século 19, que adquiriu em 1990.

Na sala do apartamento, localizado na 314 Sul, está instalado um piano. Segundo o maestro, quem mais o utiliza é o filho, que está recebendo aulas do instrumento, depois de ter estudado violino. “Bruno, talvez influenciado por mim, pretende levar adiante a carreira de músico”, comenta o pai-coruja. “Ficaria muito feliz se ele viesse se tornar um violinista ou um pianista”. observa.

Pela dedicação, praticamente exclusiva, ao ofício que exerce, sobra pouco tempo para o maestro interagir com os vizinhos do prédio onde mora. “Tenho boa relação com os moradores do bloco, mas não nos visitamos. Quase todos, sabem que sou maestro da Orquestra Sinfônica; e quando, eventualmente, nos encontramos, no elevador ou na garagem, a conversa gira em torno de música”, comenta.

Mas entre os vizinhos há um de quem ele se tornou amigo: o servidor público aposentado Paulo Roberto Nogueira. “Já conhecia o Cláudio, antes de ele vir morar aqui no prédio. Como sempre tive o saudável hábito de assistir aos concertos da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, me recordo dele da época em que era spalla (violinista principal). Mas, só nos aproximamos depois que ele veio morar aqui na 314. A primeira vez que conversamos foi num encontro casual na garagem. A partir daquele dia nos tornamos amigos”, lembra Paulinho — como ele é chamado pelos amigos —, que deixa claro a admiração que tem pelo maestro.

Espectador assíduo

“Depois disso, passei a ser um espectador assíduo dos concertos que o Cláudio rege e procuro conversar com ele depois das apresentações. Como sou leitor do Correio Braziliense, toda vez que o jornal publica alguma matéria sobre a orquestra, compro um exemplar a mais e levo para ele”, conta. “Costumo, também, presentear o pequeno Bruno com objetos referentes ao Flamengo, clube do qual tanto ele como eu somos torcedores”.

Fã, também, de Zé Mulato & Cassiano, Paulinho intermediou junto a Eduardo Araújo, então presidente do Teatro dos Bancários, o show comemorativo dos 40 anos da dupla, acompanhada por uma orquestra, sob a regência de Cláudio Cohen. “Aquela foi uma noite inesquecível, na qual a música sertaneja de raiz e a sonoridade erudita estiveram lado a lado, num concerto que entrou para a história do Teatro dos Bancários; e que vai ficar guardada na memória afetiva das pessoas que superlotaram aquele importante espaço localizado na entrequadra 314/315 Sul”, ressalta.

Embora destaque a simplicidade do amigo, Paulinho vê Cláudio Cohen como um intelectual, “capaz de discorrer com total familiaridade sobre a obra dos grandes mestres nacionais e internacionais da música erudita”, acrescenta.

 

As memórias de Maria do Carmo Manfredini, mãe de Renato Russo

Irlam Rocha Lima

A família Manfredini no apartamento da 303 Sul
A família Manfredini no apartamento da 303 Sul | Foto: Arquivo pessoal

Quando chegou a Brasília, em 6 de março de 1973, Maria do Carmo Manfredini, o marido Renato Manfredini e os filhos Renato Manfredini Jr. e Carmem Teresa Manfredini, inicialmente se instalaram num hotel, na Asa Sul. Logo depois passaram a ocupar um apartamento no Bloco B da SQS 303 — adquirido pelo patriarca da família.

Servidor graduado da presidência do Banco do Brasil, Renato Manfredini, por escolha própria, veio transferido pela instituição para a nova capital. “Estávamos vindo do Rio de Janeiro, onde morávamos numa casa, na Ilha do Governador. Dois anos antes, Renato e eu tínhamos vindo conhecer Brasília. Ficamos encantados com a cidade de grandes espaços, muitas áreas verdes e arquitetura futurista.

Sentimento semelhante tiveram o Júnior (Renato Russo) e Carmem Teresa. Olhando as vias e os prédio pelas janelas, quando entramos no Eixo Monumental, eles ficaram deslumbrados”, lembra Dona Carminha, como, respeitosamente, é chamada, mesmo por quem é próximo dela.

O apartamento, de sala ampla, quatro quartos e outras dependências, foi considerado ideal por todos os Manfredini. Um dos quartos, o ocupado por Renato Russo, se transformou inicialmente num espaço de estudos e, posteriormente, o local de trabalho, além de uma espécie de estúdio, do futuro líder da Legião Urbana. Antes de se dedicar profissionalmente à música, estudou jornalismo no Ceub, chegou a ser repórter da 105 FM (atual Clube FM, dos Diários Associados) e professor de inglês na Cultura Inglesa.

“Enquanto era garoto, o Júnior gostava de andar de patins embaixo do bloco e nos acompanhava quando íamos a restaurantes e à Associação Atlética Banco do Brasil (AABB). Mas depois só queria sair sozinho, para encontrar os amigos em vários locais, principalmente nas fotos, Maria do Carmo mantém no apartamento apenas alguns discos de ouro e platina recebidos por Renato Russo.

Crédito: Reprodução da Internet. Renato Russo, na Banda Aborto Elétrico.
Renato Russo, na Banda Aborto Elétrico | Foto: Reprodução

A matriarca diz que sempre teve ótima relação com os vizinhos, embora não costume visitá-los. “Mesmo quando o Júnior aprontava, eles relevavam”, comenta. Mas deixa claro que entre os moradores do bloco é com Margarida Custódio, moradora de apartamento localizado no piso abaixo do dela, que mantém amizade mais longa e fraternal.

Receitas culinárias

“Somos vizinhas e amigas desde 1975, embora não nos encontremos muito. No período da pandemia, então, ficou ainda mais difícil. Mas, nos falávamos por interfone ou por telefone quase todos os dias, a respeito de assuntos diversos, inclusive sobre receitas culinárias, coisa comum a duas donas de casa, que gostam de cozinhar”.

Viúva de de José Darcy Custódio, também servidor do Banco do Brasil, Margarida Custódio mora no bloco B da 303 Sul desde 1972. Mãe de cinco filhos, só um deles, servidor do Supremo Tribunal Federal, mora com ela. Embora, com alguma frequência, receba a visita dos outros filhos, da nora e dos netos, é com Dona Carminha que mais bate papo.

“Vizinhas, nos tornamos desde que ela veio morar aqui há quase 50 anos. Durante esse tempo todo, nunca tivemos nenhuma desavença. Nos distanciamos um pouco quando ela foi morar com a filha Carmem Teresa num condomínio no Lago Sul. Mas mesmo naquele período, nos falávamos por telefone”, recorda-se Margarida. “Depois que voltou para o bloco, as conversas, quase que diárias, por interfone, foram retomadas. Sempre que faço pão de queixo, levo pra Carminha”, diz, tomando esse gesto prosaico como um elo entre ambas.

O que é moderno e o que é eterno em Brasília? Arquiteto Frederico Holanda responde

Severino Francisco

Brasília Moderna e eterna
Frederico Holanda: ele é professor emérito da UnB e pesquisa Brasília há mais de 50 anos. Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

Arquiteto e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Holanda chegou a Brasília em 1962, em um Fusquinha, envolvido nas nuvens de poeira. Teve a impressão de entrar em uma cidade intergaláctica. Nunca mais parou de pesquisar a cidade. Os elogios de Frederico a Brasília têm credibilidade, porque ele é um crítico agudo do que chama espaços de exceção, espaços que isolam funções da cidade em Brasília. E, nesta entrevista, ele mostra como Brasília é o modernismo transformado em cidade, espicaça os espaços de exceção, sustenta que o Itamaraty é o prédio mais importante da história da arquitetura e fala do que é moderno e do que é eterno no desenho de Lucio Costa.

Brasília é o modernismo transformado em cidade?

Sim, mas Brasília não é a primeira. Chandigard, projetada por Le Corbusier, na Índia, é de um pouco antes. Mas Corbusier brigou com os indianos, a cidade projetada não é exatamente a que está lá. Eu diria que Brasília é a primeira grande materialização inteira, exaustiva e completa do modernismo transformado em cidade. Os europeus e os norte-americanos têm uma dor de cotovelo do cão por causa disso. Nunca fizeram nada parecido.

O título de um livro seu é Brasília cidade moderna, cidade eterna. O que é moderno e o que é eterno em Brasília?

É um título provocativo, falam que Brasília é a cópia, escarrada e cuspida, da Carta de Atenas, manifesto da arquitetura modernista internacional. Sim, Brasília tem muita coisa da Carta de Atenas, de Le Corbusier: a unidade de vizinhança, os equipamentos públicos próximos da casa, a separação radical do fluxo de veículos da área residencial e a farta disponibilidade de área verde. Tudo está lá. Mas quando Lucio Costa cria a Esplanada dos Ministérios e as quatro escalas (monumental, residencial, a gregária e a bucólica), ele se afasta dos princípios da Carta. A famosa escala monumental era um anátema para os arquitetos modernos porque eles equacionavam esse conceito com fascismo e nazismo. Lucio Costa manda às favas esse tipo de preocupação e cria um espaço monumental por excelência, simbólico, que representa não só a ideia de capital, mas a da própria cidade. A gente pode apreciar esse cartão-postal do deck superior da plataforma da Rodoviária ou do mirante da Torre de TV. É isso que faz o link com o eterno.

O senhor formulou o conceito de espaço de exceção para descrever Brasília. Mas, ao longo do tempo, parece que a sua visão se relativizou…

Criei esse conceito durante a minha tese de doutorado. É a ideia que Brasília tem um espaço isolado para as funções da sociedade: a política, a cultura, a moradia. A Esplanada é um penduricalho na cidade, com vista privilegiada pela plataforma da Rodoviária. Não tem a cidade ao redor, como Washington ou o Champs-Élysées. É espaço livre, prédios, galpões e um pouco de embaixadas. A Esplanada é o espaço de exceção por excelência. E por que isso é criticável do ponto de vista ético? Porque isolo um determinado conjunto de práticas e conjuntos sociais que não favorece uma manifestação urbana. O que a gente vê é que tem uma apropriação subversiva nas margens pelo comércio ambulante que “macula” o espaço de exceção, pelo menos nos cinco dias úteis da semana. A minha crítica é do ponto de vista da urbanidade desejável.

Que espaços cumprem essa função?

Gosto de citar a Vila Planalto e o bairro de Copacabana. Você tem uma diversidade de classes sociais, trabalhadores manuais, classe média. É completa no sentido da urbanidade. Você tem toda a diversidade social em um bairro como tem na cidade. No espaço de exceção, só tem barnabé, alguma coisa de cultura no Museu, no Teatro Nacional defunto, nos rituais religiosos na Catedral Metropolitana. Ponto, acabou. Exceto, a pequeníssima subversão dos vendedores ambulantes.

E qual o aspecto que você julga importante no projeto de Lucio Costa para a escala monumental?

Ele resgata a dimensão dos espaços que os estetas chamam do sublime, monumental, é algo que causa assombro. Gosto muito do livro A arte de viajar, do Alain Botton, em que o autor fala sobre o espanto das pessoas em relação aos espaços amplos. Não cita Brasília; cita Versailles, Wasghinton, a paisagem de gelo dos polos, as areias do deserto, as montanhas nevadas, diante das quais não nos sentimos diminuídos ou massacrados, mas, sim, impelidos a realizar o melhor de nós. Isso está na base da explicação do nosso encanto ou assombro ou deleite com os espaços monumentais. Um espaço como a Esplanada dos Ministérios retira da cidade a vitalidade dos espaços públicos. Mas tem o outro lado, a monumentalidade nos causa deslumbramento, respeito, pasmo. O exemplo mais impressionante, que deu um nó em minha cabeça, é o de Teothioacán, no México. A chamada Avenida dos Mortos, construída 300 anos antes de Cristo, é extremamente parecida com a Esplanada dos Ministérios. O centro abriga palácios, templos e edifícios governamentais. Quando bota o pé, você arrepia e chora. É esse arrepio que a gente sente na Esplanada dos Ministérios.

Em discurso, ao receber o título de professor da UnB, você afirmou que o Itamaraty era o prédio mais importante da história da arquitetura. Gostaria de rever a opinião?

Não renego nada, repito o que disse em todos os lugares por onde passo. Para mim, o Itamaraty é edifício mais importante da história da arquitetura, é uma espécie de síntese de todos os aspectos. Primeiro, é um prédio ímpar, não só em relação aos palácios de Brasília, não só pelo concreto aparente. Como ocorre no Palácio do Alvorada, é uma mescla do Oscar dionisíaco com o apolíneo. Tem uma variedade estonteante de espaços no mesmo edifício. Quando você entra no Itamaraty passa pelo vestíbulo, sobe aquela escada solta no ar, passa por um jogo de contrastes que eu nunca vi. Eu me meto a dizer isso porque andei um bocado o planeta. Não conheço um edifício que te surpreenda a cada cinco metros do percurso. Tudo vem junto com uma edificação absolutamente simétrico, com quatro fachadas idênticas, rigorosamente moduladas por intercolunas, erigidas em uma planta quadrada. Por isso, digo que é um edifício clássico, faz esses resgates todos na tradição da arquitetura. O Palácio do Itamaraty é o Parthenon. Ao mesmo tempo, com inovações. Tem uma varanda, que é um espaço tradicional de socialização. Só que Oscar bota a varanda no terceiro piso, com um foco luminoso sobre o jardim de Burle Marx.

O que o caso das mudanças realizadas na Feira Torre de TV exemplificam?

Exemplifica uma visão de cidade extremamente perversa. A cidade se produz pelo que Raquel Solnik chama guerra dos lugares. Foi uma batalha perdida porque, assim como você ia com os seus filhos, a gente ia com os nossos. Os meninos soltando pipa, olhando areomodelo, comendo milho, comprando artesanato. A Feira da Torre se transformou em uma autêntica festa semanal. Fizemos uma enquete, a maioria dos frequentadores vinha das cidades-satélites e subia do Parque da Cidade para a Torre de TV. Eu tenho fotos. Era uma multidão. Essa festa surge muito sutilmente em função do mirante e das pessoas que sobem para ver a torre. Chamam o artesanato, os habitantes, as atividades complementares, as comidinhas regionais. É a sinergia da urbanidade, que se alimenta da diversidade de práticas sociais naquele lugar. Tem o lazer ativo e passivo. Os aeromodelos, as pipas e o patinete. E tem o lazer contemplativo, que é simplesmente olhar o cartão-postal, em uma das vistas mais privilegiadas de Brasília. Era isso junto que fazia o sucesso daquele lugar. E, mais importante que tudo isso, quando fizemos uma enquete na torre qual foi a principal razão? simplesmente ver gente e encontrar pessoas.

E por que acabaram com a Feira da Torre antiga?

É uma visão esteticista e equivocada. O principal argumento é que ela maculava a percepção do monumento projetado por Lucio Costa. É estúpida, não prejudicava coisa nenhuma. A feira do artesanato se beneficiava de toda aquela sinergia. O meu saudoso amigo Alfredo Gastal fez declarações de que a mudança da feira tinha o apoio do Iphan, porque maculava o monumento. Enquete feita por Gabriela Tenório com os feirantes mostrou que, de todos os problemas levantados pelos feirantes, nenhum estava relacionado à localização.

Qual a solução urbanística mais feliz de Brasília?

Eu acho que são as superquadras. Tem uma distinção que é importante fazer e a literatura quase não faz. As superquadras brasileiras não são cópias das superquadras corbusianas. As de Lucio Costa têm 80% de espaços verdes, têm escolas para os moradores. Apesar dessa grande quantidade de espaços verdes, tem uma certa continuidade espacial. Além disso, os prédios de Lucio têm seis andares; os de Le Corbusier têm 16. Na superquadra de Lucio Costa, você sente esse aspecto agradável de estar em um espaço aberto na sua vida cotidiana. Isso faz com que sejam as superquadras sejam extremamente apreciadas pela população. Dos meus 50 anos de Brasília, moramos de 1972 a 1976 e de 1980 a 2000, em superquadra, até nos exilarmos em um condomínio em Sobradinho. A socialização, o aproveitamento do espaço livre dos adultos e das crianças são muito apreciados. O James Holston escreveu no livro A cidade modernista que, inadaptada às superquadras, os brasilienses se mudaram para paisagens tradicionais, que são o Lago Sul e o Lago Norte. É um delírio completo. O centro da sociedade civil em Brasília que é péssimo. Quem pode aprovar aquele monte de viaduto, as diferenças de níveis, a situação dos pedestres obrigados a correrem de carros passando a mais de 80km por hora? É um horror. O valor do urbanismo de Brasília está na área residencial e no sublime da escala monumental.

Donos das pizzas Dom Bosco e Albert’s são amigos desde os anos 1960

Arthur de Souza

 Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
Enildo (E) e José Juarez: uma amizade sólida que superou crises econômicas

Alguém poderia imaginar que, de uma rivalidade entre os dois times considerados os maiores de Minas Gerais, fosse surgir uma amizade que dura mais de 50 anos? Pois é justamente o que acontece com Enildo Veríssimo Gomes, 76 anos, um dos atuais donos da Pizzas Dom Bosco; e José Juarez Santana Neves, 82, proprietário da Albert’s, uma loja de vestuário.

Os dois empreendimentos estão localizados na rua comercial da 107/108 Sul desde os anos 1960 e, de acordo com Juarez, o primeiro contato entre os dois aconteceu quando ele foi até a pizzaria. “Ele sempre foi muito brincalhão e, nesse dia, (o Enildo) estava falando sobre futebol — eu sou torcedor do Atlético-MG e ele, do Cruzeiro. A partir daí, se consolidou essa relação que dura até hoje”, lembra. O dono da loja de vestuários brinca com a situação que ocorreu na época, dizendo que “juntou uma sopa de galo com uma de raposa”. Entre risadas dos dois amigos, Enildo não perde tempo e, atestando o adjetivo dado pelo vizinho de comércio, alfineta José. “Mesmo na situação atual, o Cruzeiro continua sendo o maior de Minas”, comenta.

Teimosos

Sobre o longo período da relação, os amigos comentam que a aproximação foi um dos fatores essenciais para que ambos ‘sobrevivessem’ com seus comércios. “Com todas as crises que o país passou durante esses anos, muita gente fechou ou abandonou o negócio, mas eu e o Juarez somos teimosos e, mesmo que devagarinho, continuamos”, frisa Enildo. “E a amizade ajudou bastante nisso. Um sempre favorece o outro, seja trocando ideias — apesar de sermos de ramos diferentes —, dando dicas, etc.”, aponta.

O dono da Dom Bosco também lembra que, durante algumas das crises — inclusive na época da ditadura — enquanto todo mundo reclamava, ele e o amigo continuavam focados no nosso trabalho. “Sempre se ajudando. E naquele tempo, ainda tinham mais pessoas, donos de outros comércios, que também colaboraram. Hoje em dia, somos os sobreviventes”, complementa Enildo.

Além da questão comercial, eles brincam com o fato de serem os dois que — da época em que os estabelecimentos foram abertos — ainda estão vivos. “Quase todos já ‘foram embora’, mas ainda estamos persistindo. Os dois teimosos que ainda não foram escalados lá para cima”, diz Juarez. “E vamos continuar essa amizade enquanto Deus permitir que a gente esteja aqui. Só que a nossa intenção é bater o pé e ficar por mais algum tempo”, garante Enildo.

Os empresários também pregam que, além da amizade entre eles, as famílias também se uniram, com um levando parentes para serem clientes da loja do outro. “Eu comecei a levar o meu filho para comer a pizza lá. De lá para cá, ele também passou a levar meu neto e assim vai indo. Tenho a honra de ser amigo e frequentar o estabelecimento dele durante todo esse tempo, com toda a minha família, e será desse jeito enquanto a loja durar”, promete Santana. “Com a minha família é a mesma coisa. Na hora de comprar uma roupa ou um presente qualquer, sempre é na loja do Juarez. Todos compram aqui”, destaca Enildo. Sobre a troca entre as famílias, Veríssimo lembra que o amigo tem decorado todas as medidas de cada um de seus entes. “Quando está chegando perto da data de algum aniversário, por exemplo, ele já sabe até qual é o tamanho da roupa”, atesta.

Brincadeira

Nessa longa história de amizade entre os comerciantes, eles acumularam muitas situações em que um acabou pregando peças no outro. Com medo de que Enildo fosse se chatear, José Juarez teve receio de recordar um dos fatos mais marcantes e hilários, que ocorreu há cerca de 15 anos. Contudo, o dono da pizzaria o relata com muitas risadas. “Ele estava de férias e a loja, por consequência, fechada. Só que eu resolvi fazer uma brincadeira e dizer para os clientes que apareciam que ele tinha quebrado e desistido do negócio”, conta Enildo. “Quando ele voltou, todo mundo ficou perguntando o que tinha acontecido”, comenta. “Ele fez isso mesmo, falou que eu tinha ido embora e não ia mais voltar”, lembra o dono da loja de roupas. “Quando abri de novo, o pessoal chegava dizendo: ‘Ainda bem que o senhor voltou, seu Juarez’. Aí eu perguntei ‘Voltei de onde? Só estava de férias’. Ele gosta de fazer esse tipo de brincadeira”, destaca.

Enildo afirma que existem outras histórias como essa, mas lamenta que sejam somente com quem é vizinho de longa data. “Essa proximidade entre comércios vizinhos já se tornou coisa rara. Tem gente que fica com uma rivalidade boba e nem conversa com o dono da loja que está do lado. Acho que isso acontece por serem gerações diferentes. Nós somos do tempo em que todo mundo conversava e tinha uma amizade legal”, observa. “Na época que nos conhecemos, todo mundo era muito humano, muito unido. Era normal você ver pessoas que chegavam em um restaurante, comia e voltava para pagar só no outro dia. Eu mesmo já tive um caderninho que anotava os famosos fiados”, completa Juarez.

Crônica: As voltas que a cidade dá

Mariana Niederauer

kleber sales

De quantas voltas se faz uma cidade? Se é assim que se conta a duração de um ano, por que não usar a metáfora para um monumento concreto, porém poético? Acordei numa madrugada com essa inquietação. O clima era de deserto. Essa aridez da seca de Brasília unida à pasmaceira de uma noite sem agitos. E percebi que aqui a vida dá voltas, a começar pela localização mais central e nobre de seu desenho.

A inspiração fez nascer talvez o texto de minha autoria mais belo que povoou as páginas deste jornal. A modéstia realmente ficou à parte, mas se me acompanhar pelas próximas linhas talvez entenda a viagem que me fez embarcar nesse sem-fim de sensações que apenas guiaram as mãos intuitivamente pelo papel, na tela do smartphone e nas teclas do computador.

Eu contava como a vida dá voltas no Parque da Cidade. Brinca de ciranda no Ana Lídia. Passeia na roda gigante do Nicolândia. Pedala o camelo nos caminhos cíclicos ou o pedalinho sobre o espelho d’água. Deixa uma jura de amor sobre a ponte. Refresca a sede com água de coco. Saca os problemas e corta a tensão numa quadra de vôlei.

Nesse momento, já sabia que carregava no ventre a primeira filha. Passava por uma transformação que só depois do nascimento dela entenderia totalmente, e seguia sendo levada por essa inspiração que se chama Brasília, onde a vida pega carona nas asas do Plano. Exibe a beleza pela passarela da Esplanada. Esbanja cerrado pelos canteiros de Ozanan e nos braços não menos candangos de operários dedicados de sol a sol. Exala elegância nos traços livres de Niemeyer. Organiza-se entre os eixos de Lucio Costa.

Sob os prédios, pilotis erguidos e habitados por meus avós, pais, tios e tias. A primeira e segunda geração de uma cidade que nasceu com muitos irmãos, na esteira e na leveza da vida que mergulha num lago artificial. E encanta-se com sua beleza natural. É crepúsculo na Ermida e Alvorada sobre a Terceira Ponte. Derrete-se no brilho mágico dos amantes que reflete sobre a água. Diverte, exercita e renova energias nessa imensidão Paranoá.

Depois de viver a infância entre os blocos de histórias pujantes, encontrei o mais belo e puro amor no mais escancarado clichê. À la Eduardo e Mônica, nos apaixonamos nos primeiros semestres de UnB. Calouro, veterana. A menina ingênua e estudante aplicada, com o rapaz alto e bonito, o mais popular das festas populares.

E então a vida fez preces na Catedral, sob os anjos de Ceschiatti e o azul intenso de Marianne Peretti. Casou-se com o primeiro namorado na Igrejinha. Pediu bençãos na Praça dos Orixás. Saiu em procissão com tapetes e velas. Regozijou-se com o pôr do sol na Praça do Cruzeiro.

Desde aquele encontro, a gente trata de viver se rebelando como Renato Russo. Vivendo a vida que canta a Legião Urbana na calçada. Faz fila do Karim à 106 Sul. Sintoniza o rádio na estreia do Drive-in. Assombra o Teatro Nacional. Escandaliza o público no Mané. Monta picadeiro no ginásio. Toma café da manhã na Torre e embarca no museu-aeronave do Complexo Cultural da República. Viaja galáxias e desvenda buracos negros no Planetário.

Com a segunda vida a caminho, no corpo exausto pelos efeitos de uma pandemia cruel, mas alma plena e ansiosa por mais desafios, a vida chega a se perder entre as quadras geométricas da Octogonal. Encontra história e samba no Cruzeiro. Bronzeia-se nos clubes. Brinda nos bares. Desfaz esquinas. Perverte a lógica na matemática do Plano Piloto. Invade as agulhinhas e, em breve, pulará carnaval nas tesourinhas.

Tanto esforço pelo caminho e a vida decide embarcar num voo no aeroporto e respirar novos ares. Vira turista. Inebria-se. Transforma choro em estrela cadente. Explora encanto e luta em Ceilândia, Taguatinga, Itapoã, Samambaia ou perto de Goiás. Encontra verdades periféricas. Desmascara injustiças. Sofre. É muitas vezes esquecida. Mas vira haikai e não perde a poesia. Ergue-se do barro. Constrói. Realiza sonhos.

Aí, quatro gerações e 62 anos depois, a vida se completa em uma só Brasília, aquela que integra os moradores com seus vãos abertos em pilotis, os mesmos que convidam às brincadeiras de criança ou a um bate-papo no fim de tarde. Afinal, a minha, a nossa Brasília, a cidade dos eixos, das tesourinhas, das agulhinhas, das quadras e das controvérsias de esquina, tem charme de metrópole e gosto de café passado no coador de pano em casa de vó.