Moradores do Noroeste se unem para resgatar cães e gatos na rua

Renata Nagashima

Carlos Vieira/CB/D.A.Press
Stephanie Cunha (D) e Fernanda Nogueira: ação solidária no Bazar de Vizinhas

Engana-se quem acha que os vizinhos só se reúnem para fazer festas ou confraternizar. No Noroeste, os moradores dedicam esforços durante todo o ano para amparar animais de rua que foram abandonados ou esquecidos por ex-moradores. O excesso de cães e gatos deixados para trás nas ruas é uma realidade presente no setor e fez com que surgissem verdadeiros guardiões dos pets, que abraçaram a causa animal e lutam pelos direitos desses bichos.

No final de 2016, uma desocupação em uma área de invasão no Noroeste tirou 77 famílias de catadores de recicláveis que viviam irregularmente no local. As pessoas foram embora, mas os animais que ficavam no local, foram deixadas para trás e passaram a perambular pelas ruas do setor. “Esses bichinhos ficaram sozinhos no meio do mato e começaram a vir para cá. Então, o Noroeste ficou com matilhas de animais pelas ruas”, conta Stephanie Cunha, 55 anos, moradora do setor há nove anos.

Tocadas pela situação dos animais, algumas moradoras se juntaram para ajudar. Elas foram resgatando cães e gatos aos poucos. Os bichos eram castrados e depois levados para abrigos. “A demanda foi aumentando, mais vizinhos foram se unindo para apoiar a causa e assim o grupo Resgate Noroeste nasceu, pequenininho e entre moradores daqui mesmo. E cada vez mais crescendo o número de cachorros e gatos. Começamos a nos estruturar, continuamos a resgatar e ano passado a gente virou ONG”, relata Stephanie, que hoje é vice-presidente da Associação de Proteção Animal Resgate Noroeste.

Desde que o grupo se formou, 450 cães foram retirados das ruas e encaminhados para adoção. Quando resgatados, eles são levados para uma clínica parceira do Resgate, onde passam por um check-up, fazem todos os exames de sangue e imagem. Estando tudo certo, os animais são levados para um hotel parceiro, no Gama, fazem uma quarentena, em seguida são castrados e vacinados. “Depois desse processo nós fazemos o trabalho de divulgação nas nossas páginas para que eles sejam adotados e deem lugar para mais animais saírem das ruas”, explica.

Reprodução/Resgate Noroeste
Animais são resgatados e colocados para adoção pela ONG Resgate Noroeste | Foto: Reprodução/Resgate Noroeste

Para financiar as ações, os voluntários promovem ações como vendas de quentinha e bazar beneficente, que atualmente funciona em uma loja cedida por um vizinho que se solidarizou com a causa. “Os próprios vizinhos doam as coisas que vendemos no bazar. Tudo isso aqui é uma união de esforços”, completa Stephanie.

Além de ajudar os animais, o grupo também serviu para unir e fortalecer os laços de amizade entre os vizinhos. “Isso fez com que as pessoas se conhecessem, criamos muitas amizades. Aí todo mundo desce um determinado horário, os cachorros brincam, as pessoas se confraternizam. Eu acho que isso também movimentou, criamos grupos de mensagens, as pessoas conversam e trocam mais ideia”, afirma.

Uma das amizades que Stephanie fez foi com a professora, Fernanda Nogueira, 38, que atualmente cuida do bazar solidário com a vice-presidente da ONG. E ela garante que o que mais a atraiu para morar no setor foi a quantidade de projetos e a aproximação entre os vizinhos. “A gente organiza eventos, bazares, a gente ajuda cachorro, ajuda família carente e, ao mesmo tempo, fortalece o vínculo entre os vizinho”, diz.

A professora compara o Noroeste com uma cidade do interior. “Aqui o povo é muito bairrista. Então, tem o grupo do bar que a gente pergunta ‘quem quer tomar uma hoje?’ e já acha uma companhia. A gente desce sozinho para o bar e encontra a galera, não precisa sair de casa acompanhado necessariamente. Temos  que ter esse vínculo, para qualquer coisa tem um vizinho disponível para sair com você”, destaca Fernanda.

Artigo: Brasília, cidade da esperança

Lia Zanotta Machado | Professora emérita de antropologia da UnB

Webert da Cruz/Divulga??o
Grupo Seu Estrelo. A quinta Roda…: Camila Oliveira e Tico Magalhães como personagens dos mitos do Cerrado. | Foto: Webert da Cruz/Divulgação

Brasília: centro político ou cidade habitada e vivida? Centro político parece casar bem com os estereótipos de cidade planejada e fria, cidade monumental, sem esquinas e sem socialidade. A cidade vivida pode se tornar invisível para os que aqui não moram em Brasília. Brasília, ao longe e de longe, se torna sinônimo do governo instalado, amando-a ou rejeitando-a, sem sequer dar-se conta que o projeto se tornou uma cidade e já completa 62 anos. Planejada nas linhas de uma cruz concebida por Lucio Costa, é vista como o desenho de um avião, do alto da Torre de TV, com suas duas grandes asas: a Asa Norte e a Asa Sul unidas verticalmente pelo corpo do avião: o chamado Eixo Monumental.

O projeto original de Brasília previa apenas 500 mil habitantes no ano 2000. Incluía Plano Piloto e arredores que sequer previam moradia para os candangos e pioneiros que construíram Brasília. Muito menos que ela se constituiria em importante polo de atração de migração. Brasília possui uma população estimada total de 3.094.325 de habitantes, o que faz da capital a terceira maior cidade do país, atrás de São Paulo e Rio de Janeiro.

Nem cruz, nem avião. Para os habitantes de Brasília, as linhas que demarcam Brasília são hoje outras: são as linhas quadradas do contorno do Distrito Federal que abriga suas 33 regiões administrativas. O Quadrado, ou melhor: o Quadradinho é cantado em verso e prosa. O Quadradinho é afeto. É viver a cidade. “Derrubar muros e erguer pontes, unir pessoas e lugares” dentro do “quadradinho”, é um mote que antagoniza e enfrenta a anterior percepção de “Brasília como Plano Piloto cercado de cidades satélites”. É uma percepção abrangente, democrática, diante de uma cidade que cresce sem parar por todos os lados. Um “quadradinho todo num só” é possível?

A inovação é a tecla que articula a percepção de Brasília projeto e Brasília cidade que cresce e se expande. Os meios para isso seriam e devem ser muitos. Necessário mais infraestrutura urbana, mais transportes e cada vez mais cuidado com a sustentabilidade e meio-ambiente.

Contudo a construção da identificação dos brasilienses com Brasília como um todo, com o seu “quadrado”, se dá pelas redes de sociabilidade: redes de vizinhança que se constroem em espaços próximos entre oriundos de diversas origens do Nordeste ao Sudeste. E pelas redes sociais de parentes que atravessam e articulam diversas e diferentes regiões administrativas. Mas não só.

De quantas origens podemos falar sobre os habitantes de Brasília? Hoje, de acordo com as estimativas do IBGE, estamos pela primeira vez com maioria simples de nascidos na cidade versus migrantes. Em 2011, 51,8% eram migrantes. Brasília é formada por gente de todos os lugares, todas as idades e de muitas gerações. É uma mistura de sotaques e culturas do Nordeste, Sudeste, Norte e Sul do país e de estrangeiros.

A identificação abrangente de Brasília se vem fazendo, não só pelas redes sociais, mas pela produção cultural musical e artística, chamada incessantemente para pensar e construir a percepção de Brasília.

Renato Russo é pioneiro. Canta e conta Brasília em seus diversos pontos e locais, muito além do Plano Piloto. Produzir memória cultural significa em Brasília, produzir memórias e sotaques das mais diversas partes do Brasil, mas sempre com inovação. Seu Teodoro havia trazido o Boi-Bumbá do Maranhão para Sobradinho e para a Universidade de Brasília em 1962 e aí permanece. Chico Simões, trouxe o Mamulengo Presepada em 1985 para Taguatinga e Tico Magalhães trouxe para Brasília em 2004 o Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro (foto), que criou o mito do Calango Voador com personagens do Cerrado e do Planalto Central a partir do maracatu e o cavalo marinho de Pernambuco. Entre tantos outros. A inovação e a criatividade se impõem. Porque há que se mesclar, articular diversidades e produzir sincretismos.

O Clube do Choro busca introduzir a brasilidade e sua diversidade para Brasília. Foi fundado em 1977, mesmo ano que eu chegava em Brasília como professora de antropologia da UnB. Sua fundação se deu na casa da premiada flautista e também professora da UnB, Odete Ernest Dias, tornando-se seu primeiro presidente o citarista Avena de Castro. Em 1993, foram retomadas as atividades do Clube do Choro, conseguindo novo espaço projetado para o Clube e criada a Escola Brasileira do Choro. Hoje, há já 15 anos o grupo Samba Urgente nascido dessa escola, inova e afirma que a cidade de Brasília é muito mais. Não é uma cidade de político. É uma cidade vivida, solidária, vivaz, esperançosa e construtora do futuro. Uma cidade síntese cultural como já dizia meu amigo e grande antropólogo Roque Laraia.

Paixão pela cultura gera amigos de luta e de poesia na cena artística do DF

Edis Henrique Peres

Edis Henrique Peres/CB/DA Press
Vicente Sá (E) e Renato Matos, são amigos e compartilham entre si músicas brasilienses | Foto: Edis Henrique Peres/CB/D.A. Press

Unidos pelo amor à arte, artistas plásticos, poetas e produtores culturais encontraram no companheirismo não apenas um vínculo de amizade sólida, mas também um laço familiar. “Uma relação que foi se construindo e se fortalecendo ao longo do tempo e que hoje faz com que sejamos mais que amigos, somos praticamente irmãos”, define Lúcia Leão, 66 anos, coordenadora do Espaço Cultural Leão da Serra. A amazonense deixou o estado natal para ir estudar no Rio de Janeiro, mas em 1977 se mudou da cidade carioca e veio construir a vida em Brasília. Produtora cultural, ela conta que logo que chegou à capital  conheceu o artista plástico Renato Matos, 70, que nos anos seguintes se tornaria um grande amigo. O também cantor e compositor lembra do começo dessa parceria com orgulho: “Foi ela (Lúcia) que produziu meu primeiro disco. Uma história antiga, mas uma história maravilhosa”.

As idas e vindas dessa amizade uniu um terceiro artista ao grupo: o marido de Lúcia, o poeta Vicente Sá, 65. “Eu conhecia Renato de vista, mas ainda muito pouco. Depois produzimos alguns projetos juntos e, por causa da Lúcia, nossa relação foi se estreitando. Então aconteceu que há cerca de nove anos ele precisava de um local para montar seu ateliê e tínhamos um espaço na propriedade. Agora ele é nosso vizinho”, relata. “Como não é muito longe uma casa da outra, a gente costuma se encontrar para conversar no meio do caminho”, brinca Vicente.

A afinidade garante, inclusive, colaborações em trabalhos artísticos. “Temos músicas que escrevemos juntos, eu e o Renato. É um trabalho que fazemos constantemente. De vez em quando, outros amigos vêm até aqui, de 15 em 15 dias, para compormos algo, em um exercício de produção. Tem dia que dá certo, outros que não tem resultado. Mas com essa prática já temos umas dez músicas escritas. Outras vezes, eu também vou ao ateliê do Renato ver os quadros em que ele está trabalhando. Somos grandes parceiros do trabalho um do outro”, garante Vicente.

Luta pela cultura

Natural de Pedreira, Maranhão, Vicente Sá chegou em Brasília aos 11 anos de idade, em 1968. “Ainda era ditadura. Meus pais vieram para cá porque meu irmão mais velho passou na UnB (Universidade de Brasília) então todo mundo veio junto. Sou o mais novo de 19 irmãos. No fim, Brasília influencia muito o que produzo, porque praticamente me criei aqui, morei em várias regiões administrativas e semanalmente publico crônicas em minhas redes sociais sobre a cidade”, cita.

Lúcia conta que por muito tempo disse que Brasília era uma cidade sem avós. “As pessoas vinham para cá separadas da família, sem ter os parentes mais próximos morando aqui. Então quando você precisava de alguma coisa, que seriam situações que geralmente pedimos ajuda para a nossa mãe, irmã, ou algum familiar, aqui em Brasília contávamos com nossos amigos. Então são esses amigos que vão se tornando essas pessoas com laços profundos, de relações muito sólidas. Os amigos tem que contar com os outros para criar essa rede de solidariedade, e não somente porque somos artistas e enfrentamos desafios parecidos, mas porque somos gente”, defende.

“Uma relação que foi se construindo e se fortalecendo ao longo do tempo e que hoje faz com que sejamos mais que amigos, somos praticamente irmãos”

Lúcia Leão, coordenadora do Espaço Cultural Leão da Serra

Donos das pizzas Dom Bosco e Albert’s são amigos desde os anos 1960

Arthur de Souza

 Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
Enildo (E) e José Juarez: uma amizade sólida que superou crises econômicas

Alguém poderia imaginar que, de uma rivalidade entre os dois times considerados os maiores de Minas Gerais, fosse surgir uma amizade que dura mais de 50 anos? Pois é justamente o que acontece com Enildo Veríssimo Gomes, 76 anos, um dos atuais donos da Pizzas Dom Bosco; e José Juarez Santana Neves, 82, proprietário da Albert’s, uma loja de vestuário.

Os dois empreendimentos estão localizados na rua comercial da 107/108 Sul desde os anos 1960 e, de acordo com Juarez, o primeiro contato entre os dois aconteceu quando ele foi até a pizzaria. “Ele sempre foi muito brincalhão e, nesse dia, (o Enildo) estava falando sobre futebol — eu sou torcedor do Atlético-MG e ele, do Cruzeiro. A partir daí, se consolidou essa relação que dura até hoje”, lembra. O dono da loja de vestuários brinca com a situação que ocorreu na época, dizendo que “juntou uma sopa de galo com uma de raposa”. Entre risadas dos dois amigos, Enildo não perde tempo e, atestando o adjetivo dado pelo vizinho de comércio, alfineta José. “Mesmo na situação atual, o Cruzeiro continua sendo o maior de Minas”, comenta.

Teimosos

Sobre o longo período da relação, os amigos comentam que a aproximação foi um dos fatores essenciais para que ambos ‘sobrevivessem’ com seus comércios. “Com todas as crises que o país passou durante esses anos, muita gente fechou ou abandonou o negócio, mas eu e o Juarez somos teimosos e, mesmo que devagarinho, continuamos”, frisa Enildo. “E a amizade ajudou bastante nisso. Um sempre favorece o outro, seja trocando ideias — apesar de sermos de ramos diferentes —, dando dicas, etc.”, aponta.

O dono da Dom Bosco também lembra que, durante algumas das crises — inclusive na época da ditadura — enquanto todo mundo reclamava, ele e o amigo continuavam focados no nosso trabalho. “Sempre se ajudando. E naquele tempo, ainda tinham mais pessoas, donos de outros comércios, que também colaboraram. Hoje em dia, somos os sobreviventes”, complementa Enildo.

Além da questão comercial, eles brincam com o fato de serem os dois que — da época em que os estabelecimentos foram abertos — ainda estão vivos. “Quase todos já ‘foram embora’, mas ainda estamos persistindo. Os dois teimosos que ainda não foram escalados lá para cima”, diz Juarez. “E vamos continuar essa amizade enquanto Deus permitir que a gente esteja aqui. Só que a nossa intenção é bater o pé e ficar por mais algum tempo”, garante Enildo.

Os empresários também pregam que, além da amizade entre eles, as famílias também se uniram, com um levando parentes para serem clientes da loja do outro. “Eu comecei a levar o meu filho para comer a pizza lá. De lá para cá, ele também passou a levar meu neto e assim vai indo. Tenho a honra de ser amigo e frequentar o estabelecimento dele durante todo esse tempo, com toda a minha família, e será desse jeito enquanto a loja durar”, promete Santana. “Com a minha família é a mesma coisa. Na hora de comprar uma roupa ou um presente qualquer, sempre é na loja do Juarez. Todos compram aqui”, destaca Enildo. Sobre a troca entre as famílias, Veríssimo lembra que o amigo tem decorado todas as medidas de cada um de seus entes. “Quando está chegando perto da data de algum aniversário, por exemplo, ele já sabe até qual é o tamanho da roupa”, atesta.

Brincadeira

Nessa longa história de amizade entre os comerciantes, eles acumularam muitas situações em que um acabou pregando peças no outro. Com medo de que Enildo fosse se chatear, José Juarez teve receio de recordar um dos fatos mais marcantes e hilários, que ocorreu há cerca de 15 anos. Contudo, o dono da pizzaria o relata com muitas risadas. “Ele estava de férias e a loja, por consequência, fechada. Só que eu resolvi fazer uma brincadeira e dizer para os clientes que apareciam que ele tinha quebrado e desistido do negócio”, conta Enildo. “Quando ele voltou, todo mundo ficou perguntando o que tinha acontecido”, comenta. “Ele fez isso mesmo, falou que eu tinha ido embora e não ia mais voltar”, lembra o dono da loja de roupas. “Quando abri de novo, o pessoal chegava dizendo: ‘Ainda bem que o senhor voltou, seu Juarez’. Aí eu perguntei ‘Voltei de onde? Só estava de férias’. Ele gosta de fazer esse tipo de brincadeira”, destaca.

Enildo afirma que existem outras histórias como essa, mas lamenta que sejam somente com quem é vizinho de longa data. “Essa proximidade entre comércios vizinhos já se tornou coisa rara. Tem gente que fica com uma rivalidade boba e nem conversa com o dono da loja que está do lado. Acho que isso acontece por serem gerações diferentes. Nós somos do tempo em que todo mundo conversava e tinha uma amizade legal”, observa. “Na época que nos conhecemos, todo mundo era muito humano, muito unido. Era normal você ver pessoas que chegavam em um restaurante, comia e voltava para pagar só no outro dia. Eu mesmo já tive um caderninho que anotava os famosos fiados”, completa Juarez.

Crônica: As voltas que a cidade dá

Mariana Niederauer

kleber sales

De quantas voltas se faz uma cidade? Se é assim que se conta a duração de um ano, por que não usar a metáfora para um monumento concreto, porém poético? Acordei numa madrugada com essa inquietação. O clima era de deserto. Essa aridez da seca de Brasília unida à pasmaceira de uma noite sem agitos. E percebi que aqui a vida dá voltas, a começar pela localização mais central e nobre de seu desenho.

A inspiração fez nascer talvez o texto de minha autoria mais belo que povoou as páginas deste jornal. A modéstia realmente ficou à parte, mas se me acompanhar pelas próximas linhas talvez entenda a viagem que me fez embarcar nesse sem-fim de sensações que apenas guiaram as mãos intuitivamente pelo papel, na tela do smartphone e nas teclas do computador.

Eu contava como a vida dá voltas no Parque da Cidade. Brinca de ciranda no Ana Lídia. Passeia na roda gigante do Nicolândia. Pedala o camelo nos caminhos cíclicos ou o pedalinho sobre o espelho d’água. Deixa uma jura de amor sobre a ponte. Refresca a sede com água de coco. Saca os problemas e corta a tensão numa quadra de vôlei.

Nesse momento, já sabia que carregava no ventre a primeira filha. Passava por uma transformação que só depois do nascimento dela entenderia totalmente, e seguia sendo levada por essa inspiração que se chama Brasília, onde a vida pega carona nas asas do Plano. Exibe a beleza pela passarela da Esplanada. Esbanja cerrado pelos canteiros de Ozanan e nos braços não menos candangos de operários dedicados de sol a sol. Exala elegância nos traços livres de Niemeyer. Organiza-se entre os eixos de Lucio Costa.

Sob os prédios, pilotis erguidos e habitados por meus avós, pais, tios e tias. A primeira e segunda geração de uma cidade que nasceu com muitos irmãos, na esteira e na leveza da vida que mergulha num lago artificial. E encanta-se com sua beleza natural. É crepúsculo na Ermida e Alvorada sobre a Terceira Ponte. Derrete-se no brilho mágico dos amantes que reflete sobre a água. Diverte, exercita e renova energias nessa imensidão Paranoá.

Depois de viver a infância entre os blocos de histórias pujantes, encontrei o mais belo e puro amor no mais escancarado clichê. À la Eduardo e Mônica, nos apaixonamos nos primeiros semestres de UnB. Calouro, veterana. A menina ingênua e estudante aplicada, com o rapaz alto e bonito, o mais popular das festas populares.

E então a vida fez preces na Catedral, sob os anjos de Ceschiatti e o azul intenso de Marianne Peretti. Casou-se com o primeiro namorado na Igrejinha. Pediu bençãos na Praça dos Orixás. Saiu em procissão com tapetes e velas. Regozijou-se com o pôr do sol na Praça do Cruzeiro.

Desde aquele encontro, a gente trata de viver se rebelando como Renato Russo. Vivendo a vida que canta a Legião Urbana na calçada. Faz fila do Karim à 106 Sul. Sintoniza o rádio na estreia do Drive-in. Assombra o Teatro Nacional. Escandaliza o público no Mané. Monta picadeiro no ginásio. Toma café da manhã na Torre e embarca no museu-aeronave do Complexo Cultural da República. Viaja galáxias e desvenda buracos negros no Planetário.

Com a segunda vida a caminho, no corpo exausto pelos efeitos de uma pandemia cruel, mas alma plena e ansiosa por mais desafios, a vida chega a se perder entre as quadras geométricas da Octogonal. Encontra história e samba no Cruzeiro. Bronzeia-se nos clubes. Brinda nos bares. Desfaz esquinas. Perverte a lógica na matemática do Plano Piloto. Invade as agulhinhas e, em breve, pulará carnaval nas tesourinhas.

Tanto esforço pelo caminho e a vida decide embarcar num voo no aeroporto e respirar novos ares. Vira turista. Inebria-se. Transforma choro em estrela cadente. Explora encanto e luta em Ceilândia, Taguatinga, Itapoã, Samambaia ou perto de Goiás. Encontra verdades periféricas. Desmascara injustiças. Sofre. É muitas vezes esquecida. Mas vira haikai e não perde a poesia. Ergue-se do barro. Constrói. Realiza sonhos.

Aí, quatro gerações e 62 anos depois, a vida se completa em uma só Brasília, aquela que integra os moradores com seus vãos abertos em pilotis, os mesmos que convidam às brincadeiras de criança ou a um bate-papo no fim de tarde. Afinal, a minha, a nossa Brasília, a cidade dos eixos, das tesourinhas, das agulhinhas, das quadras e das controvérsias de esquina, tem charme de metrópole e gosto de café passado no coador de pano em casa de vó.

Canoa havaiana: o esporte que une vizinhos no Lago Paranoá

Edis Henrique Peres

Minervino Júnior/CB/D.A.Press
Marcella Jacobson e Adriana Reis (D) os benefícios do esporte para o bem-estar

As remadas ritmadas rompem a água calma e o sol poente pinta o céu em tons fortes de laranja e amarelo. Por um instante, os integrantes da canoa havaiana se tornam um só, unidos não somente entre eles, mas conectados também com a natureza, com a brisa fresca do fim da tarde e o avanço constante da canoa nas águas do lago Paranoá. Apaixonada pelos benefícios do esporte, Marcella Jacobson, 47 anos, servidora da Secretaria de Saúde e moradora do Noroeste, não apenas vive essa experiência, como convida vizinhos para experimentar os benefícios desse vínculo.

“Comentei com um colega de trabalho sobre a canoa havaiana, que era bom para o corpo e para a mente e que seria bom para ele e a esposa praticar o esporte. E não somente eles, tem outra vizinha que está na mesma equipe que faço parte, em algumas competições que participamos. No fim, o laço não se restringe a canoagem, a gente combina de sair, de ir comer fora, de fazer programas no fim de semana”, detalha.

Marcella confessa ser uma entusiasta dos benefícios da atividade física há muitos anos. “Desde a infância tive relação com esporte. Já fui atleta militar, mas agora é diferente, não tenho a cobrança de um treinador por resultados que tinha na época, é algo mais comigo mesmo, de superação, do meu foco de não deixar o meu rendimento cair, de treinar em equipe, de darmos o nosso melhor. Por isso a conexão é importante, de todos pensarem igual, remarem juntos. A canoa havaiana é um esporte de todos juntos, porque se um dar uma remada errada, isso atrasa a canoa. A intensidade da remada tem que ser a mesma, é uma solidariedade entre os seis membros”, destaca.

O contato com a natureza é outro benefício listado pela servidora. “Não é apenas um momento de todo mundo trabalhar junto, é um contato com a natureza, de ver o pôr do sol, ter o contato com a água, isso vai transformando a nossa vida. Principalmente com a pandemia, em que a gente sofreu tanto com o isolamento. Eu, por exemplo, trabalho na UTI (unidade de terapia intensiva), na área de odontologia, e vi muita gente morrendo. A oportunidade de ser transportada para esse momento de conexão, com a remada, com a água, com o momento, é muito importante”.

Transformação de vida

O convite de Marcella ao casal de fisioterapeutas, Adriana Rios, 50, e Júlio Carlos Teles, 55, transformou a vida de Adriana. Após passar por uma cirurgia há mais de três anos devido a uma hérnia de Spiegel, Adriana sofria com a perda do fortalecimento do músculo abdominal. “Sentia muita dor, mesmo deitada. Não conseguia fazer nem mesmo caminhadas, porque doía. Quando o Júlio me falou sobre a canoagem, eu não acreditava que iria fazer algum efeito, porque vendo as pessoas praticando o esporte, pensava que só trabalhava a musculatura dos braços, mas ela (Marcella) insistiu para que eu tentasse”, lembra.

Quando surgiu a oportunidade de experimentar a canoa havaiana, em setembro de 2020, Adriana descobriu “o único esporte”, até então, que ela conseguia realizar sem sentir dor. “E trabalha o corpo inteiro, ao contrário do que eu pensava, inclusive essa musculatura abdominal, no abdômen baixo. Foi um exercício que eu consegui realizar sem dor alguma e está sendo fantástico. Mudou a minha vida”, garante.

Professor do Remo Brasília e atuante na área há 17 anos, Rodrigo Fernandes do Prado salienta que a prática é considerada um esporte completo. “O remo trabalha o corpo todo, os membros superiores e inferiores, e um grande diferencial é que não tem impacto e nem risco de causar lesão nas articulações. Por isso, temos várias indicações médicas de pessoas com hérnia de disco, problemas no ombro ou no joelho para praticar o esporte. Como ele trabalha muito o cardiopulmonar, houve uma procura muito grande de pessoas que pegaram covid-19 e queriam normalizar o desempenho respiratório”, conta.

O professor complementa que, “em relação a canoa havaiana, se percebe muito forte a questão do trabalho em equipe, que exige habilidades de sincronia, para que a canoa siga reta e não de lado, e a percepção muito clara de que cada pessoa no banco tem uma função. Isso serve muito para a pessoa levar em ambientes de trabalho, por exemplo. Inclusive, empresas realizam dinâmicas aqui, abordando justamente sobre esse trabalho em equipe”.

Busca pela natureza

Em contato com a atividade há quase oito anos, Bárbara Lobato, 38, moradora do Sudoeste e consultora de comunicação, sempre levou amigos para conhecer o esporte. Para ela, o maior encanto é o contato íntimo com a natureza. “Por motivos profissionais, precisei me afastar por um tempo e somente consegui voltar em 2021, quando convidei de novo outros amigos e vizinhos para praticar comigo. Considero um estímulo de competição e treino essa prática conjunta com outras pessoas. Uma das vizinhas que tenho contato mais próximo é com a Priscilla”, afirma.

Comunicadora em redes, Priscilla Paola Colombo, 37, confessa: “Ela (Bárbara) me influenciou, foi o incentivo dela que me fez fazer a aula experimental. No começo achei que não ia dar muito certo, mas hoje vejo que foi um esporte que mudou a minha vida. Participo das aulas há um ano e meio. A princípio era um lugar para desestressar, mas agora entro em competições até de outros estados. Estou super engajada”.

Priscilla conta que ela e Bárbara viajaram em março para Ilhabela, em São Paulo, em uma competição de canoagem. “Em junho, vamos para Angra dos Reis (RJ). O remo tem sido uma escola de vida. Não é apenas a técnica na atividade, nos campeonatos e na seletiva. São várias etapas em que aprendemos a nos integrar e fazer conexões. É um esporte muito coletivo, em que precisamos entender o outro. Além disso é um local que eu me enxergo na posteridade, daqui 20 anos, 30 anos. Porque há uma galera com mais de 50, mais de 60, não tem restrição de idade, temos crianças, idosos, e todo mundo se respeita e compreende a limitação do outro”, garante.

Adaptação

Bárbara destaca que a razão por convidar tantos vizinhos e amigos para experimentarem a canoa havaiana é devido a conexão com a natureza. “Em primeiro lugar, é uma prática diferente em que a pessoa mexe com toda a musculatura. E depois, ela lida com a diversidade, de remar no frio, na chuva, no calor intenso. Isso estimula a adaptação à adversidade. Além disso, há a conexão entre a gente. No grupo que treinamos às 7h30, combinamos um coletivo do café da manhã, então um leva café, outro salada de fruta, outro torrada, pão, cuscuz. Isso é muito legal, é um estímulo ao coletivo”, pondera.

A relação, segundo ela, é de integração. “Um vai ajudando o outro sobre como melhorar a performance, o ritmo das braçadas, dizendo se o outro tem que inclinar mais o corpo, fazer mais força, isso melhora o nosso desempenho”, salienta. Na conexão com a natureza, Bárbara admite o amor por Brasília. “Nasci aqui e sou apaixonada pela capital. Até no período da seca eu gosto daqui, tenho um vínculo muito forte com a cidade. Principalmente na hora de explorar os locais que possibilitam esse contato com a natureza, como por exemplo, nadar na Água Mineral, ou na minha rotina no Lago Paranoá”, finaliza.

Mais informações: remobrasilia.com.br/

Minervino Júnior/CB
Grupo de vizinhos que participam de aula de remo no Minas Brasília. Marcela Jacobson e Adriana Reis.