Moradores da mesma quadra de Brasília unidos pelo talento na cozinha

Liana Sabo

Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar
Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

Vizinhos não são só os de porta. Podem morar no mesmo bloco e se sentir vizinhos. Ou até mesmo de quadra. Há quem se considere vizinho de alguém que resida a uma distância mínima, capaz de ser percorrida a pé: de um bloco para outro. Como no caso do publicitário Charles Marar. Ele até consegue ver do seu próprio apartamento se há luz acesa na cozinha da “vizinha” Neide Pimenta Magalhães, residente em outro bloco da mesma 216 Sul.

A luz acesa ou alguma movimentação é a senha para ele ligar e perguntar com franqueza: “O que você está fazendo?” Invariavelmente, Neide estará cozinhando. Depois da família (filhos, noras, netos e o novo neto Theo, de quatro meses), e dos amigos, a paixão dela é fazer comida. Às vezes até o trivial, mas o que mais a inspira é mesmo o gosto requintado. De um prato tradicional, como a canjiquinha mineira, feita de costelinha de porco, Neide extrai uma explosão de sabores e texturas que não ficam devendo a nenhuma iguaria. Ser convidado para degustar a canjiquinha é um privilégio ímpar. Charles não perde nenhuma chance.

Nascida em Sabinópolis, interior de Minas, Neide viveu no estado por 18 anos quando se casou e foi morar em Aracaju por cinco anos. De lá veio à capital, onde passou a trabalhar no serviço público. O interesse pela gastronomia surgiu depois que o primogênito, já formado, voltou de Londres e passou a cozinhar, aos domingos, mostrando o que aprendera no trabalho em restaurantes. “Foi assim que a luzinha se acendeu e comecei a me interessar pelo tema fazendo as primeiras aulas com a chef Susana Leste na garagem de sua casa na W-3 Sul”, conta a aprendiz de mestre cuca, que também acompanhou as aulas dadas no restaurante Alice, no Lago Norte.

Ela também entende muito de vinho e participa dos cursos da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-DF) com degustações que a deixam apta a harmonizar a bebida com o extenso e variado cardápio de sua autoria.

Outro prato que ela elabora com maestria é o pernil inteiro pururucado. Aliás carne suína é a sua predileção. Embora de origem árabe, o vizinho Charles não é muçulmano, por isso não está impedido de consumir porco — ingrediente vedado a árabes e judeus. Como todo o cristão, ele pode perfeitamente se deliciar com esse tipo de carne macia, saborosa e cada vez mais gastronômica. O que dizer da maciez da raça Duroc, que está conquistando os paladares?

Comida de beduíno

Charles tem nas veias o DNA da boa cozinha. A mãe, Najila Marar, jordaniana de 91 anos, que mora desde 1948 em Bauru (SP), até a pandemia vinha sempre a Brasília preparar o jantar de aniversário do filho, no mês de maio. Na mesa, a culinária árabe, uma das mais antigas e aromáticas do mundo, reinava com uma série de pratos todos feitos artesanalmente, como homus, quibe de bandeja, kafta de forno, arroz com lentilha, babaganuche, coalhada e o exclusivíssimo Mansaf, que tem na base, pão de folha e por cima, arroz de açafrão e carne de cordeiro cozida na coalhada com snobar (pinoli) frito na manteiga.

“Trata-se de uma comida típica de beduíno, que é consumida no deserto com as mãos, daí o pão servir de prato”, esclarece a brasiliense Isadora Marar, formada em nutrição e personal chef com especialização na cozinha árabe/jordaniana, que aprendeu com a avó Najila. “Quando meus filhos eram pequenos, a minha avó passava temporadas comigo me ensinando todas as receitas desenvolvidas por ela”, lembra a neta.

Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar
Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

Já o pai Charles, que também apreendeu com Najila a preparar esse banquete — cuja fartura e generosidade são uma das principais marcas da hospitalidade árabe —, nunca transformou a habilidade em negócio e sempre cozinhou para os amigos. Há dois anos, porém, não podendo receber em casa por causa da covid-19, é a filha que abastece a sua despensa e geladeira. De falafel, esfirras, homus, chanclife e outras iguarias confeccionadas por ela e oferecidas todos os sábados na feira da QI 13 do Lago Sul. “Meu pai gosta de cozinhar para as pessoas”, entrega Isadora.

Apenas amigos

“Sozinhos há mais de duas décadas, Charles e Neide bem que poderiam casar,” propõe Najila, que gostaria muito que o filho tivesse alguém. “O casamento não iria durar um só dia”, reage, com humor, Neide, ciente das diferenças de temperamento e idiossincrasias de cada um. Melhor assim, para não interromper uma amizade profunda e firme que nem a crise sanitária abalou.

Recluso por um ano e meio, Charles quando revolveu sair de casa foi comer na cozinha da Neide, um espaço amplo e equipado com muito bom gosto. Ela também é perita na decoração de mesa e o faz com muitos recursos, graças à coleção de objetos e louças, afinal um dos filhos é sócio-proprietário da principal loja de equipamentos para hotéis e restaurantes da cidade.

Neide também investe na fórmula “viajar para comer”. Ela fez parte da primeira excursão enogastronômica que o ex-adido cultural e de imprensa da Embaixada da França Christian Couesmes, promoveu, no verão europeu de 2003, para a Borgonha e Jura, tendo como destaque “um jantar inesquecível na fabulosa casa de Paul Bocuse em Lyon”, como dizia o programa. Após elogiar a qualidade da comida, Neide escreveu no diário de viagem: “Um jantar no Paul Bocuse nos impele a atitudes mais comedidas, mas isto não aconteceu. Somos um povo alegre, barulhento, feliz e não ficamos tolhidos numa cultura que não é a nossa.

Ficamos muito à vontade, rimos alto, brincamos sem deixar de sentir o prazer de um jantar à francesa, quando o serviço é perfeito e descontraído, muito mais confortável do que um buffet”. A experiência na França serviu para aprimorar a atuação nos sabores.

Amizade além do tempo: companheirismo e respeito que atravessa décadas

Edis Henrique Peres

Amizade além do tempo
Kátia Kouzak (D) e Vera Hildebrand: momentos de alegria e de tristeza. | Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Uma amizade que viu Brasília nascer e que esteve presente nos momentos mais alegres e nos mais solitários e desesperançosos uma da outra. Assim se define o vínculo de quase 62 anos entre Vera Hildebrand Pires da Cunha, 75 anos, e Kátia Abudakir Kouzak, 76. As duas se conheceram na adolescência, quando chegaram à capital do país, inaugurada no mesmo ano. Desde então, o laço segue firme e inquebrantável entre as duas amigas, que são “praticamente irmãs”. Religiosamente, aos domingos, Vera deixa sua casa na Asa Norte, passa na padaria, e vai para o Lago Sul, visitar Kátia.

“Chamamos de café da manhã da Vera”, conta Kátia, aos risos, sobre o banquete que a amiga traz da panificadora. Na mesa de varanda, elas montam a refeição e batem papo. O hábito de compartilhar lanches entre as duas é antigo, e vem ainda da juventude, na época em que estudavam juntas na Comissão de Administração do Sistema Educacional de Brasília (Caseb). “A gente comia a mesma coisa no intervalo: um sonho e um Grapette (refrigerante de uva)”, lembra Kátia. “Esse era o nosso lanche das 10h”, acrescenta.

Vera foi a primeira das duas a chegar em Brasília. “Dia 13 de abril de 1960, tinha 13 anos, era uma quarta-feira, quando vim para cá. Fiquei encantada, porque Brasília estava lotada de barraquinhas de acampamento”, conta. Já Kátia chegou dois meses depois, em 12 de julho do mesmo ano. “Na época morávamos na SQS 107, uma no Bloco A e outra no Bloco D. E íamos juntas para o colégio. A amizade começou porque estudávamos na mesma sala”, diz Vera.

Para as duas amigas, as lembranças ainda são vívidas e enquanto relatam as memórias, elas sorriem com o revisitar dos dias de infância. “Aproveitamos muito a nossa juventude”, salienta Vera, que recorda do tratamento que realizou no hospital Sarah Kubitschek. “Como nasci com paralisia cerebral, eu fiz acompanhamento por muitos anos no hospital, comecei por volta dos 14 e segui até uns 20 anos, ia cerca de três vezes por semana”, conta.

Kátia revela que acompanhava a amiga nessas consultas até que foi proibida. “Brincava tanto (no hospital), assanhava os velhinhos, jogava peteca e fazia de tudo. Até que fui proibida de ir”, conta, entre risos. “A Vera chegou para mim nesse dia toda triste, dizendo: oh, Kátia, a direção não quer que você vá mais não”, diz.

O que mantém o laço até os dias de hoje, é a “amizade pura”. “Geralmente as pessoas têm algum interesse, quer alguma coisa. Mas a nossa amizade dura tanto tempo, porque ela é constante. E na hora que a gente precisar, sabemos que podemos contar uma com a outra”, ressalta Vera. Kátia acrescenta que as duas buscam simplesmente a companhia uma da outra, pois é isso que as fazem bem.

Amor e admiração

Ao longo das seis décadas de companheirismo entre Kátia e Vera, as duas passaram por momentos marcantes. Mesmo em cursos de graduação diferentes, Kátia estudando ciências contábeis, e Vera, psicologia, o vínculo se manteve. Kátia garante que a união entre as duas vem de um pacto de muito amor e admiração. “Não temos o mesmo sangue, mas somos que nem irmãs. E olha que somos bem diferentes na personalidade”, diz.

No espírito de companheirismo, quando Kátia estava no hospital para ganhar o primeiro filho, Vera foi chamada, de madrugada, para acompanhar a amiga. “Eu era muito jovem, tinha 25 anos, era o meu primeiro filho, me sentia despreparada. Estava assustada e a Vera era a pessoa que eu queria do meu lado para me acolher, porque eu estava perdida”, detalha. Vera não só acompanhou o parto de Kátia como é madrinha do filho dela, Solon Kouzak.

Mas além dos momentos de alegria, as duas são um suporte nos desafios e dificuldades. Kátia lembra que quando o marido ficou muito doente, Vera ia ao hospital visitá-la. “Meu esposo ficou um ano e quatro meses muito debilitado. Nesses grandes momentos, nas coisas que mudaram a nossa vida, ela (Vera) estava do meu lado. Quando meu marido estava doente e depois quando ele partiu eu enfrentei todo tipo de problema, com sócio e doença — fiquei cardíaca —, e foi a Vera que me apoiou”, se emociona Kátia.

Vera também enfrentou a perda do esposo e conseguiu superar o luto graças a ajuda da amiga. “Meu marido teve câncer de pulmão, ficou três meses muito ruim e depois partiu. Agora faz quatro anos, o tempo passa muito rápido. Quando ele foi embora, foi a Kátia que me lembrava que a vida não acabou, que ele não ia querer que a minha vida parasse. Em razão disso, a gente ficou mais unida. Foram esses momentos, os essenciais e que fizeram toda a diferença”, avalia Vera.

“Eu vi Brasília nascer”

Para Kátia, foi “puro destino” que viesse para a capital e encontrasse aqui uma amizade de uma vida. “Meu tio era militar da Aeronáutica e eu queria estudar na capital federal. Sou paulista e primeiro fui morar no Rio de Janeiro, que era a capital do país, com os meus tios. Depois, meu tio foi transferido para Brasília e eu vim com eles, como meus tutores”, afirma.

Já Vera veio do Rio de Janeiro, porque o pai era da Fundação Educacional e foi o responsável por trazer os professores do país e criar o modelo de ensino da capital. “Quando eu cheguei, Brasília estava cheia de barraquinhas e todo mundo tinha no carro um adesivo escrito ‘Eu vi Brasília nascer’. Nas noites de sábado, a gente descia para baixo dos prédios com violão e vitrolas e ficava cantando e dançando. Lembro até hoje, da festa da inauguração (da cidade), que me marcou muito, em que fizeram uma dança ao lado das conchas (do Senado e da Câmara) e soltaram tecidos que chegavam quase até embaixo. Eu me lembro muito disso”, afirma. Vera arremata: “Na próxima encarnação, já pedi para nascer aqui, em Brasília”.

Donos de tradicionais lojas da Asa Sul compartilham histórias de amizade

Edis Henrique Peres

Francisco de Andrade proprietário da Casa Renato e seu amigo vizinho Jean Souza(cam. Azul)
Francisco de Andrade proprietário da Casa Renato e seu amigo vizinho Jean Souza (cam. Azul)

Duas das lojas mais antigas da comercial 308 Sul têm uma história de amizade entre os proprietários que começou ainda na infância, quando eles eram levados pelos pais para trabalhar no período de férias ou no contraturno das aulas. Ao longo de mais de 50 anos como vizinhos de parede, Jean Skaf, 55 anos e proprietário da loja de roupas Sua Casa Malhas; e Francisco de Andrade, 63 anos, da loja agropecuária Casa Renato, compartilham visitas em jogos clássicos de futebol e solidariedade em momentos dolorosos na vida um do outro.

“Passamos o tempo inteiro na loja, até mais do que ficamos em casa, então essa relação saudável entre a vizinhança do comércio é interessante, porque um ajuda o outro. Quando precisa trocar dinheiro, quando tem algum problema ou algum lojista está em dúvida sobre a índole de alguém, por exemplo, essa parceria é muito importante. Os comércios vizinhos são de pessoas muito presentes no cotidiano e esse vínculo se cria naturalmente. E com o Francisco, isso é ainda mais forte”, destaca Jean.

A loja de roupa Sua Casa Malhas foi aberta pelo pai de Jean em 1968. “Meu pai veio do Líbano. Primeiro ele parou no Porto de Santos, depois foi para São Paulo, seguiu para Bela Vista, no interior de Goiás, onde morava o meu tio. E, de lá, ele veio para Brasília e trouxe a família, para começar uma nova etapa da vida. Eu cheguei no Brasil com um ano e meio de idade. A loja foi aberta em novembro de 1968”, detalha.

Com o tempo, a cordialidade entre os vizinhos de comércio foi evoluindo, até se transformar em amizade. “Eu cresci na quadra e o Francisco começou a trabalhar com o pai. A minha amizade com ele dura 45 anos e sempre foi marcada pela lealdade e pela dignidade. Eu, inclusive, fui padrinho de casamento dele. Sempre estamos juntos. Saímos para almoçar juntos. Ele é um irmão que Deus colocou no caminho da minha vida. E é algo natural, porque no dia a dia estamos ali, na loja, se vendo”, argumenta.

Acolhimento

Francisco, da agropecuária Casa Renato, conta um hábito dos amigos. “Costumamos tomar um café da tarde, quase todos os dias juntos, aqui de frente para as duas lojas. Isso é por volta de 16h40. Quando o papo está bom, só saio de lá quando os meninos começam a baixar as portas da loja”, confessa. “Nesse momento aproveitamos para conversar de tudo: futebol, sobre o comércio, algo que aconteceu na nossa vida, de política meio de leve, para não ter discussão”, acrescenta.

A Casa Renato foi fundada em 1962, quando os pais de Francisco chegaram de Minas Gerais. “Meu pai tinha alguns negócios que não estavam dando certo, então ele decidiu vir para Brasília para recomeçar. Em 1961 ele já tinha visitado um amigo aqui e, no ano seguinte, decidiu vir de vez. Cheguei quando tinha 4 anos, mas me considero de Brasília”, ressalta.

Jean tem o mesmo vínculo com a capital que o recebeu de “braços abertos”. “Aqui é onde eu cresci, onde vivo e criei meus filhos, tenho meus amigos, é uma cidade iluminada. Uma cidade que parece que tem um imã que atrai a gente. Mesmo que você viaje, você fica louco para voltar. Amo Brasília em toda a plenitude. Um dos meus pontos prediletos é o laguinho da 308 sul, em frente ao Bloco F, pois ia muito lá na minha infância. Além dele, tem a Igrejinha de Fátima”, conta.

Sobre o vínculo com a famosa Igrejinha, Jean confessa: “vou para lá quando preciso encontrar paz. Sempre frequentei a missa com meus pais quando criança, e quando preciso de um momento de reflexão, encontrar alguma solução, pensar no cotidiano, sento nos banquinhos ao lado da Igrejinha e fico ali”, menciona.

Paixão pelo futebol

Os dois amigos também estiveram presentes nos momentos importantes da vida um do outros. “O Francisco costuma vir à loja aos domingos cuidar dos passarinhos e uma vez ele chegou e ouviu um barulho dentro da minha loja e me avisou que alguém a estava invadindo. Por causa disso, consegui chegar a tempo de prender o homem dentro da loja até a polícia chegar”, explica.

Os lojistas, contudo, são apaixonados por times rivais no futebol: Jean é flamenguista e Francisco é torcedor do Fluminense. Jean lembra que ficou “traumatizado” com a disputa de 1995, do Fla-Flu, no Maracanã. “Fiquei insistindo com o Francisco para a gente ir assistir, até que ele aceitou. A gente conseguiu uma passagem e o ingresso do jogo de última hora e fomos para o Rio de Janeiro. Mas aí, o Flamengo perde de 3 a 2 para o Fluminense com o gol de barriga do Renato Gaúcho”, lamenta.

Francisco se lembra do episódio. “Eu não queria ir, porque duvidava da vitória do Fluminense. No fim, o Jean voltou meio triste depois da vitória do Fluminense, mas mesmo assim, a gente se divertiu bastante na viagem”, destaca. O proprietário da Casa Renato salienta que a amizade, muito além dos momentos divertidos, foi importante para superar os desafios impostos pela vida. “Quando meu pai morreu o Jean meu deu força. Assim como eu estive com ele na morte da mãe dele. É sempre assim. Nesses momentos uma pessoa pode conversar com o outro, desabafar”, complementa.

Parceria

A parceria entre os comerciantes da quadra não se restringe aos lojistas históricos da 308. Valéria Soares, 61 anos, da loja Tribalistas, chegou em 2020, mas se sente bem recebida e é participativa nos grupos dos proprietários. “Vim para cá (308 Sul) por causa da pandemia, que obrigou muita gente a fechar suas lojas e bagunçou as finanças das pessoas. Antes, a Tribalistas ficava dentro de um shopping. E muda bastante ser uma loja de rua, porque aqui a gente se une para se ajudarem, por exemplo, na questão de segurança”, observa.

Valéria detalha que os lojistas possuem um grupo no WhatsApp para se comunicar e organizar diversas ações na quadra comercial. “Quando é época festiva, de Natal, por exemplo, nos preparamos para decorar a quadra e deixar tudo bonito, cada um colaborando de uma forma. Há um engajamento muito grande entre todos, de ajuda. E com o tempo, todo mundo vai conversando, formando amizades, compartilhando um pouco de si com o outro”, expõe.

Crônica: Maravilha de Brasília

Dad Squarisi

Brasília

Na década de 1970, recebi um casal de amigos equatorianos. Fizemos um tour pela cidade. Foi um fim de semana de visitas, idas e vindas. Quando foram embora, perguntei-lhes o que tinham achado da nova capital. A resposta:

— Deu a impressão de uma cidade construída por extraterrestres, que a plantaram aqui e voltaram pra casa.

Queixaram-se da falta de gente nas ruas, falta de movimento, falta de alma. Se o casal voltasse hoje a Brasília e passasse um fim de semana aqui, veria que a capital dos brasileiros mudou. O brasiliense descobriu o lazer ao ar livre. A urbe ganhou vida.

Como não é uma ilha sem pai nem mãe, reflete os problemas das grandes cidades nacionais. Tem violência, desemprego, corrupção, segregação social, congestionamento de trânsito, filas em hospitais, transporte público deficitário.

Ela também projeta qualidades que enchem os brasileiros de orgulho. O brasiliense não buzina, respeita a faixa de pedestres, cumprimenta o desconhecido na rua, no elevador, no ônibus ou no metrô. Lê muito, frequenta bibliotecas, zela pelo meio ambiente para manter o ar respirável, as águas limpas e as áreas verdes intocadas.

Multidões vão às ruas. Manifestantes vestem o Eixo Monumental de verde-amarelo no belo exercício da cidadania. Acampam nos gramados do Congresso Nacional ou na Praça dos Três Poderes pra pressionar as autoridades e reivindicar direitos.

Nos feriados e fins de semana, a cidade se transforma. Brasília deixa de ser o corpo com cabeça, tronco e rodas. Ganha pernas. A população lota parques e ruas. Corredores invadem o asfalto.

Ciclistas pedalam em vias exclusivas ou misturados com pedestres que vão e vêm.

O Eixão dos carros vira Eixão do lazer. Gente pequena e gente grande enchem o domingo de cores, vozes e odores. Crianças correm, gritam, jogam bola, puxam carrinhos e passeiam cachorros. Skatistas se equilibram em voos que desafiam a gravidade.

Cadeirantes circulam, vendedores negociam, artistas se exibem, olhares se encontram. A capital dos brasileiros traz pras ruas seu patrimônio mais precioso — as pessoas. O casal equatoriano tem de voltar pra Brasília.

 

Na quadra modelo, uma amizade que atravessa décadas

Felicidade compartilhada
Vizinhas de Superquadra, Rosa Regina Faleiros (direita) e Noêmia Vasconcelos | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Na quadra mais antiga de Brasília, desenhada por Oscar Niemeyer e inaugurada em 1960, se forjou uma amizade que dura mais de 20 anos e percorreu continentes. Entre viagens, almoços e cafezinhos, Rosa Regina Faleiros, 70 anos, e a amiga Noêmia Vasconcelos Victor, 79, compartilham risadas, desabafos e espantam a solidão. O laço entre as duas nasceu na superquadra 108 Sul, quando Noêmia se mudou para o mesmo bloco de Rosa Regina, em 2000.

“Fui morar na 108 e a Regina era síndica, então tínhamos contato contínuo. Aos poucos, começamos a sair juntas para lanchar e a amizade foi surgindo muito naturalmente. Depois, precisei mudar do Bloco I para o F, mas a amizade permaneceu. Nós duas saímos para comemorar aniversários, falar sobre a família, dizer como estão os netos”, detalha Noêmia.

A aposentada revela que as amigas chegaram a visitar o exterior. “Um dos nossos melhores programas foi uma viagem que fizemos para Portugal e Espanha. Começamos (o tour) em Lisboa, e fomos em direção à Espanha, parando em diversos pontos. Minha filha foi junto porque ela dirige no exterior. Foi uma viagem maravilhosa, a gente curtiu muito. E tinha outras pessoas da quadra 108 na viagem que também são amigas nossas”, relembra.

Segundo ela, o vínculo também é um auxílio nas horas de necessidade. “Regina é muito comunicativa e prestativa. Ela gosta de dirigir para qualquer lugar, já eu não gosto de pegar o carro. Então ela me ajuda quando preciso. Uma amizade boa assim é muito saudável, porque os nossos filhos já se casaram e tendo esse vínculo a gente sai do isolamento e se diverte. Contar com outras pessoas para passear e não ficar só é muito importante”, avalia.

Passeio de amigas

Rosa Regina assegura que o laço entre as duas se fortaleceu “pelo que havia em comum” entre as aposentadas. “Ela era viúva e eu era divorciada. Como ficávamos muito só, começamos a sair para tomar um cafezinho, um chopp e para pegar um cinema. Fizemos uma amizade entre três amigas, mas a terceira do grupo voltou para o Rio de Janeiro e agora quem mantêm esse vínculo somos eu e ela. A questão é que a pandemia atrapalhou muito os nossos passeios. Antes, às sexta-feiras ou aos sábados, a gente almoçava fora, porque gostamos muito de feijoada”, salienta.

Depois do prato típico, as duas amigas paravam no Praliné Confeitaria Suíça, tomavam sorvete e visitavam o Casa Park. “Isso já era por volta de 16h, a gente dava uma olhadinha nas lojas, e depois ia para o cinema. E mesmo após a sessão, ainda tínhamos pique para ir comer uma pizza e tomar um chopinho. Eram dias muito agradáveis que dava para colocar toda a conversa em dia. Agora, estamos voltando a nos encontrar aos poucos. Almoçando no comércio local, comendo um lanche, saindo de vez em quando. Nada igual a programação que fazíamos antes, devido ao risco do vírus”, pondera.

As viagens ao exterior não foram as únicas feitas por Noêmia e Rosa Regina: as amigas também visitaram Aracaju, Rio de Janeiro e São Paulo. “A gente mora sozinha e os filhos se casaram, então, querendo ou não, surge um pouquinho de solidão. Essa convivência supre esse espaço. A nossa amizade serve como desabafo, contamos dos problemas, do que está acontecendo na nossa vida, das nossas mágoas. Colocamos para fora os nossos problemas com alguém que a gente confia”, salienta.

Amor pelo DF

Além das outras semelhanças, Noêmia e Rosa Regina compartilham uma mesma paixão: o amor pela capital do país. Rosa Regina chegou à capital em 1962, quando tinha 10 anos. “Meu pai era servidor público do Ministério de Minas e Energia e morávamos em São João Del-Rei, em Minas Gerais. Na época, o que chamava os servidores para a capital era o apartamento funcional, que os moradores recebiam ao vim para cá. Quando chegamos, recebemos o apartamento na 108 e eu passei minha infância na quadra, estudava na Escola Classe, visitava o Clube Vizinhança para lazer e frequentava a Igrejinha. Para a gente era uma benção viver nessa quadra, porque tudo era próximo e nessa época ninguém tinha carro”, lembra.

Os anos se passaram e, com o casamento, Rosa Regina deixou o lugar em que formou a maior parte das memórias da infância. “Sempre quis voltar para 108, por isso, quando tive oportunidade, em 1995, eu financiei um apartamento no Bloco I. Aqui (na quadra 108) fui síndica durante 12 anos, deixei o cargo há quatro anos”, informa. Rosa Regina acrescenta: “Falo com muito orgulho que sou moradora de Brasília, porque não existe cidade igual. Esse traçado da capital não existe em outro lugar do mundo. Para mim, é a cidade mais bonita, principalmente a vista aérea, que a gente vê nos filmes e na televisão, com tanta árvore e tanto verde. Embora tenha nascido em Minas, minha vida se formou aqui, em Brasília”.

Noêmia compartilha da mesma opinião da amiga. “Conheço muitas cidades, mas Brasília é muito moderna e organizada, e gosto muito daqui principalmente pela arborização do Plano Piloto. Tenho um carinho muito grande pela cidade porque foi onde cresci profissionalmente”, finaliza.

Unidas pela fé, vizinhas promovem o projeto Novena Natalina

Edis Henrique Peres

Ismenia e Regina durante apresentação na 213 Sul
Ismenia e Regina durante apresentação na 213 Sul | Foto: Arquivo pessoal

A história de mais de 22 anos de amizade entre melhores amigas nasceu aos poucos em encontros, passeios e eventos religiosos. “Sem pretensões e sem que a gente notasse: quando percebemos, estávamos nesta intimidade danada”, descreve Regina Cintra, 69 anos, moradora da 314 Sul. O primeiro contato entre ela e Ismenia Maria Magalhães, 74, residente da 213 Sul, ocorreu no Santuário Nossa Senhora do Carmo, ainda na década de 1990, quando Regina foi buscar uma das filhas na catequese.

“A Ismenia frequentava a missa com violão, ensinando as crianças a tocar. Dessa forma, aos poucos fui conhecendo ela enquanto eu participava da celebração. Depois, fui convidada para encontros da igreja e de lá em diante começamos a fazer retiros e cursos juntas”, lembra. O vínculo, ao longo dos anos, se fortaleceu, motivado pelo mesmo motivo do primeiro encontro: a fé. “A Ismenia é responsável por uma Novena de Natal no bloco do prédio dela, e ela me chamou para participar. As novenas são feitas, a cada dia, na casa de um vizinho e isso estreitou muito as nossas relações, porque ao fim era realizado um jantar e sempre tinha muita conversa”, afirma.

Mesmo morando em outra quadra, Regina foi muito bem recebida pelos condôminos. “Eu me auto-intitulava intrusa, porque tinha o benefício de usufruir o que a quadra deles ofereciam. E com toda essa relação, o meu contato com a Ismenia se aproximou e criamos um vínculo muito forte. Não somente entre nós, mas a minha família toda com a família dela. Virou uma coisa bem misturada, sólida e verdadeira”, garante.

A moradora do 314 confessa: “Ismenia é minha melhor amiga. Nem tenho palavras para descrever essa relação. Mas posso te dizer que nunca tive uma amizade tão profunda, nem na época de minha adolescência, como tenho hoje com a Ismenia. Hoje, inclusive, sou madrinha de casamento da filha dela. Nos aniversários estamos juntas. É uma relação que não foi programada, foi natural, quando acordamos, ela já estava ali, tinha acontecido. É muito verdadeira”.

Solidariedade

O projeto de Novena Natalina, organizado por Ismenia, acontece há mais de 30 anos na quadra 213, no Bloco A, local em que reside. “Sou muito religiosa e sempre achei que uma forma de viver melhor seria rezando. Isso ajudou muito na união do grupo de moradores”, conta. O projeto começou de forma simples, com um terço que era rezado com as crianças, com a participação das mães que acompanhavam os filhos.

“Depois, isso se transformou em uma Novena de Natal. No último dia da Novena fazemos uma ceia, em que cada um leva um prato. É uma comemoração muito especial, que tem de tudo: doces, frutas, peru. É a união de todos os moradores”, garante Ismenia. A comemoração era enfeitada com ares de natal e os bebês nascidos naquele ano representavam, nas peças encenadas pelas crianças, o menino Jesus em seu nascimento. “Essa coisa de evangelizar realmente sempre foi algo nato meu”, complementa Ismenia.

Contudo, muito além de apenas um festejo religioso, o grupo se preocupa em promover ações concretas. Em cada novena o grupo promove doações para entregar às pessoas vulneráveis. “A única coisa que atrapalhou as nossas novenas foi a pandemia. Mas neste ano espero que a Novena possa voltar a acontecer de novo, quero muito retomar as nossas atividades”, reforça Ismenia.

As festas natalinas tinham até a presença do Papai Noel
As festas natalinas tinham até a presença do Papai Noel | Foto: Arquivo pessoal

Um céu aquarela

Regina foi encontrar a melhor amiga a mais de 1.200 km da cidade natal, sob um céu colorido que nem acreditava que existia. Nascida em Vitória, ela chegou em 1974 à capital do país. “A maior parte da minha família continua lá, mas aqui eu recebi muito acolhimento”, garante.

Ismenia, contudo, desembarcou na capital um pouco antes. “Minha família era de Formosa, cheguei aqui em 1971. Desde então fiquei por aqui e morei em vários locais. Na 213 Sul, moro há 35 anos. Praticamente vi muito do progresso que Brasília trouxe, principalmente a singularidade da capital”, assegura a moradora.

A particularidade é o ponto em comum de admiração também de Regina, que se formou em decoração de interiores. “Brasília sempre me atraiu muito pela arquitetura. Ficava pensando no lugar que eu vivia que era quase surreal”, afirma.

A beleza natural do Planalto Central era outro encanto para Regina. “Gostava de fazer pinturas, mas quando via aqueles céus coloridos, com laranja, lilás e tantas cores eu pensava que aquilo era uma mentira, que não tinha como um céu ser daquela cor. Contudo, quando cheguei aqui, descobri que isso existia. Descobri que isso era possível somente aqui em Brasília”, finaliza.

Conheça projeto que uniu vizinhança da 105 Norte nos momentos mais difíceis da pandemia

Pedro Almeida*

Das janelas dos apartamentos, moradoras acompanhavam os artistas na quadra
Das janelas dos apartamentos, moradoras acompanhavam os artistas na quadra | Foto: Arquivo pessoal

Para afastar o tédio e quebrar o silêncio que ecoava na superquadra, da 105 Norte, durante a pandemia, a comunidade transformou o passeio público em palco musical e as janelas dos prédios, em camarotes. O projeto Música Solidária, concebido pelo prefeito da quadra, impactou e uniu os moradores, além de colaborar com os músicos locais.

Jeann Cunha, 35 anos, nasceu e se criou na quadra 105 da Asa Norte. Ao longo dos anos, nas andanças como morador de Brasília, se encantou com o trabalho produzido nas quadras que contavam com uma prefeitura comunitária ativa. O zelo e o senso de comunidade eram evidentes. A quadra em que morava, porém, não era uma delas. Determinado a mudar este paradigma, Jeann resolveu liderar o movimento de reativação da prefeitura da 105 Norte. À frente do posto, ele começou a agitar o espaço com eventos e arte. O amor pela superquadra natal se alinhou ao trabalho de agente sociocultural que ele já desempenhava fora dali.

O trabalho foi um sucesso. Os primeiros projetos deram resultados, mas foram seguidos de um hiato gerado pela pandemia, que havia acabado de chegar em 2020. Unir os moradores de uma quadra em tempos de distanciamento era uma tarefa árdua, mas não impossível. Sem desistir, Jeann reuniu amigos da cena cultural brasiliense e desenvolveu o projeto Música Solidária. A ideia consistia em fazer serenatas musicais para os moradores. Sem sair de casa, bastava abrir a janela e aproveitar a música do conforto do lar. Um primeiro evento-teste foi feito, e o resultado foi positivo.

O prefeito logo contatou os músicos que conhecia para dar corpo ao projeto. Não bastava simplesmente tocar uma ou duas músicas, Jeann queria realizar um verdadeiro festival. Os prédios receberam, um por vez, os shows particulares de vários gêneros musicais distintos. Os moradores ganhavam o alento da música em tempos tão difíceis e davam, em troca, uma doação em dinheiro para os músicos locais e suprimentos para instituições de caridade.

Todos ganhavam. Os residentes, com uma forma de espairecer e acalmar o coração; os músicos, que estavam parados, arrecadavam recursos; por fim, as pessoas carentes ganhavam mais um aliado na luta pela sobrevivência. Acima de tudo, o mosaico de bustos à beira das janelas, como uma coleção de namoradeiras, afastou a solidão e provou que, ainda que no pior dos tempos, o senso de comunidade estava presente na 105 Norte.

Instrumentistas se revezaram em apresentações durante o isolamento
Instrumentistas se revezaram em apresentações durante o isolamento | Foto: Arquivo pessoal

Foi justamente a ausência de um clima comunitário que assustou Alessandra Lima, 38. A carioca designer de interiores chegou a Brasília há aproximadamente quatro anos. O marido militar foi transferido para a capital e trouxe a família. Criada no Rio de Janeiro, ela conta que o clima de união entre os moradores do bairro em que cresceu fazia jus à alcunha de “comunidade”. O calor humano, típico do carioca, faz parte da vida de Alessandra, que se confessa “faladora”. O que ela encontrou por aqui, contudo, foi diferente.

A calmaria da 105 Norte acabou por ser propícia para a criação dos dois filhos pequenos, mas deixou uma lacuna no desejo de se relacionar com os vizinhos. Em 2020, a vontade de estreitar laços teria de ser adiada ainda mais tempo. O convite de Jeann Lucas à janela, por sorte, tratou de resolver o problema. Alessandra conta que, ao escancarar os vidros da janela, reviveu o clima que a marcou na infância e se emocionou. Sentiu-se ali, pela primeira vez, parte da comunidade. Ela faz questão de apontar a importância das artes e, em especial, da música, no enfrentamento da pandemia; foi o que a salvou, de acordo com ela. Hoje, ela se sente mais próxima dos vizinhos e admira o empenho de Jeann em transformar a superquadra em um grande lar.

O projeto Música Solidária, mesmo que não tivesse essa grande ambição de início, tornou-se uma forte alternativa de captação de recursos para o setor musical. Iniciada na 105 Norte, a ideia foi potente a ponto de tomar dimensões maiores do que o local em que nasceu. A iniciativa foi replicada em 10 quadras e engajou 70 atrações musicais brasilienses.

Pedro de Castro, 28, foi um dos músicos participantes. No Dia das Mães de 2020, ele estreou no projeto. Hoje, serenatas já se tornaram parte do repertório do saxofonista. Ao perceber o impacto do projeto, ele investiu em equipamento próprio para poder oferecer o serviço. Ele relata, também, que tem retornos positivos ainda hoje da divulgação que conseguiu à época.

Não há, afinal, vida sem música. Ainda que o mundo pare e as pessoas se recolham, a 105 Norte provou que a música pode ir a quem não pode ir ao encontro dela. E onde há música, há calor humano, há vida e história sendo escrita. Há, enfim, comunidade.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Moradora do Lago Norte resgata gatos abandonados com apoio de vizinhos

Texto: Arthur de Souza

Solidariedade com os gatos
Cilene Maria Camargo faz parte do grupo de vizinhos que cuidam de gatos abandonados no Condomínio Privê no Lago Norte | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Mesmo tendo a fama de ser um animal solitário e que não é muito adepto ao carinho, os gatos também podem ser responsáveis por unir uma vizinhança, e a história de Cilene Maria de Camargos, 56 anos, moradora do Lago Norte, se encaixa como um desses exemplos. A servidora pública conta que sempre teve paixão por felinos, de modo geral. Contudo, foi em 2005 que ela passou a ter um olhar diferente para os gatinhos. “Fui para Palmas passar o carnaval na casa de uma irmã, e minha afilhada ajudou uma filhote. Só que lá, ninguém gostava de gatos, então acabei trazendo para Brasília”, comenta.

Na época, Cilene morava na Asa Norte e lembra que fez seu primeiro resgate um ano após adotar o filhote que trouxe de Palmas. “Só que os dois não se deram muito bem e tive que arrumar uma doação, que também também foi um sucesso”, revela. “A partir daí, nunca parei. As coisas foram acontecendo gradativamente e, quando percebi,  estava com uma ‘gatoeira’, resgatando gatos em vários locais. Comecei a seguir alguns deles, para saber se eram mansos, se tinham donos ou onde se escondiam, era diário”, detalha a servidora pública.

Após mais de 15 anos fazendo o trabalho na Asa Norte, Cilene se mudou para o Setor de Mansões do Lago Norte, onde o projeto se manteve. “Lembro-me que, ao chegar, alguns vizinhos já alimentavam e cuidavam de um ou outro gato, porém, a população felina cresceu muito rapidamente, pois eles não eram castrados. Eu me vi morando em uma rua com uma colônia de gatos em pleno crescimento”, conta. Foi quando ela conheceu uma vizinha, chamada Dalva, que fazia o trabalho no local. “Começamos uma parceria e amizade que proporcionou o resgate de dezenas de gatos e algumas ninhadas pegando com as mãos. Entre maio de 2021 e abril de 2022, realizamos 32 castrações, entre adultos capturados e filhotes em lar temporário”, destaca.

Elo fundamental

A nora de Dalva, Camila Martins, 40, também é vizinha de Cilene e, assim como a sogra, ajuda no projeto. Ela conta que, mesmo antes de a servidora pública chegar, havia um trabalho desenvolvido, que começou quase da mesma forma que o da Asa Norte. “Uma gata apareceu com o rabinho cortado e infeccionado. A gente a pegou, minha sogra colocou antibiótico no leite, foi amansando e foi tratando essa gata, até fazer uma cirurgia para tirar a parte que estava comprometida”, lembra. “No que a gente levou ao veterinário para fazer o procedimento, descobrimos que ela estava prenha. Foi feita a cesária, tirou todos os gatinhos e um dos fruto dessa mãezinha que a gente resgatou, está comigo atualmente”, comenta.

Solidariedade com os gatos
Com a amiga Camila Martins e os bichanos: parceria e afeto. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Depois da mudança de Cilene, a administradora diz que o projeto ficou ainda mais robusto. “A união com a Cilene nessa iniciativa foi fundamental, porque a minha sogra começou cuidando primeiro de um gato, aí depois viraram dois, três e, de repente, tínhamos dez gatos”, enumera. “Criamos um grupo com moradores no WhatsApp e lá a gente divulga fotos, presta contas e faz balanço de quantos gatinhos foram resgatados, castrados, além da quantidade de ração que está sendo comprada”, detalha Camila.

Muito a ser feito

Apesar das parcerias, Cilene e Camila contam que a adesão de outros vizinhos ao projeto ainda está mais concentrada no ‘virtual’. “Quem realmente põe a mão na massa é a Cilene e minha sogra. Eu ajudo financeiramente e ajudo quando eu posso nas ninhadas de pequenininhos, para cuidar. Infelizmente, a união presencial ainda é pouca”, confessa Camila. Além disso, Cilene comenta que, no decorrer desses meses, elas têm enfrentado muitas dificuldades, como a resistência da comunidade. “Divulguei alguns casos de resgate no grupo do condomínio e alguma ajuda apareceu, não suficiente ainda para 100% das despesas”, lamenta.

Solidariedade com os gatos
Depois de capturados, os bichinhos são encaminhados a adoção |Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Mesmo assim, a servidora pública comemora que, por meio da doação de mais de 20 moradores, conseguiram que muitos gatos fossem castrados em um curto espaço de tempo. “No momento, ainda temos dois gatos adultos que precisam ser resgatados para castração, contudo, é um número bem mais fácil de trabalhar”, diz. “O trabalho é árduo, incansável e acredito que, divulgando cada vez mais essas ações solidárias aos animais que vivem em situação de abandono, as pessoas vão se sentir motivadas a participar, olhando para o lado, para as ruas, para os estacionamentos e que ajude ou inicie no cuidado dos animais”, espera Cilene, afirmando que, quem estiver interessado em ajudar de alguma forma — seja com doações ou fazendo uma adoção —, pode entrar em contato através do telefone 61 981308483.

De olho no futuro

Cilene diz esperar que essa ‘corrente do bem’ tenha cada vez mais elos. “Em todos os locais existem animais abandonados e a solução para ajudá-los é a participação de todos”, pondera. E é justamente o que Camila tem feito na própria casa. Ela e o marido amam os animais e estão passando esse carinho para a filha. “Sempre que a gente via um cachorrinho na rua ou um gatinho a gente procurava ajudar. Ela cresceu vendo a gente fazer e desenvolver esse hábito, o amor pelos bichos, então, foi um movimento natural. Hoje em dia, ela faz porque ama”, conta.

Solidariedade com os gatos
Cilene dá alimentação e monitora os animais | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Apesar de ter pouco tempo — pois trabalha cerca de 12h por dia —, ela sempre tenta ajudar quando está com a filha. “Onde a gente encontra um bichinho em situação de abandono, procuramos socorrer, tirar uma foto para divulgar, dar comida, água, essas coisas”, complementa Camila.

Solidariedade com os gatos
Com a pandemia, o número de animais abandonados aumentou no DF | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Mestre Woo e o tradicional ponto de tai chi chuan da Asa Norte

Edis Henrique Peres

Ponto de harmonia e encontro
Mestre Woo: “Tai chi chuan é um cuidado com o bem-estar do corpo e da mente e um cultivo do intercâmbio de conhecimentos”  | Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press

Os movimentos sincronizados, em ritmo e conexão com o próprio corpo, acumulam a energia e a dispersam. Os praticantes se movimentam na quadra de esporte, entre as entrequadras 104 e 105 Norte, enquanto os raios de Sol vencem as poucas nuvens e afastam a brisa fria da manhã da última terça-feira que marcou, de acordo com o registrado pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), 16ªC nos termômetros da capital federal. A Praça da Harmonia Universal é um patrimônio imaterial de Brasília desde 2007, mas sua história com o tai chi chuan começou muito antes, ainda em 1974. Atualmente, a praça é um ponto de encontro para praticantes da arte marcial para pessoas de diversas regiões administrativas que querem vivenciar a energia tranquila que exala do local.

Natural de Taiwan, o grão-mestre Moo Shong Woo chegou ao Brasil em 1961, onde passou por São Paulo e Minas Gerais, até, finalmente, vir para Brasília, em 1968. A iniciativa do tai chi chuan começaria entre as quadras da Asa Norte somente na década de 1970. Hoje, com 90 anos de idade, o mestre acompanha as aulas, mas outro professor costuma orientar os alunos. Woo explica que a prática do tai chi é considerada, também, uma meditação em movimento.

“Os ensinamentos são de fraternidade, saúde e paz, um cuidado com o bem-estar do corpo e da mente e um cultivo do intercâmbio de conhecimentos. Eu tenho conhecimento para ensinar ao outro, mas minha neta, bem mais nova, também tem muito a ensinar para mim. Esse intercâmbio é muito importante, porque nós não somos robôs, somos humanos, e essas relações são fundamentais”, destaca Woo.

Grão-Mestre Woo pontua que o tai chi é o resultado de uma série de conhecimentos que foram se acumulando ao longo de milhares de anos. “É uma sabedoria que foi sendo construída, por todos. E é uma vitalidade não apenas para idosos, muitos jovens também precisam dessa prática, porque não se trata de cuidar somente do corpo, mas da mente. A praça é um local que junta todas as raças, todos juntos, de congregação porque somos todos irmãos”, avalia.

O mestre pondera que, atualmente, existem muitos medicamentos e tratamentos modernos, mas que esses não são os únicos meios para garantir a saúde de um paciente. “Ter uma boa relação com o outro, ficar ao ar livre, ver as pessoas que ama, tudo é bom para a saúde. É isso que a gente ensina”, frisa.

Ponto de harmonia e encontro
Victor Jimenez, ao lado de Marcia Seroa: “O tai chi chuan mudou a minha vida” | Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press

Mudança de vida

O primeiro contato de Victor Jiménez, 68, advogado e morador do Lago Sul, com o tai chi chuan foi em busca de qualidade de vida. “Em 2009, comecei a sentir os primeiros sintomas do Mal de Parkinson, mas, até então, nem conhecia a doença. Sentia muitas dores musculares do lado esquerdo do corpo. No entanto, fui receber um diagnóstico somente em 2013. E, em 2015, mais ou menos, em contato com um professor da universidade, ele me disse que o tai chi poderia ajudar na estabilidade postural dos pacientes de Parkinson. Estabeleci como meta que iria fotografar as aulas de tai chi sem tremer, e hoje, inclusive, tenho um canal no YouTube, o Viver ativo com Parkinson, onde falo sobre diversas questões. E sou eu também que sempre fotografo os eventos realizados na praça e cuido da postagem dos vídeos e conteúdos dessas imagens”, detalha.

Victor se orgulha do equilíbrio que adquiriu com as aulas do tai chi. “Pratico todos os dias em casa ou aqui. O tai chi chuan mudou a minha vida”, confessa. Além dos benefícios que o advogado vivencia diariamente, na redução dos sintomas do Parkinson, ele destaca outro: “Ao longo desses anos foram se fortalecendo muitas amizades saudáveis devido ao nosso convívio aqui na praça, a gente vai se tornando amigos com o tempo”.

Diretora-presidente da Associação Being Tao e facilitadora do tai chi, Márcia Seroa da Motta ressalta que o espaço faz tanto sucesso devido ao acolhimento. “É uma arte que atende todos os públicos, do mais jovem ao mais velho, e que trabalha nessa liberação de energia. Nos domingos, quando fazemos alguns cafés da manhã, por exemplo, tem gente que vem de muito longe simplesmente para estar aqui, neste espaço de harmonia, porque se sente diferente nesse lugar. O espaço aqui abre essa possibilidade de compartilhar ideias, todo mundo estar juntos, de ter essa energia que é muito particular daqui. Os moradores daqui da quadra sentem isso e as pessoas que vêm de outras regiões administrativas também. Muito disso, principalmente, devido a serenidade do mestre Woo”, pondera Márcia.

Vizinhos e pessoas que praticam Tai Chi. Na foto, Moo Shong Woo | Foto: Ed Alves/CB/D.A.Press

A facilitadora revela que ela ganhou muitas amizades ao longo do tempo que praticou tai chi. “Quando cheguei a Brasília me sentia deslocada. Vim a trabalho para a cidade, e foi somente quando comecei a participar aqui que fui fazendo amizades. Tenho amigas de anos que já deixaram de frequentar a praça, hoje são professoras de tai chi em outros locais, e eu ainda mantenho contato com elas. Aqui é um ponto que realmente permite esse vínculo de amizade entre todos”, salienta.

Poeta e cineasta, Maria Maia, 62 anos e moradora da Asa Norte detalha a experiência com a arte marcial: “Quando você começa, pensa que é um movimento para energizar o seu corpo, depois pensa que estava errado e, na verdade, é para a sua mente, mas no final, descobre que é para o seu espírito”. Maria afirma que a praça, como o próprio nome sugere, consegue transmitir essa harmonia entre todos. “Por isso que se torna um poderoso local de encontro entre as pessoas, de união entre todos”, afirma.

Uma das amigas de Maria, Karen Smidt, 70, moradora da Asa Norte e advogada, garante: “Aqui praticamos realmente a fraternidade, a saúde e a paz”. Karen participa das aulas desde 2006, quando começou a passar próximo da praça onde eram realizadas as aulas e se interessou pela prática. Além do bem-estar, a arte marcial proporcionou amizades. Quando se encontrou com Maria, as duas se abraçaram e admitiram: “Quando a gente se abraça, é de coração para coração”.

Pianista norte-americana encanta vizinhos com música clássica no Lago Sul

Pedro Almeida*

A musicista convidou o amigo havaiano Patrick Yim para acompanhá-la ao violino. Arquivo pessoal
A musicista convidou o amigo havaiano Patrick Yim para acompanhá-la ao violino | Foto: Arquivo pessoal

Onde as palavras falham, a música fala. Há seis meses em Brasília, a pianista clássica norte-americana Jennifer Heemstra, que ainda não domina o português, encontrou nas teclas do piano uma forma de dialogar com a nova vizinhança. De portas abertas, Jen recebe os vizinhos para concertos intimistas na própria sala de estar, no Lago Sul.

Nascida na cidade de Grand Rapids, em Michigan, nos Estados Unidos, Jennifer Heemstra estudou piano na Universidade Estadual do Michigan e, posteriormente, concluiu um mestrado em música no Cleveland Institute of Music. Como solista e musicista de câmara, se apresentou nos Estados Unidos, Europa, Ásia, Emirados Árabes e, agora, no Brasil. O amor pela música, evidente na devoção acadêmica, se alinhou, também, ao interesse por causas sociais. Além das teclas brancas e pretas, Jennifer comanda duas ONGs: a Kolkata Classics, que atua em Kolkata, na Índia, com aulas de música clássica para crianças e acesso à saúde voltado para mulheres vítimas de tráfico; a Pitch Pipe Foundation leva a melodia para os veteranos de guerra dos Estados Unidos.

Recém-chegada a Brasília, a artista se diz apaixonada pela beleza da cidade e pelo frescor do ar da capital. As plantas exóticas em meio ao concreto e o calor e receptividade dos moradores a encantaram logo na chegada. Nos primeiros dias de casa nova, ela foi convidada pelos vizinhos a assistir uma apresentação musical natalina no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A generosidade do convite e a musicalidade dos brasileiros tornaram aquela experiência impactante e um marco do novo começo.

Jen viu as ondas sonoras emitidas pelo piano dela se dissiparem nas barreiras invisíveis da pandemia. As possíveis praças e salas de concerto da cidade estavam fechadas. Diante da impossibilidade de se apresentar, a pianista resolveu reinventar a própria sala de estar. Em posse de alguns equipamentos de show, Jen montou um cenário profissional em casa, centralizou o piano na sala e convidou o amigo Patrick Yim, que veio do Havaí para acompanhá-la ao violino.

Concerto na casa de Jennifer Heemstra: uma ação cultural para reunir a comunidade. Arquivo pessoal
Concerto na casa de Jennifer Heemstra: uma ação cultural para reunir a comunidade | Foto: Arquivo pessoal

Os vizinhos foram, então, convocados para presenciar o novo projeto. Uma hora antes do horário marcado, o jardim estava aberto com drinques e petiscos para que Jen conhecesse os novos amigos de rua. Se o inglês dos moradores, por vezes, não era o melhor, a música serviria de linguagem universal. E a conversa com notas rendeu de forma harmoniosa. Em duas semanas, a dupla se apresentou seis vezes. Em um segundo momento, Jen promoveu mais um ciclo de apresentações com o duo de violinistas Luciana Caixeta e Ricardo Palmezano.

Para completar, fez uma versão da apresentação voltada somente para as crianças do bairro. Atualmente, com a melhora da pandemia, a artista já voltou a se apresentar em salas de concerto, mas mantém uma periodicidade de uma ou duas apresentações por mês em casa para reunir os, agora, amigos da rua.

Uma das moradoras da rua é a brasiliense Núbia Holanda Cavalcante, taquígrafa da Câmara dos Deputados. Ela relata que gosta de receber bem os novos vizinhos. Ao ver o marido de Jennifer, que chegou primeiro, fazia questão de cumprimentá-lo. Nas conversas ao portão, ele destacava as qualidades da esposa musicista, que estava por vir.

Burocracia

Quando Jennifer chegou, Núbia foi conhecê-la. A vizinha e o marido convidaram o casal de estrangeiros para entrar e bater um papo. A visita rendeu ótimas conversas e deu início à amizade. Antes mesmo de Jennifer anunciar o primeiro concerto para a rua, Núbia teve o privilégio de conseguir ouvi-la ensaiar da própria casa. Quando o convite veio, foi impossível recusar. O emocionante concerto cumpriu o papel de unir a rua e quebrar o marasmo pandêmico. Núbia relata se inspirar na força de vontade de Jennifer. A taquígrafa relata que a pianista, apesar das adversidades burocráticas brasileiras e dos diversos “não” recebidos, não impedissem o projeto.

Jennifer e Núbia provam que uma vizinhança unida é aquela que dialoga. Seja em qual língua for; inglês ou português. Contanto que os sons vibrem pelo ar, há a possibilidade de amizades incríveis. No caso da vizinha na quadra 26 do Lago Sul, fala-se música.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira