Moradores da mesma quadra de Brasília unidos pelo talento na cozinha

Liana Sabo

Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar
Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

Vizinhos não são só os de porta. Podem morar no mesmo bloco e se sentir vizinhos. Ou até mesmo de quadra. Há quem se considere vizinho de alguém que resida a uma distância mínima, capaz de ser percorrida a pé: de um bloco para outro. Como no caso do publicitário Charles Marar. Ele até consegue ver do seu próprio apartamento se há luz acesa na cozinha da “vizinha” Neide Pimenta Magalhães, residente em outro bloco da mesma 216 Sul.

A luz acesa ou alguma movimentação é a senha para ele ligar e perguntar com franqueza: “O que você está fazendo?” Invariavelmente, Neide estará cozinhando. Depois da família (filhos, noras, netos e o novo neto Theo, de quatro meses), e dos amigos, a paixão dela é fazer comida. Às vezes até o trivial, mas o que mais a inspira é mesmo o gosto requintado. De um prato tradicional, como a canjiquinha mineira, feita de costelinha de porco, Neide extrai uma explosão de sabores e texturas que não ficam devendo a nenhuma iguaria. Ser convidado para degustar a canjiquinha é um privilégio ímpar. Charles não perde nenhuma chance.

Nascida em Sabinópolis, interior de Minas, Neide viveu no estado por 18 anos quando se casou e foi morar em Aracaju por cinco anos. De lá veio à capital, onde passou a trabalhar no serviço público. O interesse pela gastronomia surgiu depois que o primogênito, já formado, voltou de Londres e passou a cozinhar, aos domingos, mostrando o que aprendera no trabalho em restaurantes. “Foi assim que a luzinha se acendeu e comecei a me interessar pelo tema fazendo as primeiras aulas com a chef Susana Leste na garagem de sua casa na W-3 Sul”, conta a aprendiz de mestre cuca, que também acompanhou as aulas dadas no restaurante Alice, no Lago Norte.

Ela também entende muito de vinho e participa dos cursos da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-DF) com degustações que a deixam apta a harmonizar a bebida com o extenso e variado cardápio de sua autoria.

Outro prato que ela elabora com maestria é o pernil inteiro pururucado. Aliás carne suína é a sua predileção. Embora de origem árabe, o vizinho Charles não é muçulmano, por isso não está impedido de consumir porco — ingrediente vedado a árabes e judeus. Como todo o cristão, ele pode perfeitamente se deliciar com esse tipo de carne macia, saborosa e cada vez mais gastronômica. O que dizer da maciez da raça Duroc, que está conquistando os paladares?

Comida de beduíno

Charles tem nas veias o DNA da boa cozinha. A mãe, Najila Marar, jordaniana de 91 anos, que mora desde 1948 em Bauru (SP), até a pandemia vinha sempre a Brasília preparar o jantar de aniversário do filho, no mês de maio. Na mesa, a culinária árabe, uma das mais antigas e aromáticas do mundo, reinava com uma série de pratos todos feitos artesanalmente, como homus, quibe de bandeja, kafta de forno, arroz com lentilha, babaganuche, coalhada e o exclusivíssimo Mansaf, que tem na base, pão de folha e por cima, arroz de açafrão e carne de cordeiro cozida na coalhada com snobar (pinoli) frito na manteiga.

“Trata-se de uma comida típica de beduíno, que é consumida no deserto com as mãos, daí o pão servir de prato”, esclarece a brasiliense Isadora Marar, formada em nutrição e personal chef com especialização na cozinha árabe/jordaniana, que aprendeu com a avó Najila. “Quando meus filhos eram pequenos, a minha avó passava temporadas comigo me ensinando todas as receitas desenvolvidas por ela”, lembra a neta.

Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar
Na foto, Neide Pimenta e Charles Marar | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

Já o pai Charles, que também apreendeu com Najila a preparar esse banquete — cuja fartura e generosidade são uma das principais marcas da hospitalidade árabe —, nunca transformou a habilidade em negócio e sempre cozinhou para os amigos. Há dois anos, porém, não podendo receber em casa por causa da covid-19, é a filha que abastece a sua despensa e geladeira. De falafel, esfirras, homus, chanclife e outras iguarias confeccionadas por ela e oferecidas todos os sábados na feira da QI 13 do Lago Sul. “Meu pai gosta de cozinhar para as pessoas”, entrega Isadora.

Apenas amigos

“Sozinhos há mais de duas décadas, Charles e Neide bem que poderiam casar,” propõe Najila, que gostaria muito que o filho tivesse alguém. “O casamento não iria durar um só dia”, reage, com humor, Neide, ciente das diferenças de temperamento e idiossincrasias de cada um. Melhor assim, para não interromper uma amizade profunda e firme que nem a crise sanitária abalou.

Recluso por um ano e meio, Charles quando revolveu sair de casa foi comer na cozinha da Neide, um espaço amplo e equipado com muito bom gosto. Ela também é perita na decoração de mesa e o faz com muitos recursos, graças à coleção de objetos e louças, afinal um dos filhos é sócio-proprietário da principal loja de equipamentos para hotéis e restaurantes da cidade.

Neide também investe na fórmula “viajar para comer”. Ela fez parte da primeira excursão enogastronômica que o ex-adido cultural e de imprensa da Embaixada da França Christian Couesmes, promoveu, no verão europeu de 2003, para a Borgonha e Jura, tendo como destaque “um jantar inesquecível na fabulosa casa de Paul Bocuse em Lyon”, como dizia o programa. Após elogiar a qualidade da comida, Neide escreveu no diário de viagem: “Um jantar no Paul Bocuse nos impele a atitudes mais comedidas, mas isto não aconteceu. Somos um povo alegre, barulhento, feliz e não ficamos tolhidos numa cultura que não é a nossa.

Ficamos muito à vontade, rimos alto, brincamos sem deixar de sentir o prazer de um jantar à francesa, quando o serviço é perfeito e descontraído, muito mais confortável do que um buffet”. A experiência na França serviu para aprimorar a atuação nos sabores.

Legado roqueiro da Plebe Rude é fruto de amizade de quase 5 décadas

Renata Nagashima

Arquivo pessoal
André X e Philippe Seabra: 40 anos de rock e muita estrada | Foto: Arquivo pessoal

Banda icônica do rock de Brasília, a Plebe Rude completou 41 anos de existência e a história do grupo caminha com a relação dos amigos André Philippe de Seabra, 55 anos, e André X Mueller, 60. Os dois se conheceram há quase cinco décadas, quando o mais novo ainda era uma criança, mas eles não imaginavam o legado que criariam juntos.

Formada em 14 de julho de 1981, a Plebe Rude, viria a se transformar numa das principais bandas de punk rock do Brasil. O grupo, originalmente, tinha como integrantes Philippe Seabra (guitarra e vocal), André X (baixo), Ameba (guitarra) e Gutje (bateria). Tempos depois, os dois últimos foram substituídos por Clemente e Marcelo Capucci. A Plebe chegou a lançar sete discos de estúdio e dois gravados ao vivo.

André veio de Curitiba para a capital em 1970, com os pais que eram professores da Universidade de Brasília (UnB). Por um tempo, o baixista morou na Colina, onde conheceu a maioria da galera da “Tchurma”, composta por jovens que mais tardar viriam fundar outras bandas como Aborto Elétrico, que posteriormente deu origem Capital Inicial e Legião Urbana, Blitx 64, Metralhas e outras.

Quando se mudou dos Estados Unidos para o Distrito Federal, em 1976, Philippe Seabra tinha apenas 9 anos e sequer falava português. Filho de um diplomata português com uma paraense, a família decidiu vir para o Brasil para que a mãe de Seabra ficasse perto da família, já que o avô dela era deputado em Brasília. Segundo ele, só começou a se sentir brasiliense quando conheceu a famosa Tchurma.

Os dois amigos se encontraram por meio de Alex, irmão mais velho de Philippe. “Ele era amigo do meu irmão e eu era mais aquele pirralhinho que ninguém dava bola”, brinca Seabra. No Lago Norte, as duas famílias moravam na mesma quadra e os mais velhos iam para a escola juntos, mas André e Philippe não se aproximaram de cara por conta da diferença de idade.

Depois de alguns anos, em 1978, André X se mudou com a família para a Inglaterra, onde a mãe faria um doutorado. “Foi bem na época da explosão do punk, então eu ficava gravando as bandas novas na rádio e mandando para o Alex, só que ele meio que ignorou. Mas o Philippe não, ele pegou e começou a tirar essas músicas na guitarra”, recorda o baixista.

Quando voltou para Brasília, André estava determinado a montar uma banda e começou a busca pelos integrantes. “Um dia eu estava na casa do Alex e ouço alguém tocar o Stiff Little Fingers, que é uma das bandas que a gente adorava. A pessoa estava tocando direitinho. Daí Alex me disse que era o irmão dele. Convidei o Philippe e desde então estamos aí, há mais de 40 anos andando juntos na Plebe.”

Donos de tradicionais lojas da Asa Sul compartilham histórias de amizade

Edis Henrique Peres

Francisco de Andrade proprietário da Casa Renato e seu amigo vizinho Jean Souza(cam. Azul)
Francisco de Andrade proprietário da Casa Renato e seu amigo vizinho Jean Souza (cam. Azul)

Duas das lojas mais antigas da comercial 308 Sul têm uma história de amizade entre os proprietários que começou ainda na infância, quando eles eram levados pelos pais para trabalhar no período de férias ou no contraturno das aulas. Ao longo de mais de 50 anos como vizinhos de parede, Jean Skaf, 55 anos e proprietário da loja de roupas Sua Casa Malhas; e Francisco de Andrade, 63 anos, da loja agropecuária Casa Renato, compartilham visitas em jogos clássicos de futebol e solidariedade em momentos dolorosos na vida um do outro.

“Passamos o tempo inteiro na loja, até mais do que ficamos em casa, então essa relação saudável entre a vizinhança do comércio é interessante, porque um ajuda o outro. Quando precisa trocar dinheiro, quando tem algum problema ou algum lojista está em dúvida sobre a índole de alguém, por exemplo, essa parceria é muito importante. Os comércios vizinhos são de pessoas muito presentes no cotidiano e esse vínculo se cria naturalmente. E com o Francisco, isso é ainda mais forte”, destaca Jean.

A loja de roupa Sua Casa Malhas foi aberta pelo pai de Jean em 1968. “Meu pai veio do Líbano. Primeiro ele parou no Porto de Santos, depois foi para São Paulo, seguiu para Bela Vista, no interior de Goiás, onde morava o meu tio. E, de lá, ele veio para Brasília e trouxe a família, para começar uma nova etapa da vida. Eu cheguei no Brasil com um ano e meio de idade. A loja foi aberta em novembro de 1968”, detalha.

Com o tempo, a cordialidade entre os vizinhos de comércio foi evoluindo, até se transformar em amizade. “Eu cresci na quadra e o Francisco começou a trabalhar com o pai. A minha amizade com ele dura 45 anos e sempre foi marcada pela lealdade e pela dignidade. Eu, inclusive, fui padrinho de casamento dele. Sempre estamos juntos. Saímos para almoçar juntos. Ele é um irmão que Deus colocou no caminho da minha vida. E é algo natural, porque no dia a dia estamos ali, na loja, se vendo”, argumenta.

Acolhimento

Francisco, da agropecuária Casa Renato, conta um hábito dos amigos. “Costumamos tomar um café da tarde, quase todos os dias juntos, aqui de frente para as duas lojas. Isso é por volta de 16h40. Quando o papo está bom, só saio de lá quando os meninos começam a baixar as portas da loja”, confessa. “Nesse momento aproveitamos para conversar de tudo: futebol, sobre o comércio, algo que aconteceu na nossa vida, de política meio de leve, para não ter discussão”, acrescenta.

A Casa Renato foi fundada em 1962, quando os pais de Francisco chegaram de Minas Gerais. “Meu pai tinha alguns negócios que não estavam dando certo, então ele decidiu vir para Brasília para recomeçar. Em 1961 ele já tinha visitado um amigo aqui e, no ano seguinte, decidiu vir de vez. Cheguei quando tinha 4 anos, mas me considero de Brasília”, ressalta.

Jean tem o mesmo vínculo com a capital que o recebeu de “braços abertos”. “Aqui é onde eu cresci, onde vivo e criei meus filhos, tenho meus amigos, é uma cidade iluminada. Uma cidade que parece que tem um imã que atrai a gente. Mesmo que você viaje, você fica louco para voltar. Amo Brasília em toda a plenitude. Um dos meus pontos prediletos é o laguinho da 308 sul, em frente ao Bloco F, pois ia muito lá na minha infância. Além dele, tem a Igrejinha de Fátima”, conta.

Sobre o vínculo com a famosa Igrejinha, Jean confessa: “vou para lá quando preciso encontrar paz. Sempre frequentei a missa com meus pais quando criança, e quando preciso de um momento de reflexão, encontrar alguma solução, pensar no cotidiano, sento nos banquinhos ao lado da Igrejinha e fico ali”, menciona.

Paixão pelo futebol

Os dois amigos também estiveram presentes nos momentos importantes da vida um do outros. “O Francisco costuma vir à loja aos domingos cuidar dos passarinhos e uma vez ele chegou e ouviu um barulho dentro da minha loja e me avisou que alguém a estava invadindo. Por causa disso, consegui chegar a tempo de prender o homem dentro da loja até a polícia chegar”, explica.

Os lojistas, contudo, são apaixonados por times rivais no futebol: Jean é flamenguista e Francisco é torcedor do Fluminense. Jean lembra que ficou “traumatizado” com a disputa de 1995, do Fla-Flu, no Maracanã. “Fiquei insistindo com o Francisco para a gente ir assistir, até que ele aceitou. A gente conseguiu uma passagem e o ingresso do jogo de última hora e fomos para o Rio de Janeiro. Mas aí, o Flamengo perde de 3 a 2 para o Fluminense com o gol de barriga do Renato Gaúcho”, lamenta.

Francisco se lembra do episódio. “Eu não queria ir, porque duvidava da vitória do Fluminense. No fim, o Jean voltou meio triste depois da vitória do Fluminense, mas mesmo assim, a gente se divertiu bastante na viagem”, destaca. O proprietário da Casa Renato salienta que a amizade, muito além dos momentos divertidos, foi importante para superar os desafios impostos pela vida. “Quando meu pai morreu o Jean meu deu força. Assim como eu estive com ele na morte da mãe dele. É sempre assim. Nesses momentos uma pessoa pode conversar com o outro, desabafar”, complementa.

Parceria

A parceria entre os comerciantes da quadra não se restringe aos lojistas históricos da 308. Valéria Soares, 61 anos, da loja Tribalistas, chegou em 2020, mas se sente bem recebida e é participativa nos grupos dos proprietários. “Vim para cá (308 Sul) por causa da pandemia, que obrigou muita gente a fechar suas lojas e bagunçou as finanças das pessoas. Antes, a Tribalistas ficava dentro de um shopping. E muda bastante ser uma loja de rua, porque aqui a gente se une para se ajudarem, por exemplo, na questão de segurança”, observa.

Valéria detalha que os lojistas possuem um grupo no WhatsApp para se comunicar e organizar diversas ações na quadra comercial. “Quando é época festiva, de Natal, por exemplo, nos preparamos para decorar a quadra e deixar tudo bonito, cada um colaborando de uma forma. Há um engajamento muito grande entre todos, de ajuda. E com o tempo, todo mundo vai conversando, formando amizades, compartilhando um pouco de si com o outro”, expõe.

Crônica: Maravilha de Brasília

Dad Squarisi

Brasília

Na década de 1970, recebi um casal de amigos equatorianos. Fizemos um tour pela cidade. Foi um fim de semana de visitas, idas e vindas. Quando foram embora, perguntei-lhes o que tinham achado da nova capital. A resposta:

— Deu a impressão de uma cidade construída por extraterrestres, que a plantaram aqui e voltaram pra casa.

Queixaram-se da falta de gente nas ruas, falta de movimento, falta de alma. Se o casal voltasse hoje a Brasília e passasse um fim de semana aqui, veria que a capital dos brasileiros mudou. O brasiliense descobriu o lazer ao ar livre. A urbe ganhou vida.

Como não é uma ilha sem pai nem mãe, reflete os problemas das grandes cidades nacionais. Tem violência, desemprego, corrupção, segregação social, congestionamento de trânsito, filas em hospitais, transporte público deficitário.

Ela também projeta qualidades que enchem os brasileiros de orgulho. O brasiliense não buzina, respeita a faixa de pedestres, cumprimenta o desconhecido na rua, no elevador, no ônibus ou no metrô. Lê muito, frequenta bibliotecas, zela pelo meio ambiente para manter o ar respirável, as águas limpas e as áreas verdes intocadas.

Multidões vão às ruas. Manifestantes vestem o Eixo Monumental de verde-amarelo no belo exercício da cidadania. Acampam nos gramados do Congresso Nacional ou na Praça dos Três Poderes pra pressionar as autoridades e reivindicar direitos.

Nos feriados e fins de semana, a cidade se transforma. Brasília deixa de ser o corpo com cabeça, tronco e rodas. Ganha pernas. A população lota parques e ruas. Corredores invadem o asfalto.

Ciclistas pedalam em vias exclusivas ou misturados com pedestres que vão e vêm.

O Eixão dos carros vira Eixão do lazer. Gente pequena e gente grande enchem o domingo de cores, vozes e odores. Crianças correm, gritam, jogam bola, puxam carrinhos e passeiam cachorros. Skatistas se equilibram em voos que desafiam a gravidade.

Cadeirantes circulam, vendedores negociam, artistas se exibem, olhares se encontram. A capital dos brasileiros traz pras ruas seu patrimônio mais precioso — as pessoas. O casal equatoriano tem de voltar pra Brasília.

 

José Carlos Coutinho: “O brasiliense inventou as próprias esquinas”

Severino Francisco

José Carlos Vieira

ED ALVES/CB/D.A Press
Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

O professor aposentado de arquitetura da Universidade de Brasília (UnB) José Carlos Coutinho chegou a Brasília em 1968, com 33 anos, a idade de Cristo. Podia ser uma crucificação vir morar num lugar ermo, mas foi uma ressurreição. Veio de Porto Alegre para dar um curso de seis meses e nunca mais voltou, tornou-se um brasiliense de corpo e de alma. Ele é uma das figuras mais elegantes, distintas e admiradas da cidade. Frequenta os principais eventos culturais de Brasília e o amigo Vladimir Carvalho espalhou a versão de que ele já foi visto em três lugares ao mesmo tempo. Nesta entrevista, ele fala sobre a singularidade das relações de vizinhança, os lugares encantadores e as ameaças ao futuro de Brasília.

Antigamente, as pessoas não ficavam em Brasília nas férias e, quando podiam, nem nos fins de semana. Como cidade rompeu os estereótipos e passou a criar uma identidade?

Existem os hóspedes da cidade, mas a cidade cresceu muito e tem um contingente que permanece e abraçou a cidade. Quer sossego, recolhimento. E Brasília tem muitos lugares amáveis e acolhedores. Eu, por exemplo, não sinto falta nenhuma de sair da cidade.

Que lugares considera encantadores em Brasília?

Gosto muito do Pontão, dos parquinhos de entrequadras. Neste momento, estou na Praça das Carpas na 308 Sul, não existe isso em lugar nenhum. O que me encanta é a juventude, as crianças brincando, as mulheres passeando com seus cachorros. Acho encantador. O contraste entre as vidas que estão acabando e as que estão se iniciando. Hoje, há muitos programas atraentes na cidade. Ontem, fui à Escola de Música assistir a uma Missa de Bach, executada por um coral e orquestra. São aqueles momentos em que Brasília parece uma cidade e uma cidade civilizada. Tem bons cinemas, boa música, bons filmes. O Parque da Cidade é muito bonito.

Que lugar recomendaria para uma visita?

Recomendo ir até a Pedra Fundamental de Brasília, próximo a Planaltina. A maioria das pessoas nunca foi lá. Tem um horizonte de 360 graus, ali, você se sente senhor do mundo. O Lago não é só interessante no Pontal. Digo às pessoas que elas não se dão conta de que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza. Parece mentira que quase ninguém conhece o criador do Lago Paranoá. Foi uma pessoa que veio do Rio de Janeiro na Missão Cruls, chamado Auguste Glaziou. Não tem nenhuma uma homenagem no espaço urbano que lembra a sua existência. Está na hora celebrar Joaquim Cardozo (Joaquim Maria Moreira Cardozo foi um engenheiro estrutural que ajudou Oscar Niemeyer, além de ser poeta, contista, dramaturgo, professor universitário) ou Glaziou. Não precisa ser nada muito grandioso, bastava fazer um monumento. Gosto da Ponte do Arcos, que tem uma prainha deliciosa, bem popular, com acesso de ônibus para as pessoas simples fazerem piqueniques ou nadar. Se há algo popular, é lá. Sou um observador social, mais do que ver, gosto de observar e imaginar o que se passa com aquelas pessoas.

Como vê essa história de que Brasília não tem esquinas e as pessoas não se encontram?

Isso virou piada, não se pode reduzir as singularidades de Brasília. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar. Tenho um grupo de amigos que, todas as sextas, marca um ponto para se encontrar. Tem a Banca da Conceição, eu brincava com ela: “Você criou uma nova esquina de Brasília”. O habitante da cidade é muito criativo. A nossa obrigação é orientar para que seja para uma solução respeitosa do projeto urbanístico da cidade.

Brasília foi pensada para as pessoas usufruírem os espaços públicos, onde os vizinhos pudessem ter uma interação entre eles e as áreas ao redor. Essa ideia de Brasília persiste ainda hoje?

Criar um espaço urbano para permitir interações entre os que mora na mesma área não é invenção do Lucio Costa; é uma ideia tirada da sociologia urbana e do urbanismo americanos. A proposta era reproduzir em área pequena as relações de um lugar interiorano. Cada unidade deveria abranger em torno de 2 mil habitantes, com comércio, locais para lazer e escola. Mais do que local de ensino, ela é concebida como local de convívio. Muitos pais se conheciam em função das crianças. Isso funcionou durante algum tempo. Acontece que a população envelhece, as crianças se tornaram adultas e moram em outros lugares. Há um processo de transformação. Hoje, é preciso romper a barreira das relações virtuais. Algumas vezes, as praças estão vazias porque as pessoas estão na frente dos notebooks ou dos celulares, conversando com alguém da Finlândia. Isso é perigoso. Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos constatou o declínio no QI da humanidade, um emburrecimento da humanidade por se fechar nos mundos virtuais.

Os clubes de unidade e de vizinhança têm um papel importante nessa mistura de gente vinda de várias regiões do país. Essa célula urbana deu frutos?

Apesar de tudo, as unidades de vizinhança completas das quadras 108, 308, 107, 307 formam esse quarteto importante, pois têm o jardim da infância, a escola primária e escola secundária, com a proposta de ensino em tempo integral, concebido por Anísio Teixeira. Tem igreja, cinema, restaurantes, comércio e clube. O clube, que antes atendia a população moradora, se tornou um equipamento como os outros, que acolhe pessoas de todos os lugares. Mesmo assim, é um equipamento agregador. É útil, trabalhei no Instituto do Patrimônio Histórico e promovi o tombamento das unidades de vizinhança mais completas. O Oscar começou a jogar basquete em um desses clubes. São equipamentos essenciais, mesmo que sofram um processo de transformação inevitável.

O que se perdeu e o que se evoluiu das ideias de Lucio Costa para a capital?

Eu acho que mais do que a Esplanada e a Praça dos Três poderes, a Unidade de Vizinhança é o ponto alto do Plano Piloto de Lucio Costa. Só lamento que seja privilégio de 10% da população de Brasília. Por que não ser extensiva das cidades satélites? Houve um empobrecimento da administração de Brasília que depauperou as propostas iniciais. Chegou haver um deputado que pediu a transformação das superquadras em condomínios fechados. É um absurdo, a ideia da superquadra é a de espaço público transitável em todas as direções. O piloti é um espaço público. Você atravessa o prédio, são graus de liberdade total do solo.

“Digo às pessoas que elas não se dão conta que o Lago é a obra mais fascinante de Brasília, não é o Itamaraty ou a Catedral Metropolitana. O Lago é uma obra da inteligência humana, não é uma dádiva da natureza”

 Vemos nos anos anteriores à pandemia a volta das pessoas às áreas públicas da cidade, carnavais de rua, piqueniques e eventos de toda natureza… É esse o DNA de Brasília?

Acredito que sim, a tendência das pessoas é ocuparem os espaços públicos. Gosto muito do Setor Comercial Sul, é bonito ver a travessia da população trabalhadora. Os espaços dos shopping centers são expressão do enclausuramento da vida pública. Morei algum tempo na Inglaterra e visitei um shopping-center que era agradabilíssimo no início. Era unidade fechada, climatizada, com jardim e canto dos pássaros. Mas, depois, percebi que o jardim era artificial, as árvores eram de plástico e os cantos eram gravados. Quer dizer, estávamos no admirável mundo novo. Não tem nada a ver com o plano de Brasília, que contempla uma escala bucólica maravilhosa.

O antropólogo James Holston, autor de Brasília: Cidade modernista, disse que a cidade era triste. Como percebe as ideias dele?

Olha, conheci o James Holston. Ele chegou a Brasília com ideias prévias e não encontrou a Brasília que imaginava. Em vez de rever suas ideias, passou a negar Brasília. Lamentava, por exemplo, o tipo de vegetação das superquadras, pois ficou muita alta e ocupava o espaço dos edifícios. Mas eu acho que isso é uma sorte: tem edifícios que precisam de árvores bem altas para formar uma cortina verde que os proteja do sol e do barulho.

Como vê o futuro de Brasília? Não existe uma séria ameaça de que a escala bucólica da cidade e a qualidade de vida sejam comprometidas pela concepção rodoviária dos governantes?

Concordo inteiramente, haja vista a macarronada que fizeram no Sudoeste, invadindo o Parque da Cidade. É uma mentalidade rodoviarista. Está na hora de pensar a cidade com uma outra lógica de transportes. Já estão falando em duas novas pontes e em uma avenida interbairros no Lago Sul. Não são apenas soluções técnicas, são soluções financeiras. São obras de que os empreiteiros gostam muito. Os beneficiados não serão os motoristas, mas, sim, os empreiteiros e as imobiliárias. Sou pela simplificação do trânsito e pela primazia ao transporte coletivo. Não tem maior absurdo, a lógica seria os carros diminuírem de tamanho para ocuparem menos espaços. Mas o que a gente observa são veículos cada vez mais gigantescos, cada vez mais parecidos com ônibus individuais. Falta bom senso e políticas públicas. Esse é o verdadeiro sentido da política: estimular as boas tendências.

“Essa história de que Brasília não tem esquinas virou piada. Claro que a esquina da cidade tradicional é muito interessante. Mas o brasiliense criou as suas próprias esquinas, inventou as maneiras de se relacionar”

 

Unidas pela fé, vizinhas promovem o projeto Novena Natalina

Edis Henrique Peres

Ismenia e Regina durante apresentação na 213 Sul
Ismenia e Regina durante apresentação na 213 Sul | Foto: Arquivo pessoal

A história de mais de 22 anos de amizade entre melhores amigas nasceu aos poucos em encontros, passeios e eventos religiosos. “Sem pretensões e sem que a gente notasse: quando percebemos, estávamos nesta intimidade danada”, descreve Regina Cintra, 69 anos, moradora da 314 Sul. O primeiro contato entre ela e Ismenia Maria Magalhães, 74, residente da 213 Sul, ocorreu no Santuário Nossa Senhora do Carmo, ainda na década de 1990, quando Regina foi buscar uma das filhas na catequese.

“A Ismenia frequentava a missa com violão, ensinando as crianças a tocar. Dessa forma, aos poucos fui conhecendo ela enquanto eu participava da celebração. Depois, fui convidada para encontros da igreja e de lá em diante começamos a fazer retiros e cursos juntas”, lembra. O vínculo, ao longo dos anos, se fortaleceu, motivado pelo mesmo motivo do primeiro encontro: a fé. “A Ismenia é responsável por uma Novena de Natal no bloco do prédio dela, e ela me chamou para participar. As novenas são feitas, a cada dia, na casa de um vizinho e isso estreitou muito as nossas relações, porque ao fim era realizado um jantar e sempre tinha muita conversa”, afirma.

Mesmo morando em outra quadra, Regina foi muito bem recebida pelos condôminos. “Eu me auto-intitulava intrusa, porque tinha o benefício de usufruir o que a quadra deles ofereciam. E com toda essa relação, o meu contato com a Ismenia se aproximou e criamos um vínculo muito forte. Não somente entre nós, mas a minha família toda com a família dela. Virou uma coisa bem misturada, sólida e verdadeira”, garante.

A moradora do 314 confessa: “Ismenia é minha melhor amiga. Nem tenho palavras para descrever essa relação. Mas posso te dizer que nunca tive uma amizade tão profunda, nem na época de minha adolescência, como tenho hoje com a Ismenia. Hoje, inclusive, sou madrinha de casamento da filha dela. Nos aniversários estamos juntas. É uma relação que não foi programada, foi natural, quando acordamos, ela já estava ali, tinha acontecido. É muito verdadeira”.

Solidariedade

O projeto de Novena Natalina, organizado por Ismenia, acontece há mais de 30 anos na quadra 213, no Bloco A, local em que reside. “Sou muito religiosa e sempre achei que uma forma de viver melhor seria rezando. Isso ajudou muito na união do grupo de moradores”, conta. O projeto começou de forma simples, com um terço que era rezado com as crianças, com a participação das mães que acompanhavam os filhos.

“Depois, isso se transformou em uma Novena de Natal. No último dia da Novena fazemos uma ceia, em que cada um leva um prato. É uma comemoração muito especial, que tem de tudo: doces, frutas, peru. É a união de todos os moradores”, garante Ismenia. A comemoração era enfeitada com ares de natal e os bebês nascidos naquele ano representavam, nas peças encenadas pelas crianças, o menino Jesus em seu nascimento. “Essa coisa de evangelizar realmente sempre foi algo nato meu”, complementa Ismenia.

Contudo, muito além de apenas um festejo religioso, o grupo se preocupa em promover ações concretas. Em cada novena o grupo promove doações para entregar às pessoas vulneráveis. “A única coisa que atrapalhou as nossas novenas foi a pandemia. Mas neste ano espero que a Novena possa voltar a acontecer de novo, quero muito retomar as nossas atividades”, reforça Ismenia.

As festas natalinas tinham até a presença do Papai Noel
As festas natalinas tinham até a presença do Papai Noel | Foto: Arquivo pessoal

Um céu aquarela

Regina foi encontrar a melhor amiga a mais de 1.200 km da cidade natal, sob um céu colorido que nem acreditava que existia. Nascida em Vitória, ela chegou em 1974 à capital do país. “A maior parte da minha família continua lá, mas aqui eu recebi muito acolhimento”, garante.

Ismenia, contudo, desembarcou na capital um pouco antes. “Minha família era de Formosa, cheguei aqui em 1971. Desde então fiquei por aqui e morei em vários locais. Na 213 Sul, moro há 35 anos. Praticamente vi muito do progresso que Brasília trouxe, principalmente a singularidade da capital”, assegura a moradora.

A particularidade é o ponto em comum de admiração também de Regina, que se formou em decoração de interiores. “Brasília sempre me atraiu muito pela arquitetura. Ficava pensando no lugar que eu vivia que era quase surreal”, afirma.

A beleza natural do Planalto Central era outro encanto para Regina. “Gostava de fazer pinturas, mas quando via aqueles céus coloridos, com laranja, lilás e tantas cores eu pensava que aquilo era uma mentira, que não tinha como um céu ser daquela cor. Contudo, quando cheguei aqui, descobri que isso existia. Descobri que isso era possível somente aqui em Brasília”, finaliza.

Escoteiros de Brasília se conectam com a comunidade

Edis Henrique Peres

Arquivo Pessoal
O grupo de escoteiros Lis do Lago tem uma grande atuação social na região | Foto: Arquivo pessoal

O grupo se organiza, entre a vegetação, para montar o acampamento. Os mais velhos orientam os “lobinhos” sobre como dividir as tarefas, a maneira correta de acender a fogueira e estruturar as barracas. Os escoteiros, além de aprenderem sobre como lidar com situações de perigo e sobrevivência, também são instruídos com ensinamentos e valores como lealdade e ajuda ao próximo. O Grupo Escoteiro Lis do Lago nasceu em Brasília há 38 anos e desde então tem uma história de atuação com os moradores do Lago Norte e de diversas regiões administrativas da capital. Rafael Werneburg começou a prática do escotismo aos 10 anos de idade, e hoje, aos 26 anos, o morador do Lago Norte atua como voluntário, auxiliando a nova geração de escoteiros da capital federal.

“Minha mãe tinha uma amiga que trabalhava no grupo de escoteiros e ela queria apresentar o movimento para mim, nessa época, ainda nem morávamos no Lago Norte”, conta. Rafael afirma que fez muitos amigos ao longo do período que esteve no grupo de escoteiros. “Muitos que tenho afinidade até hoje. São vínculos que vão se construindo e ficando para a vida, porque ficamos muito tempo em atividades e acampamentos e isso fortalece a relação, principalmente porque no escotismo aprendemos a valorizar muito as amizades que construímos”, destaca.

Em retrospectiva, o químico confessa: “ser parte do grupo de escoteiro moldou todos os aspectos da minha vida, seja com relação ao trabalho, interpessoal, seja as escolhas profissionais. No movimento escoteiro se busca desenvolver aquilo que mais interessa à criança e ao jovem e eu tinha muito interesse em ciência exatas. Foi no grupo que aprendi a aplicar o conceito de liderança, por exemplo, porque precisamos estar à frente de outras pessoas, das patrulhas e matilhas. Foi o grupo que trouxe ferramentas para que eu expressasse essa liderança de forma saudável”, opina.

Ao longo de anos no grupo de escoteiros, Rafael fez uma amizade que ultrapassa somente os acampamentos. Lívia Maia, 26 anos, administradora e moradora do Lago Norte entrou no Lis do Lago aos seis anos e meio, em 2006. “Fiquei no movimento a minha vida toda e me afastei quando tinha 22 anos, mas meu irmão continua no escotismo. Conheci o Rafael logo quando ele entrou. Penso que a amizade de escoteiro é uma amizade diferente, porque passamos por muitas situações complicadas juntas. Vamos a acampamentos em que a barraca rasga, fazemos viagens que duram semanas e é natural que nesse tempo aconteça algum perrengue. É uma amizade em que a pessoa fica muito próxima de ser alguém da família”, avalia.

Lívia confessa: “a amizade minha e do Rafa foi se construindo ao longo da vida inteira e ainda estudávamos na mesma escola, então isso estreitou ainda mais a nossa relação. Já acampamos, inclusive, em outros países, chegando a ficar meses viajando. O mais longe que já fui foi na Islândia. E acho que um dos episódios que marcaram muito foi quando estávamos acampando e de madrugada passou um cupinzeiro atravessando o acampamento e eles saíram rasgando as barracas. E o Rafael, que sempre foi responsável, começou a liderar e a ajudar os outros, levantando as barracas para que a gente não ficasse sem e orientando os mais novos, que ainda não sabiam o que fazer. Sempre tem esse espírito, dos mais experientes ensinar os outros o que eles devem fazer”, explica.

Desenvolvimento

Chefe de tropa, Deomar Rosado, 66 anos, começou no grupo como voluntário, para conseguir uma vaga para o filho, e desde então, se dedica ao Lis do Lago. “O escotismo trabalha as áreas de desenvolvimento social, afetivo e espiritual, com a realização de educação lúdica em espaços abertos. Estou no grupo há 30 anos e a gente realmente se engaja, as famílias participam, se cria um vínculo de amizade entre todos que é muito forte”, revela.

Deomar detalha que o objetivo é que as crianças e jovens aprendam na prática os conteúdos. “Eles se organizam e entendem o conceito de equipe. Também é trabalhado a questão da sustentabilidade, de cuidar dos animais e das plantas, da biodiversidade. E sempre buscamos os adultos voluntários. Além disso, em cada faixa etária existe um ponto a se desenvolver, nos mais novos, há a fantasia; nos adolescentes, focamos no vínculo e amizade; nos jovens de 15 a 17 anos, tem a questão do empoderamentos e dos desafios; e a partir dos 18 anos, eles começam a querer ser pioneiros, porque estão entrando na faculdade, estão no serviço, então existe muito trabalho focado na autonomia”, afirma.

Antes da pandemia, o grupo tinha cerca de 140 escoteiros, mas atualmente, as atividades estão voltando aos poucos, segundo Deomar. “Temos cerca de 90 escoteiros na ativa, e 25 voluntários adultos. Nosso objetivo é retomar as atividades, principalmente essa carência por adultos voluntários, porque quanto mais temos, maior o número de crianças que podemos monitorar no acampamento”, explica.

Tradição

Na família de Lívia, participar do grupo Lis do Lago é praticamente uma tradição. “As minhas irmãs que têm mais de 30 anos, foram escoteiras, e meu irmão, que hoje tem a metade da minha idade, está com treze anos, é escoteiro. Então o Lago Norte é realmente ligado pelo Lis do Lago, e toda uma geração familiar também se une devido ao escotismo. Minha mãe até hoje está muito envolvida nas atividades do grupo”, admite.

Para Rafael, além da vivência no grupo de escoteiros, um cartão-postal de Brasília também marcou a sua infância. “Até fiquei recentemente morando em São Paulo, mas voltei para Brasília. Aqui tem um diferencial, gosto muito da organização da cidade, da forma como ela foi construída e tenho uma memória afetiva muito forte com a cidade, principalmente com a Torre de TV. Antigamente, a feirinha ficava bem embaixo da Torre e sempre íamos lá no fim de semana. Isso sempre foi algo que ficou marcado, acho que tanto pelo visual da Torre em si, mas também por ser um lugar que a gente (pelo mirante) consegue ver a cidade inteira)”, pondera.

Festa junina da 213 Sul: tradição desde a década de 1990

Edis Henrique Peres

Carlos Vieira/CB/D.A.Press
João Matos e Eliane Abreu com o álbum de imagens das festas juninas no Bloco A da 213 Sul | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Os meninos pintam no rosto um bigode que simula a barba que ainda vai crescer, enquanto as moças, de chiquinha, bochechas coradas com maquiagem e pintinhas marcadas de lápis de olho rodopiam com os vestidos coloridos e rodados. De chapéu de palha, a quadrilha entra ao som das músicas típicas e ao grito de “olha a cobra”, todos pulam. É festa junina! Para os moradores da SQS 213, do Bloco A, o festejo é uma tradição com quase 30 anos de história. “Os três primeiros anos, praticamente, era apenas uma festa para os nossos filhos, depois foi crescendo, e o bloco G começou a nos ajudar. No fim, fizemos 29 edições. Paramos por causa da pandemia”, conta João Matos, 80 anos, servidor público aposentado.

João relembra que foi a filha, Patrícia, que deu o primeiro impulso para o surgimento da tradição do arraial. “Aqui no prédio temos muitos nordestinos e gaúchos. Eu sou do Ceará, por exemplo, e todo mundo é muito animado para festejar. Minha filha também era festeira e, brincando com as crianças, inventaram de fazer uma quadrilha, e nós, os pais, acabamos incentivando a animação deles”, detalha.

Outra moradora que atuou nos quase 30 anos de festa, Eliane Abreu, 73, servidora pública aposentada do GDF (Governo do Distrito Federal), lembra que as crianças se dedicavam na produção de bandeirolas feitas com jornal e revista. “Fizemos algo simples nos dois primeiros anos, somente para os moradores do nosso bloco. As crianças dançavam a quadrilha e os pais desciam, cada um com um prato: trazíamos bolo, pipoca e balas doces”, revela.

Rapidamente, o espírito de São João cresceu e tomou proporções maiores. “Uma das moradoras, muito animada aqui do bloco, começou a descer com violão para tocar com as crianças e então começamos uma quadrilha também com os adultos. Aos poucos foi se formando as barraquinhas, de canjica, galinhada, feijão tropeiro, tudo feito pelos próprios moradores. Quando percebemos, a festa tinha tomado outro ar e precisávamos até pedir autorização para o GDF para realizá-la. Não era mais só uma festinha de criança, como começou”, afirma João.

Eliane diz que o foco era reunir as famílias da quadra. “Lógico que quem passasse e quisesse participar era bem vindo. E isso foi se tornando cada vez mais comum, a nossa festa unia a quadra toda, e quem vinha uma vez, cobrava a festa no ano seguinte e a comemoração começou a ficar famosa. Só não fizemos nos últimos anos por causa da pandemia”, ressalta.

Arquivo Pessoal
Grupo de moradores reunidos para cortar os ingredientes para o cachorro-quente da festa | Foto: Arquivo pessoal

Compromisso

Responsável por fazer o cachorro-quente para a festa, Eliane relembra o que considera os melhores momentos do grupo: “a noite de véspera”. “A festa tem uma comissão organizadora, que tem entre 15 e 20 pessoas. No início, precisávamos fazer várias reuniões para organizar tudo, e como não tínhamos salão no nosso bloco, as reuniões eram feitas a cada dia, na casa de uma pessoa. E isso era por si só muito animado. Ao fim, a pessoa servia um jantar, e era uma diversão só”, conta.

A realização do evento, contudo, demandava um grande esforço dos organizadores, com dias dedicados ao preparo dos alimentos, compras e licenças necessárias. Eliane e João, apesar disso, recordam com alegria das noites que o grupo passava, praticamente em claro, para conseguir preparar as comidas típicas. “A gente precisava na noite anterior se reunir na casa de alguém para cortar a charque, a cebolinha, preparar a carne para o espetinho e cortar a cebola. Quem não tinha dado reunião na sua casa, trazia a comida daquele dia que seria a nossa refeição. Era muito trabalhoso, mas ao mesmo tempo era divertido. A esposa do João, por exemplo, era responsável por temperar a canjica. Meu esposo era quem cuidava das finanças da festa, porque ele é auditor fiscal”, acrescenta Eliane.

Aos poucos, a Comissão pegou o ritmo da organização do evento e não precisava de tantas reuniões. “A gente já tinha um script a seguir. Mas a cada ano, anotamos os erros e acertos e conversamos ao fim da festa para ver o que não devíamos fazer e o que tinha funcionado. Para que no ano seguinte, fosse ainda melhor”, pontua a aposentada.

João revela que, com o passar do tempo, como os moradores foram envelhecendo, o grupo decidiu diminuir o número de afazeres manuais. “Antes, a gente montava as barracas e cavava os buracos para erguê-las. Mas do meio para o fim, percebemos que não dava mais, então compramos a estrutura de metal. Temos até hoje as lonas, as barracas, o fogão e a churrasqueira guardadas”, salienta.

Solidariedade

Em dois grandes álbuns, parte da história da festa junina da SQS 213 é eternizada. Um deles é um arquivo com os diversos documentos de cupons fiscais, rendimentos das festas, gastos e atas das reuniões. O grupo, inicialmente, teve dúvidas do que fazer com o valor arrecadado no arraial até que tiveram a ideia de doar o valor para alguma instituição de caridade.

“A gente decidia tudo em votação. E quando decidimos pela festa não sabíamos o que fazer com o excedente, então um morador sugeriu doar e todo mundo apoiou”, recorda. “Mas antes disso, para levantar o dinheiro que seria investido, cada membro da Comissão emprestava um valor nessa etapa inicial. A festa era feita no sábado, e no dia seguinte, no domingo, já pagávamos, para cada um, o que tinham emprestado. Nunca nem um morador ficou sem receber. Logo depois fazíamos uma reunião de rendimentos e do que tinha sido gasto, e escolhíamos para qual entidade seria destinado a doação”, explica.

Já o segundo álbum, guardado ainda com mais esmero, é um convite à memória. A cada página, as fotografias contam a história dos moradores: um vínculo que vai além da festa junina, que se traduz em amizade entre os residentes do Bloco A e também de afeto com a capital do país. “Vim para Brasília para passar somente um ano, cheguei em 2 de novembro de 1981, saindo do Espírito Santo com meu esposo. Hoje, mesmo visitando meus familiares que moram lá, logo quero voltar. Meu lugar é aqui, onde criei meus filhos. A gente acaba se apegando. As pessoas falam que aqui não tem praia, mas eu não sinto falta”, frisa.

Na Asa Norte, empatia, preocupação e interação mesmo durante o isolamento

Arthur de Souza

 Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
Marta Simone (E), Teresa Cristina (C) e Silvia Perez: ações para unir os moradores | Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A. Press

A síndica do Bloco H da 210 Norte, Silvia Perez, 58 anos, idealizou — junto aos moradores do edifício — eventos que proporcionam uma melhor convivência e funcionam como uma válvula de escape para momentos difíceis, como a pandemia. Empatia, preocupação e interação. São essas as palavras que, talvez, possam definir a união entre Teresa Cristina, 59 anos, Silvia Perez e todos os moradores do Bloco H.

As duas vizinhas entram em cena como as principais cabeças por trás de eventos que acontecem no prédio, que são criados com a intenção de gerar mais aproximação entre os moradores. Apesar de não ter mais residência no edifício, Silvia se mantém como síndica, com aprovação dos vizinhos, e conta que a primeira ideia surgiu quando ainda morava na quadra. “Há algum tempo, fiz uma iniciativa que se chamava ‘entre vizinhos’, e era justamente com a pretensão de estimular os moradores a se conhecerem e conviverem”, comenta.

“Nós fazíamos a preparação para os eventos, decidindo sobre decoração e o que seria servido, por exemplo. Isto já era algo muito positivo, porque as pessoas acabavam se conhecendo durante as reuniões e amizades acabaram sendo feitas”, relembra. Teresa, que ainda mora no edifício, é uma das que criou amizades com os primeiros eventos. “Uma vizinha do meu andar foi embora para Curitiba, mas mantemos a amizade até hoje. Também teve uma professora belga, que veio para cá fazer doutorado na Universidade de Brasília (UnB) e acabei criando uma boa relação”, relembra.

Aproximação essencial

Com a pandemia, Silvia diz que todos os moradores passaram a se preocupar uns com os outros, momento em que tiveram a ideia de criar mais um evento, para manter a interação, mesmo em um momento de pouco contato. “Além de imprimir algumas rotinas, como fazer telefonemas, tivemos a ideia de fazer o “troca-troca” de livros, em 2021, que foi muito bem aceito por todos”, frisa. Teresa lembra que foi tudo feito no improviso. “Conseguimos uma base de madeira e colocamos os livros nela, dividindo de acordo com o tema de cada um, tudo no protocolo de segurança sanitária. Quem pegava o livro, não tinha a obrigação de devolver e, o saldo que ficou, nós doamos. Passaram por aqui, cerca de 400 títulos diferentes”, destaca.

Para Silvia, o evento foi muito significativo. “A gente via pessoas que nunca tinham saído de casa, desde o começo da pandemia, descer com um livro e voltar com outro. Isso me fez pensar que os moradores estavam receptivos a buscar algum tipo de integração”, pondera. “É muito importante porque, principalmente durante a pandemia, a tensão foi tão grande, que vimos muitas brigas entre pessoas que moram próximas e, esse tipo de ação, diminui muito o atrito. Foi algo bastante legal, pois estávamos em um momento difícil, tudo fechado e, de repente, acha-se um jeito de fazer a interação entre os vizinhos”, considera Teresa.

Outros eventos

As duas reforçam que não foi só o troca-troca de livros que teve êxito nas intenções de integrar. “No carnaval que antecedeu a pandemia, em 2020, eu e a Silvia bolamos uma decoração. Fomos em Taguatinga comprar os adereços e, enquanto estávamos arrumando, o pessoal passava e se empolgava, perguntando o que iria acontecer”, detalha Teresa, que brinca afirmando que “a grande vantagem de fazer um evento como esse, no pilotis do prédio, é que o pessoal não precisou se preocupar com blitz (risos)”.

“Esse ano, no feriado de carnaval, com as pessoas vacinadas e tendo menor receio de sair de casa, tivemos a ideia de fazer um evento de habilidades pandêmicas. Cada um trazia algo que aprendeu e/ou aprimorou nesses dois anos de isolamento. E acabou virando um sarau, teve até violino”, lembra. Silvia revela que mais uma iniciativa de integração deve acontecer em breve, também com a essência da troca entre os moradores. “Qualquer coisa que a pessoa tenha e não queria mais, ela poderá trazer para doar. Sempre na intenção de propiciar a integração, pois, se a gente conseguir que duas pessoas, pelo menos, participem, já é algo interessante”, torce.

Além disso, a síndica do bloco comenta que, devido ao sucesso que os eventos fizeram, existe um planejamento para criar uma espécie de cronograma. “A ideia é tentar propiciar uma frequência maior nesses momentos de interação, para aproximar mais os vizinhos. Até porque, eles são as pessoas mais próximas que a gente tem aqui”, reforça.

Efeito positivo

Quem aproveitou os eventos foi a advogada Marta Simone do Carmo, 47. “As interações foram de grande ajuda. Na pandemia, também estava receosa em sair de casa e, agora nesse período mais ameno, trazer essa possibilidade de confraternização entre vizinhos novamente, é algo que faz a gente se sentir vivo outra vez”, afirma Marta.

Para ela, o bloco onde mora contribui para a criação desse tipo de iniciativa. “Penso que existe uma coisa muito especial. Todos têm uma preocupação muito grande em fazer essa troca, essa conversa”, considera a moradora. A advogada afirma que participar dos eventos foi uma experiência única. “Agregou muito na questão da valorização da convivência entre vizinhos, na amizade e na solidariedade. Além disso, quando colocamos os registros nos grupos, faz com que outros também se interessem em participar”, aponta.

“Praia” perto de casa: beach tennis para aliviar a tensão no Noroeste

Pedro Almeida*

ED ALVES/CB/D.A.Press
Ester Mauch, Beatriz França (C) e Ana Claudia: uma amizade que une esporte e qualidade de vida | Foto: Ed Alves/CB/D.A. Press

A ocasião faz o esportista. Não são raros os casos de craques de diversas modalidades que começaram no esporte pela comodidade de ter um espaço para praticar perto de onde moram. Para provar que a proximidade entre a casa e a quadra faz toda a diferença, o bairro do Noroeste apostou em campos de areia no intuito de incentivar os esportes de praia. O resultado foi positivo. As vizinhas Ester Mauch, 33 anos, Ana Cláudia Gomes, 35, e Beatriz, 35, se tornaram adeptas do beach tennis, ou tênis de praia, febre no bairro.

Em 2020, o mundo parou. A pandemia freou a sociedade e aboliu, por tempo indeterminado, o conceito de reuniões, especialmente em locais fechados. Aqueles que gostavam de se exercitar nos ginásios e academias sofreram um impacto a mais. No primeiro momento, as atividades físicas ficaram restritas aos quintais e salas de estar, que tiveram os sofás arrastados para o canto para se tornarem academias improvisadas.

Com um melhor entendimento da covid-19, as atividades ao ar livre foram paulatinamente liberadas. Ainda sem poder frequentar a academia, as vizinhas Ester, Ana Cláudia e Beatriz avistaram, da janela do prédio no Noroeste, uma nova possibilidade. Elas ainda não sabiam, mas a caixa de areia de pouco mais de 200 metros quadrados na praça traria um respiro frente às dificuldades vividas e mudaria a rotina das três.

Em pleno Cerrado, a fina areia branca confinada no paralelepípedo retangular emula a faixa à beira-mar. O calor, apesar de seco, nada deve ao clima litorâneo de verão. O beach tennis que leva, no nome, a palavra “praia”, achou uma nova casa bem longe de lá. O esporte, jogado por quatro pessoas, duas contra duas, funciona como uma mistura de tênis e vôlei de praia. A dupla de jogadores tem de passar a bola para o outro lado sem deixar que ela toque o chão dentro das quatro linhas. A lógica de pontuação segue a do tênis, dividida em sets e games. No Noroeste, contudo, há uma regra especial: que promova a socialização dos frequentadores.

Na ânsia de voltar a mexer o corpo e na comodidade de apenas precisar pegar o elevador até o pilotis, as três afundaram os pés descalços nos finos grãos e empunharam a raquete. O jogo cumpriu o prometido: fez o corpo suar e manter-se saudável; mas, além disso, trouxe um ouro escondido. O trio de vizinhas não se conhecia. Foi bem ali, resgatando a amistosidade de uma orla, que as três tornaram-se grandes amigas.

Hoje, o jogo é mero detalhe na relação. Ester, Ana Cláudia e Beatriz criaram um laço que vai muito além do campo e fazem, nas palavras de Ester, “de tudo juntas”, mas sem deixar de bater ponto nas sessões matinais do passatempo praiano. Pela frequência que as vizinhas vão à quadra, elas acabam por se encontrarem mais entre si do que com outras amigas que não praticam o esporte. Fica cômodo trocar confissões no banco de espera entre as partidas. À medida que as conversas avançavam, também progredia a proximidade. Hoje, as três já planejam uma viagem em conjunto, mas sem esquecer de colocar as raquetes na bagagem.

O trio não é caso isolado. Atualmente, o grupo de jogadores do bairro já soma duzentos participantes. Os equipamentos, comprados com a ajuda de todos, estão disponíveis para quem quiser a qualquer hora. Basta avisar os colegas e buscar na portaria do prédio. Se a luz das ruas já estiver prestes a ser apagada, basta acionar os holofotes instalados por eles e acionados por controle remoto. A pequena caixa de areia revolucionou um bairro inteiro. Mais do que 200 jogadores, o Noroeste ganha 200 vizinhos unidos. Neste caso, a ocasião fez a vizinhança.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira