Unidos pelo basquete, moradores do Sudoeste celebram parceria

Renata Nagashima

 Carlos Vieira/CB
Davi Andrade, Ricardo Bouvier e Gustavo Araújo (D): altas histórias | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

Quando se encontram, um bom papo é certo. Os amigos Davi Andrade Bentes, 23 anos, Ricardo Bouvier do Nascimento Silva, 23, e Gustavo Araújo do Nascimento Santos, 23, se conheceram e se aproximaram por causa do basquete e, desde então, toda partida é regada de boas memórias e resgate de momentos marcantes que viveram juntos por causa do esporte.

Moradores do Sudoeste, começaram a jogar em uma escolinha há 15 anos e, de cara, se deram bem. “Todo mundo morava perto e a gente começou a ir para os rolês juntos. O basquete aproximou muito a gente, definitivamente”, conta Davi. O estudante Ricardo concorda com o amigo. “A gente estudava no mesmo colégio e não nos falávamos. Por causa do esporte a gente começou a se falar. Em 2008 nos aproximamos para valer.”

Ricardo brinca que a relação do grupo era bacana, porque o time era bom. “Era muito boa aquela época. A gente participava de campeonatos, estávamos sempre juntos”, completa Davi. Foram muitos momentos juntos e o que não falta são histórias para contar. “Teve uma vez, em um campeonato, que eu fiz uma cesta contra sem querer, mas querendo. Eu fui com tudo fazer a cesta e só depois vi que tinha confundido as cestas e fiz uma contra. Eles não esquecem e até hoje é motivo de zoação”, recorda Ricardo.

Apesar de ter cometido a gafe, Ricardo é exaltado pelos colegas porque graças a ele, que não errava um lance livre, o time ganhou um campeonato sub 12 contra o time do Vizinhança. “Foi bonito, cara. Ele não errava o lance. Foi engraçado porque a torcida adversária ficava gritando lá, xingando e ele nem aí, continuava acertando todas e concentrado”, conta Gustavo.

Os meninos chegaram a viajar juntos para um campeonato em Anápolis, em Goiás, mas acabaram perdendo. “Nosso time estava fraco e os caras lá eram gigantes. Mas foi muito legal”, acrescenta Davi. No entanto, Ricardo faz questão de destacar que o time chegou em muitas finais de campeonato. “Ganhamos vários, mas teve uma época que a gente jogava contra um cara que hoje virou profissional, aí ficou complicado para a gente. Aí ele ganhava todos os campeonatos”, afirma.

Nem só de vitórias viveu o grupo, por ter poucas pessoas no time, às vezes eles perdiam por não terem integrantes suficientes. “A gente sempre passava aperto no campeonato, porque na nossa categoria tinha poucas pessoas, então tínhamos que chamar o pessoal mais novo para completar e em outros, perdíamos por WO. Então era sempre muita apreensão porque não sabíamos se ia dar o número de pessoas mínimas jogar. Além disso, não tinha como revezar, então não dava para descansar, era o jogo todo direito”, lembra Davi.

Por cinco anos o grupo treinou junto no mesmo local e mesmo depois de terem seguido caminhos diferentes, a amizade continuou. “Do time, fomos os que mais nos aproximamos, continuamos amigos e nos encontrando para jogar. Depois entraram outros, fomos chamando mais uma galera. Mas por morarmos perto um do outro, facilitou bastante”, explica Rodrigo.

“Às vezes a gente não tinha nada para fazer e aí ficávamos andando pelo Sudeste”, recorda Davi. Como não dirigiam quando eram menores, eles se encontravam na rua e costumavam fazer uma programação nas quadras próximas. “Ficávamos trocando ideia depois do basquete, na maioria das vezes, embaixo do prédio de alguém. Foi legal crescer tendo vizinhos que gostavam da mesma coisa que eu”, completa Gustavo.

Nos últimos anos, a frequência das partidas diminuiu, tanto por causa da pandemia quanto por causa da faculdade dos três. “A gente está meio parado na questão do basquete, mas não paramos de jogar”, diz Ricardo. Mas Gustavo rebate e afirma que os poucos encontros não fizeram com que os amigos se afastassem. “É bom, porque mesmo a gente não encontrando muito para jogar, estamos sempre conversando porque acompanhamos campeonatos. A gente discute sobre basquete e sobre o desempenho dos times. Sempre temos assunto por causa do basquete.”

Conheça projeto que uniu vizinhança da 105 Norte nos momentos mais difíceis da pandemia

Pedro Almeida*

Das janelas dos apartamentos, moradoras acompanhavam os artistas na quadra
Das janelas dos apartamentos, moradoras acompanhavam os artistas na quadra | Foto: Arquivo pessoal

Para afastar o tédio e quebrar o silêncio que ecoava na superquadra, da 105 Norte, durante a pandemia, a comunidade transformou o passeio público em palco musical e as janelas dos prédios, em camarotes. O projeto Música Solidária, concebido pelo prefeito da quadra, impactou e uniu os moradores, além de colaborar com os músicos locais.

Jeann Cunha, 35 anos, nasceu e se criou na quadra 105 da Asa Norte. Ao longo dos anos, nas andanças como morador de Brasília, se encantou com o trabalho produzido nas quadras que contavam com uma prefeitura comunitária ativa. O zelo e o senso de comunidade eram evidentes. A quadra em que morava, porém, não era uma delas. Determinado a mudar este paradigma, Jeann resolveu liderar o movimento de reativação da prefeitura da 105 Norte. À frente do posto, ele começou a agitar o espaço com eventos e arte. O amor pela superquadra natal se alinhou ao trabalho de agente sociocultural que ele já desempenhava fora dali.

O trabalho foi um sucesso. Os primeiros projetos deram resultados, mas foram seguidos de um hiato gerado pela pandemia, que havia acabado de chegar em 2020. Unir os moradores de uma quadra em tempos de distanciamento era uma tarefa árdua, mas não impossível. Sem desistir, Jeann reuniu amigos da cena cultural brasiliense e desenvolveu o projeto Música Solidária. A ideia consistia em fazer serenatas musicais para os moradores. Sem sair de casa, bastava abrir a janela e aproveitar a música do conforto do lar. Um primeiro evento-teste foi feito, e o resultado foi positivo.

O prefeito logo contatou os músicos que conhecia para dar corpo ao projeto. Não bastava simplesmente tocar uma ou duas músicas, Jeann queria realizar um verdadeiro festival. Os prédios receberam, um por vez, os shows particulares de vários gêneros musicais distintos. Os moradores ganhavam o alento da música em tempos tão difíceis e davam, em troca, uma doação em dinheiro para os músicos locais e suprimentos para instituições de caridade.

Todos ganhavam. Os residentes, com uma forma de espairecer e acalmar o coração; os músicos, que estavam parados, arrecadavam recursos; por fim, as pessoas carentes ganhavam mais um aliado na luta pela sobrevivência. Acima de tudo, o mosaico de bustos à beira das janelas, como uma coleção de namoradeiras, afastou a solidão e provou que, ainda que no pior dos tempos, o senso de comunidade estava presente na 105 Norte.

Instrumentistas se revezaram em apresentações durante o isolamento
Instrumentistas se revezaram em apresentações durante o isolamento | Foto: Arquivo pessoal

Foi justamente a ausência de um clima comunitário que assustou Alessandra Lima, 38. A carioca designer de interiores chegou a Brasília há aproximadamente quatro anos. O marido militar foi transferido para a capital e trouxe a família. Criada no Rio de Janeiro, ela conta que o clima de união entre os moradores do bairro em que cresceu fazia jus à alcunha de “comunidade”. O calor humano, típico do carioca, faz parte da vida de Alessandra, que se confessa “faladora”. O que ela encontrou por aqui, contudo, foi diferente.

A calmaria da 105 Norte acabou por ser propícia para a criação dos dois filhos pequenos, mas deixou uma lacuna no desejo de se relacionar com os vizinhos. Em 2020, a vontade de estreitar laços teria de ser adiada ainda mais tempo. O convite de Jeann Lucas à janela, por sorte, tratou de resolver o problema. Alessandra conta que, ao escancarar os vidros da janela, reviveu o clima que a marcou na infância e se emocionou. Sentiu-se ali, pela primeira vez, parte da comunidade. Ela faz questão de apontar a importância das artes e, em especial, da música, no enfrentamento da pandemia; foi o que a salvou, de acordo com ela. Hoje, ela se sente mais próxima dos vizinhos e admira o empenho de Jeann em transformar a superquadra em um grande lar.

O projeto Música Solidária, mesmo que não tivesse essa grande ambição de início, tornou-se uma forte alternativa de captação de recursos para o setor musical. Iniciada na 105 Norte, a ideia foi potente a ponto de tomar dimensões maiores do que o local em que nasceu. A iniciativa foi replicada em 10 quadras e engajou 70 atrações musicais brasilienses.

Pedro de Castro, 28, foi um dos músicos participantes. No Dia das Mães de 2020, ele estreou no projeto. Hoje, serenatas já se tornaram parte do repertório do saxofonista. Ao perceber o impacto do projeto, ele investiu em equipamento próprio para poder oferecer o serviço. Ele relata, também, que tem retornos positivos ainda hoje da divulgação que conseguiu à época.

Não há, afinal, vida sem música. Ainda que o mundo pare e as pessoas se recolham, a 105 Norte provou que a música pode ir a quem não pode ir ao encontro dela. E onde há música, há calor humano, há vida e história sendo escrita. Há, enfim, comunidade.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Crônica: Vizinho é irmão, ninguém escolhe

Paulo Pestana | Especial para o Correio

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Um dos pais fundadores de Brasília tinha tanta fé nos vizinhos que planejou a criação de vários clubes para eles. Seriam as unidades de vizinhança e estariam localizadas a cada quatro superquadras nas asas Sul e Norte do Plano Piloto, como forma de oferecer lazer aos moradores, com quadras esportivas, piscina, campo de futebol e biblioteca.

Talvez tenham faltado vizinhos, porque só deu para fazer um, na altura das quadras sete e oito da Asa Sul. Mas na verdade é a confirmação de que a ideia de colocar tanto vizinho perto não rende confraternização e está mais para confusão, até porque vizinho é igual a irmão, diferente de amigo: a gente não escolhe. E ninguém mais mexeu com a ideia de fazer clubes para reunir a vizinhança — já chega a reunião de condomínio.

Não se sabe de onde Lucio Costa tirou a ideia utópica de que vizinho é o mesmo que amigo. Ele próprio não devia ser um bom vizinho. Homem de personalidade forte, não era conhecido pela expansividade; ao contrário, era cerimonioso e reservado. Mas era sábio e tinha consciência do risco que correu, quando disse que “a única coisa do planejamento é que as coisas nunca ocorrem como foram planejadas”.

Tem gente que dá muita sorte com a vizinhança, mas é uma loteria. O sujeito que mora embaixo pode gostar de ouvir pagode do Ferrugem na maior altura todo domingo de manhã; a senhora que mora em cima pode passar o dia usando sapato que parece tamanco, batucando no taco para lá e para cá; o rapaz do lado pode ser um amante selvagem, daqueles que arrancam gritos da parceira, matando o resto do prédio de inveja.

Acreditem: passei por tudo isso na Asa Norte, esse bairro que é quase uma entidade sobrenatural, de tanta coisa estranha que acontece por lá. Saudade.

O pior vizinho, no entanto, parece ser o mais comum em Brasília: aquele que finge que você não existe, faz as maiores festas, não te convida para nenhuma e, para piorar, no dia seguinte coloca as caixas com cascos dos melhores rótulos para o gari recolher, mas bem a vista, para causar inveja. Prefiro o vizinho que não cumprimenta, mas não faz festa.

Tenho um amigo que em menos de dois meses morando num conjunto já conhece todos da vizinhança; sabe até o nome dos cachorros. É caso raro. Quem mora em prédio ainda esbarra em elevador, na caixa de correio, na beligerância da reunião do condomínio). Mas quem mora em casa, ainda mais com esses portões eletrônicos, entra sem falar, sai sem dizer nada e nem olha para trás. Difícil achar um “bom dia”.

Mas há sempre aquele vizinho que envolve a gente. Gregário, consegue até mudar nossos hábitos. Ele vai se introduzindo, simpático, quase servil, sempre pronto para ajudar, quando você vê está abrindo sua geladeira.

Na minha rua tem a senhora da janela; fica só observando o movimento. Não sei o que faz com as informações que recolhe, porque a única fofoca era a do marido que de vez em quando gritava com a mulher, mas parou quando a polícia foi acionada — na verdade foi uma ameaça, mas valeu.

E tem o vizinho de todos nós, o estado de Goiás, que tem sufocado o DF todo com essa música sertaneja, o jeito das moças se vestirem e o dos rapazes de falar sem o menor respeito com as concordâncias verbais e nominais. “É nóis!”. Eu retruco: – É eles.

Moradora do Lago Norte resgata gatos abandonados com apoio de vizinhos

Texto: Arthur de Souza

Solidariedade com os gatos
Cilene Maria Camargo faz parte do grupo de vizinhos que cuidam de gatos abandonados no Condomínio Privê no Lago Norte | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Mesmo tendo a fama de ser um animal solitário e que não é muito adepto ao carinho, os gatos também podem ser responsáveis por unir uma vizinhança, e a história de Cilene Maria de Camargos, 56 anos, moradora do Lago Norte, se encaixa como um desses exemplos. A servidora pública conta que sempre teve paixão por felinos, de modo geral. Contudo, foi em 2005 que ela passou a ter um olhar diferente para os gatinhos. “Fui para Palmas passar o carnaval na casa de uma irmã, e minha afilhada ajudou uma filhote. Só que lá, ninguém gostava de gatos, então acabei trazendo para Brasília”, comenta.

Na época, Cilene morava na Asa Norte e lembra que fez seu primeiro resgate um ano após adotar o filhote que trouxe de Palmas. “Só que os dois não se deram muito bem e tive que arrumar uma doação, que também também foi um sucesso”, revela. “A partir daí, nunca parei. As coisas foram acontecendo gradativamente e, quando percebi,  estava com uma ‘gatoeira’, resgatando gatos em vários locais. Comecei a seguir alguns deles, para saber se eram mansos, se tinham donos ou onde se escondiam, era diário”, detalha a servidora pública.

Após mais de 15 anos fazendo o trabalho na Asa Norte, Cilene se mudou para o Setor de Mansões do Lago Norte, onde o projeto se manteve. “Lembro-me que, ao chegar, alguns vizinhos já alimentavam e cuidavam de um ou outro gato, porém, a população felina cresceu muito rapidamente, pois eles não eram castrados. Eu me vi morando em uma rua com uma colônia de gatos em pleno crescimento”, conta. Foi quando ela conheceu uma vizinha, chamada Dalva, que fazia o trabalho no local. “Começamos uma parceria e amizade que proporcionou o resgate de dezenas de gatos e algumas ninhadas pegando com as mãos. Entre maio de 2021 e abril de 2022, realizamos 32 castrações, entre adultos capturados e filhotes em lar temporário”, destaca.

Elo fundamental

A nora de Dalva, Camila Martins, 40, também é vizinha de Cilene e, assim como a sogra, ajuda no projeto. Ela conta que, mesmo antes de a servidora pública chegar, havia um trabalho desenvolvido, que começou quase da mesma forma que o da Asa Norte. “Uma gata apareceu com o rabinho cortado e infeccionado. A gente a pegou, minha sogra colocou antibiótico no leite, foi amansando e foi tratando essa gata, até fazer uma cirurgia para tirar a parte que estava comprometida”, lembra. “No que a gente levou ao veterinário para fazer o procedimento, descobrimos que ela estava prenha. Foi feita a cesária, tirou todos os gatinhos e um dos fruto dessa mãezinha que a gente resgatou, está comigo atualmente”, comenta.

Solidariedade com os gatos
Com a amiga Camila Martins e os bichanos: parceria e afeto. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Depois da mudança de Cilene, a administradora diz que o projeto ficou ainda mais robusto. “A união com a Cilene nessa iniciativa foi fundamental, porque a minha sogra começou cuidando primeiro de um gato, aí depois viraram dois, três e, de repente, tínhamos dez gatos”, enumera. “Criamos um grupo com moradores no WhatsApp e lá a gente divulga fotos, presta contas e faz balanço de quantos gatinhos foram resgatados, castrados, além da quantidade de ração que está sendo comprada”, detalha Camila.

Muito a ser feito

Apesar das parcerias, Cilene e Camila contam que a adesão de outros vizinhos ao projeto ainda está mais concentrada no ‘virtual’. “Quem realmente põe a mão na massa é a Cilene e minha sogra. Eu ajudo financeiramente e ajudo quando eu posso nas ninhadas de pequenininhos, para cuidar. Infelizmente, a união presencial ainda é pouca”, confessa Camila. Além disso, Cilene comenta que, no decorrer desses meses, elas têm enfrentado muitas dificuldades, como a resistência da comunidade. “Divulguei alguns casos de resgate no grupo do condomínio e alguma ajuda apareceu, não suficiente ainda para 100% das despesas”, lamenta.

Solidariedade com os gatos
Depois de capturados, os bichinhos são encaminhados a adoção |Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Mesmo assim, a servidora pública comemora que, por meio da doação de mais de 20 moradores, conseguiram que muitos gatos fossem castrados em um curto espaço de tempo. “No momento, ainda temos dois gatos adultos que precisam ser resgatados para castração, contudo, é um número bem mais fácil de trabalhar”, diz. “O trabalho é árduo, incansável e acredito que, divulgando cada vez mais essas ações solidárias aos animais que vivem em situação de abandono, as pessoas vão se sentir motivadas a participar, olhando para o lado, para as ruas, para os estacionamentos e que ajude ou inicie no cuidado dos animais”, espera Cilene, afirmando que, quem estiver interessado em ajudar de alguma forma — seja com doações ou fazendo uma adoção —, pode entrar em contato através do telefone 61 981308483.

De olho no futuro

Cilene diz esperar que essa ‘corrente do bem’ tenha cada vez mais elos. “Em todos os locais existem animais abandonados e a solução para ajudá-los é a participação de todos”, pondera. E é justamente o que Camila tem feito na própria casa. Ela e o marido amam os animais e estão passando esse carinho para a filha. “Sempre que a gente via um cachorrinho na rua ou um gatinho a gente procurava ajudar. Ela cresceu vendo a gente fazer e desenvolver esse hábito, o amor pelos bichos, então, foi um movimento natural. Hoje em dia, ela faz porque ama”, conta.

Solidariedade com os gatos
Cilene dá alimentação e monitora os animais | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Apesar de ter pouco tempo — pois trabalha cerca de 12h por dia —, ela sempre tenta ajudar quando está com a filha. “Onde a gente encontra um bichinho em situação de abandono, procuramos socorrer, tirar uma foto para divulgar, dar comida, água, essas coisas”, complementa Camila.

Solidariedade com os gatos
Com a pandemia, o número de animais abandonados aumentou no DF | Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Pianista norte-americana encanta vizinhos com música clássica no Lago Sul

Pedro Almeida*

A musicista convidou o amigo havaiano Patrick Yim para acompanhá-la ao violino. Arquivo pessoal
A musicista convidou o amigo havaiano Patrick Yim para acompanhá-la ao violino | Foto: Arquivo pessoal

Onde as palavras falham, a música fala. Há seis meses em Brasília, a pianista clássica norte-americana Jennifer Heemstra, que ainda não domina o português, encontrou nas teclas do piano uma forma de dialogar com a nova vizinhança. De portas abertas, Jen recebe os vizinhos para concertos intimistas na própria sala de estar, no Lago Sul.

Nascida na cidade de Grand Rapids, em Michigan, nos Estados Unidos, Jennifer Heemstra estudou piano na Universidade Estadual do Michigan e, posteriormente, concluiu um mestrado em música no Cleveland Institute of Music. Como solista e musicista de câmara, se apresentou nos Estados Unidos, Europa, Ásia, Emirados Árabes e, agora, no Brasil. O amor pela música, evidente na devoção acadêmica, se alinhou, também, ao interesse por causas sociais. Além das teclas brancas e pretas, Jennifer comanda duas ONGs: a Kolkata Classics, que atua em Kolkata, na Índia, com aulas de música clássica para crianças e acesso à saúde voltado para mulheres vítimas de tráfico; a Pitch Pipe Foundation leva a melodia para os veteranos de guerra dos Estados Unidos.

Recém-chegada a Brasília, a artista se diz apaixonada pela beleza da cidade e pelo frescor do ar da capital. As plantas exóticas em meio ao concreto e o calor e receptividade dos moradores a encantaram logo na chegada. Nos primeiros dias de casa nova, ela foi convidada pelos vizinhos a assistir uma apresentação musical natalina no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). A generosidade do convite e a musicalidade dos brasileiros tornaram aquela experiência impactante e um marco do novo começo.

Jen viu as ondas sonoras emitidas pelo piano dela se dissiparem nas barreiras invisíveis da pandemia. As possíveis praças e salas de concerto da cidade estavam fechadas. Diante da impossibilidade de se apresentar, a pianista resolveu reinventar a própria sala de estar. Em posse de alguns equipamentos de show, Jen montou um cenário profissional em casa, centralizou o piano na sala e convidou o amigo Patrick Yim, que veio do Havaí para acompanhá-la ao violino.

Concerto na casa de Jennifer Heemstra: uma ação cultural para reunir a comunidade. Arquivo pessoal
Concerto na casa de Jennifer Heemstra: uma ação cultural para reunir a comunidade | Foto: Arquivo pessoal

Os vizinhos foram, então, convocados para presenciar o novo projeto. Uma hora antes do horário marcado, o jardim estava aberto com drinques e petiscos para que Jen conhecesse os novos amigos de rua. Se o inglês dos moradores, por vezes, não era o melhor, a música serviria de linguagem universal. E a conversa com notas rendeu de forma harmoniosa. Em duas semanas, a dupla se apresentou seis vezes. Em um segundo momento, Jen promoveu mais um ciclo de apresentações com o duo de violinistas Luciana Caixeta e Ricardo Palmezano.

Para completar, fez uma versão da apresentação voltada somente para as crianças do bairro. Atualmente, com a melhora da pandemia, a artista já voltou a se apresentar em salas de concerto, mas mantém uma periodicidade de uma ou duas apresentações por mês em casa para reunir os, agora, amigos da rua.

Uma das moradoras da rua é a brasiliense Núbia Holanda Cavalcante, taquígrafa da Câmara dos Deputados. Ela relata que gosta de receber bem os novos vizinhos. Ao ver o marido de Jennifer, que chegou primeiro, fazia questão de cumprimentá-lo. Nas conversas ao portão, ele destacava as qualidades da esposa musicista, que estava por vir.

Burocracia

Quando Jennifer chegou, Núbia foi conhecê-la. A vizinha e o marido convidaram o casal de estrangeiros para entrar e bater um papo. A visita rendeu ótimas conversas e deu início à amizade. Antes mesmo de Jennifer anunciar o primeiro concerto para a rua, Núbia teve o privilégio de conseguir ouvi-la ensaiar da própria casa. Quando o convite veio, foi impossível recusar. O emocionante concerto cumpriu o papel de unir a rua e quebrar o marasmo pandêmico. Núbia relata se inspirar na força de vontade de Jennifer. A taquígrafa relata que a pianista, apesar das adversidades burocráticas brasileiras e dos diversos “não” recebidos, não impedissem o projeto.

Jennifer e Núbia provam que uma vizinhança unida é aquela que dialoga. Seja em qual língua for; inglês ou português. Contanto que os sons vibrem pelo ar, há a possibilidade de amizades incríveis. No caso da vizinha na quadra 26 do Lago Sul, fala-se música.

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Moradores do Noroeste se unem para resgatar cães e gatos na rua

Renata Nagashima

Carlos Vieira/CB/D.A.Press
Stephanie Cunha (D) e Fernanda Nogueira: ação solidária no Bazar de Vizinhas

Engana-se quem acha que os vizinhos só se reúnem para fazer festas ou confraternizar. No Noroeste, os moradores dedicam esforços durante todo o ano para amparar animais de rua que foram abandonados ou esquecidos por ex-moradores. O excesso de cães e gatos deixados para trás nas ruas é uma realidade presente no setor e fez com que surgissem verdadeiros guardiões dos pets, que abraçaram a causa animal e lutam pelos direitos desses bichos.

No final de 2016, uma desocupação em uma área de invasão no Noroeste tirou 77 famílias de catadores de recicláveis que viviam irregularmente no local. As pessoas foram embora, mas os animais que ficavam no local, foram deixadas para trás e passaram a perambular pelas ruas do setor. “Esses bichinhos ficaram sozinhos no meio do mato e começaram a vir para cá. Então, o Noroeste ficou com matilhas de animais pelas ruas”, conta Stephanie Cunha, 55 anos, moradora do setor há nove anos.

Tocadas pela situação dos animais, algumas moradoras se juntaram para ajudar. Elas foram resgatando cães e gatos aos poucos. Os bichos eram castrados e depois levados para abrigos. “A demanda foi aumentando, mais vizinhos foram se unindo para apoiar a causa e assim o grupo Resgate Noroeste nasceu, pequenininho e entre moradores daqui mesmo. E cada vez mais crescendo o número de cachorros e gatos. Começamos a nos estruturar, continuamos a resgatar e ano passado a gente virou ONG”, relata Stephanie, que hoje é vice-presidente da Associação de Proteção Animal Resgate Noroeste.

Desde que o grupo se formou, 450 cães foram retirados das ruas e encaminhados para adoção. Quando resgatados, eles são levados para uma clínica parceira do Resgate, onde passam por um check-up, fazem todos os exames de sangue e imagem. Estando tudo certo, os animais são levados para um hotel parceiro, no Gama, fazem uma quarentena, em seguida são castrados e vacinados. “Depois desse processo nós fazemos o trabalho de divulgação nas nossas páginas para que eles sejam adotados e deem lugar para mais animais saírem das ruas”, explica.

Reprodução/Resgate Noroeste
Animais são resgatados e colocados para adoção pela ONG Resgate Noroeste | Foto: Reprodução/Resgate Noroeste

Para financiar as ações, os voluntários promovem ações como vendas de quentinha e bazar beneficente, que atualmente funciona em uma loja cedida por um vizinho que se solidarizou com a causa. “Os próprios vizinhos doam as coisas que vendemos no bazar. Tudo isso aqui é uma união de esforços”, completa Stephanie.

Além de ajudar os animais, o grupo também serviu para unir e fortalecer os laços de amizade entre os vizinhos. “Isso fez com que as pessoas se conhecessem, criamos muitas amizades. Aí todo mundo desce um determinado horário, os cachorros brincam, as pessoas se confraternizam. Eu acho que isso também movimentou, criamos grupos de mensagens, as pessoas conversam e trocam mais ideia”, afirma.

Uma das amizades que Stephanie fez foi com a professora, Fernanda Nogueira, 38, que atualmente cuida do bazar solidário com a vice-presidente da ONG. E ela garante que o que mais a atraiu para morar no setor foi a quantidade de projetos e a aproximação entre os vizinhos. “A gente organiza eventos, bazares, a gente ajuda cachorro, ajuda família carente e, ao mesmo tempo, fortalece o vínculo entre os vizinho”, diz.

A professora compara o Noroeste com uma cidade do interior. “Aqui o povo é muito bairrista. Então, tem o grupo do bar que a gente pergunta ‘quem quer tomar uma hoje?’ e já acha uma companhia. A gente desce sozinho para o bar e encontra a galera, não precisa sair de casa acompanhado necessariamente. Temos  que ter esse vínculo, para qualquer coisa tem um vizinho disponível para sair com você”, destaca Fernanda.

Artigo: Brasília, cidade da esperança

Lia Zanotta Machado | Professora emérita de antropologia da UnB

Webert da Cruz/Divulga??o
Grupo Seu Estrelo. A quinta Roda…: Camila Oliveira e Tico Magalhães como personagens dos mitos do Cerrado. | Foto: Webert da Cruz/Divulgação

Brasília: centro político ou cidade habitada e vivida? Centro político parece casar bem com os estereótipos de cidade planejada e fria, cidade monumental, sem esquinas e sem socialidade. A cidade vivida pode se tornar invisível para os que aqui não moram em Brasília. Brasília, ao longe e de longe, se torna sinônimo do governo instalado, amando-a ou rejeitando-a, sem sequer dar-se conta que o projeto se tornou uma cidade e já completa 62 anos. Planejada nas linhas de uma cruz concebida por Lucio Costa, é vista como o desenho de um avião, do alto da Torre de TV, com suas duas grandes asas: a Asa Norte e a Asa Sul unidas verticalmente pelo corpo do avião: o chamado Eixo Monumental.

O projeto original de Brasília previa apenas 500 mil habitantes no ano 2000. Incluía Plano Piloto e arredores que sequer previam moradia para os candangos e pioneiros que construíram Brasília. Muito menos que ela se constituiria em importante polo de atração de migração. Brasília possui uma população estimada total de 3.094.325 de habitantes, o que faz da capital a terceira maior cidade do país, atrás de São Paulo e Rio de Janeiro.

Nem cruz, nem avião. Para os habitantes de Brasília, as linhas que demarcam Brasília são hoje outras: são as linhas quadradas do contorno do Distrito Federal que abriga suas 33 regiões administrativas. O Quadrado, ou melhor: o Quadradinho é cantado em verso e prosa. O Quadradinho é afeto. É viver a cidade. “Derrubar muros e erguer pontes, unir pessoas e lugares” dentro do “quadradinho”, é um mote que antagoniza e enfrenta a anterior percepção de “Brasília como Plano Piloto cercado de cidades satélites”. É uma percepção abrangente, democrática, diante de uma cidade que cresce sem parar por todos os lados. Um “quadradinho todo num só” é possível?

A inovação é a tecla que articula a percepção de Brasília projeto e Brasília cidade que cresce e se expande. Os meios para isso seriam e devem ser muitos. Necessário mais infraestrutura urbana, mais transportes e cada vez mais cuidado com a sustentabilidade e meio-ambiente.

Contudo a construção da identificação dos brasilienses com Brasília como um todo, com o seu “quadrado”, se dá pelas redes de sociabilidade: redes de vizinhança que se constroem em espaços próximos entre oriundos de diversas origens do Nordeste ao Sudeste. E pelas redes sociais de parentes que atravessam e articulam diversas e diferentes regiões administrativas. Mas não só.

De quantas origens podemos falar sobre os habitantes de Brasília? Hoje, de acordo com as estimativas do IBGE, estamos pela primeira vez com maioria simples de nascidos na cidade versus migrantes. Em 2011, 51,8% eram migrantes. Brasília é formada por gente de todos os lugares, todas as idades e de muitas gerações. É uma mistura de sotaques e culturas do Nordeste, Sudeste, Norte e Sul do país e de estrangeiros.

A identificação abrangente de Brasília se vem fazendo, não só pelas redes sociais, mas pela produção cultural musical e artística, chamada incessantemente para pensar e construir a percepção de Brasília.

Renato Russo é pioneiro. Canta e conta Brasília em seus diversos pontos e locais, muito além do Plano Piloto. Produzir memória cultural significa em Brasília, produzir memórias e sotaques das mais diversas partes do Brasil, mas sempre com inovação. Seu Teodoro havia trazido o Boi-Bumbá do Maranhão para Sobradinho e para a Universidade de Brasília em 1962 e aí permanece. Chico Simões, trouxe o Mamulengo Presepada em 1985 para Taguatinga e Tico Magalhães trouxe para Brasília em 2004 o Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro (foto), que criou o mito do Calango Voador com personagens do Cerrado e do Planalto Central a partir do maracatu e o cavalo marinho de Pernambuco. Entre tantos outros. A inovação e a criatividade se impõem. Porque há que se mesclar, articular diversidades e produzir sincretismos.

O Clube do Choro busca introduzir a brasilidade e sua diversidade para Brasília. Foi fundado em 1977, mesmo ano que eu chegava em Brasília como professora de antropologia da UnB. Sua fundação se deu na casa da premiada flautista e também professora da UnB, Odete Ernest Dias, tornando-se seu primeiro presidente o citarista Avena de Castro. Em 1993, foram retomadas as atividades do Clube do Choro, conseguindo novo espaço projetado para o Clube e criada a Escola Brasileira do Choro. Hoje, há já 15 anos o grupo Samba Urgente nascido dessa escola, inova e afirma que a cidade de Brasília é muito mais. Não é uma cidade de político. É uma cidade vivida, solidária, vivaz, esperançosa e construtora do futuro. Uma cidade síntese cultural como já dizia meu amigo e grande antropólogo Roque Laraia.

Maestro Cláudio Cohen divide paixão pela música com vizinho na Asa Sul

Irlam Rocha Lima

 Claudio Cohen ( azul ), maestro da Orquestra Sinfonica do Teatro Nacional e Paulo Roberto Nogueira, servidor público aposentado
Claudio Cohen (azul), maestro da Orquestra Sinfonica do Teatro Nacional e Paulo Roberto Nogueira, servidor público aposentado | Foto: Carlos Vieira/CB/D.A. Press

A intensa atividade que desenvolve, como maestro da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro, inviabiliza o violinista Cláudio Cohen manter uma agenda social. Ele se permite, no final de semana, fazer caminhada, tomar banho de sol e almoçar no clube que frequenta, sempre com a mulher Fabiane. Por vezes, o casal e o filho Bruno, de 12 anos, vão a algum restaurante próximo de onde moram.

Como os concertos da sinfônica voltaram a ocorrer regularmente, agora às 20h, de terça-feira, no auditório do Museu Nacional da República, Cohen divide o tempo entre o escritório da orquestra, que fica na Biblioteca Nacional, os ensaios no Cine Brasília, e o estúdio que mantém em casa, onde guarda livros, discos, partituras e filmes de concertos, além do violino italiano do século 19, que adquiriu em 1990.

Na sala do apartamento, localizado na 314 Sul, está instalado um piano. Segundo o maestro, quem mais o utiliza é o filho, que está recebendo aulas do instrumento, depois de ter estudado violino. “Bruno, talvez influenciado por mim, pretende levar adiante a carreira de músico”, comenta o pai-coruja. “Ficaria muito feliz se ele viesse se tornar um violinista ou um pianista”. observa.

Pela dedicação, praticamente exclusiva, ao ofício que exerce, sobra pouco tempo para o maestro interagir com os vizinhos do prédio onde mora. “Tenho boa relação com os moradores do bloco, mas não nos visitamos. Quase todos, sabem que sou maestro da Orquestra Sinfônica; e quando, eventualmente, nos encontramos, no elevador ou na garagem, a conversa gira em torno de música”, comenta.

Mas entre os vizinhos há um de quem ele se tornou amigo: o servidor público aposentado Paulo Roberto Nogueira. “Já conhecia o Cláudio, antes de ele vir morar aqui no prédio. Como sempre tive o saudável hábito de assistir aos concertos da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional, me recordo dele da época em que era spalla (violinista principal). Mas, só nos aproximamos depois que ele veio morar aqui na 314. A primeira vez que conversamos foi num encontro casual na garagem. A partir daquele dia nos tornamos amigos”, lembra Paulinho — como ele é chamado pelos amigos —, que deixa claro a admiração que tem pelo maestro.

Espectador assíduo

“Depois disso, passei a ser um espectador assíduo dos concertos que o Cláudio rege e procuro conversar com ele depois das apresentações. Como sou leitor do Correio Braziliense, toda vez que o jornal publica alguma matéria sobre a orquestra, compro um exemplar a mais e levo para ele”, conta. “Costumo, também, presentear o pequeno Bruno com objetos referentes ao Flamengo, clube do qual tanto ele como eu somos torcedores”.

Fã, também, de Zé Mulato & Cassiano, Paulinho intermediou junto a Eduardo Araújo, então presidente do Teatro dos Bancários, o show comemorativo dos 40 anos da dupla, acompanhada por uma orquestra, sob a regência de Cláudio Cohen. “Aquela foi uma noite inesquecível, na qual a música sertaneja de raiz e a sonoridade erudita estiveram lado a lado, num concerto que entrou para a história do Teatro dos Bancários; e que vai ficar guardada na memória afetiva das pessoas que superlotaram aquele importante espaço localizado na entrequadra 314/315 Sul”, ressalta.

Embora destaque a simplicidade do amigo, Paulinho vê Cláudio Cohen como um intelectual, “capaz de discorrer com total familiaridade sobre a obra dos grandes mestres nacionais e internacionais da música erudita”, acrescenta.

 

Paixão pela cultura gera amigos de luta e de poesia na cena artística do DF

Edis Henrique Peres

Edis Henrique Peres/CB/DA Press
Vicente Sá (E) e Renato Matos, são amigos e compartilham entre si músicas brasilienses | Foto: Edis Henrique Peres/CB/D.A. Press

Unidos pelo amor à arte, artistas plásticos, poetas e produtores culturais encontraram no companheirismo não apenas um vínculo de amizade sólida, mas também um laço familiar. “Uma relação que foi se construindo e se fortalecendo ao longo do tempo e que hoje faz com que sejamos mais que amigos, somos praticamente irmãos”, define Lúcia Leão, 66 anos, coordenadora do Espaço Cultural Leão da Serra. A amazonense deixou o estado natal para ir estudar no Rio de Janeiro, mas em 1977 se mudou da cidade carioca e veio construir a vida em Brasília. Produtora cultural, ela conta que logo que chegou à capital  conheceu o artista plástico Renato Matos, 70, que nos anos seguintes se tornaria um grande amigo. O também cantor e compositor lembra do começo dessa parceria com orgulho: “Foi ela (Lúcia) que produziu meu primeiro disco. Uma história antiga, mas uma história maravilhosa”.

As idas e vindas dessa amizade uniu um terceiro artista ao grupo: o marido de Lúcia, o poeta Vicente Sá, 65. “Eu conhecia Renato de vista, mas ainda muito pouco. Depois produzimos alguns projetos juntos e, por causa da Lúcia, nossa relação foi se estreitando. Então aconteceu que há cerca de nove anos ele precisava de um local para montar seu ateliê e tínhamos um espaço na propriedade. Agora ele é nosso vizinho”, relata. “Como não é muito longe uma casa da outra, a gente costuma se encontrar para conversar no meio do caminho”, brinca Vicente.

A afinidade garante, inclusive, colaborações em trabalhos artísticos. “Temos músicas que escrevemos juntos, eu e o Renato. É um trabalho que fazemos constantemente. De vez em quando, outros amigos vêm até aqui, de 15 em 15 dias, para compormos algo, em um exercício de produção. Tem dia que dá certo, outros que não tem resultado. Mas com essa prática já temos umas dez músicas escritas. Outras vezes, eu também vou ao ateliê do Renato ver os quadros em que ele está trabalhando. Somos grandes parceiros do trabalho um do outro”, garante Vicente.

Luta pela cultura

Natural de Pedreira, Maranhão, Vicente Sá chegou em Brasília aos 11 anos de idade, em 1968. “Ainda era ditadura. Meus pais vieram para cá porque meu irmão mais velho passou na UnB (Universidade de Brasília) então todo mundo veio junto. Sou o mais novo de 19 irmãos. No fim, Brasília influencia muito o que produzo, porque praticamente me criei aqui, morei em várias regiões administrativas e semanalmente publico crônicas em minhas redes sociais sobre a cidade”, cita.

Lúcia conta que por muito tempo disse que Brasília era uma cidade sem avós. “As pessoas vinham para cá separadas da família, sem ter os parentes mais próximos morando aqui. Então quando você precisava de alguma coisa, que seriam situações que geralmente pedimos ajuda para a nossa mãe, irmã, ou algum familiar, aqui em Brasília contávamos com nossos amigos. Então são esses amigos que vão se tornando essas pessoas com laços profundos, de relações muito sólidas. Os amigos tem que contar com os outros para criar essa rede de solidariedade, e não somente porque somos artistas e enfrentamos desafios parecidos, mas porque somos gente”, defende.

“Uma relação que foi se construindo e se fortalecendo ao longo do tempo e que hoje faz com que sejamos mais que amigos, somos praticamente irmãos”

Lúcia Leão, coordenadora do Espaço Cultural Leão da Serra

As memórias de Maria do Carmo Manfredini, mãe de Renato Russo

Irlam Rocha Lima

A família Manfredini no apartamento da 303 Sul
A família Manfredini no apartamento da 303 Sul | Foto: Arquivo pessoal

Quando chegou a Brasília, em 6 de março de 1973, Maria do Carmo Manfredini, o marido Renato Manfredini e os filhos Renato Manfredini Jr. e Carmem Teresa Manfredini, inicialmente se instalaram num hotel, na Asa Sul. Logo depois passaram a ocupar um apartamento no Bloco B da SQS 303 — adquirido pelo patriarca da família.

Servidor graduado da presidência do Banco do Brasil, Renato Manfredini, por escolha própria, veio transferido pela instituição para a nova capital. “Estávamos vindo do Rio de Janeiro, onde morávamos numa casa, na Ilha do Governador. Dois anos antes, Renato e eu tínhamos vindo conhecer Brasília. Ficamos encantados com a cidade de grandes espaços, muitas áreas verdes e arquitetura futurista.

Sentimento semelhante tiveram o Júnior (Renato Russo) e Carmem Teresa. Olhando as vias e os prédio pelas janelas, quando entramos no Eixo Monumental, eles ficaram deslumbrados”, lembra Dona Carminha, como, respeitosamente, é chamada, mesmo por quem é próximo dela.

O apartamento, de sala ampla, quatro quartos e outras dependências, foi considerado ideal por todos os Manfredini. Um dos quartos, o ocupado por Renato Russo, se transformou inicialmente num espaço de estudos e, posteriormente, o local de trabalho, além de uma espécie de estúdio, do futuro líder da Legião Urbana. Antes de se dedicar profissionalmente à música, estudou jornalismo no Ceub, chegou a ser repórter da 105 FM (atual Clube FM, dos Diários Associados) e professor de inglês na Cultura Inglesa.

“Enquanto era garoto, o Júnior gostava de andar de patins embaixo do bloco e nos acompanhava quando íamos a restaurantes e à Associação Atlética Banco do Brasil (AABB). Mas depois só queria sair sozinho, para encontrar os amigos em vários locais, principalmente nas fotos, Maria do Carmo mantém no apartamento apenas alguns discos de ouro e platina recebidos por Renato Russo.

Crédito: Reprodução da Internet. Renato Russo, na Banda Aborto Elétrico.
Renato Russo, na Banda Aborto Elétrico | Foto: Reprodução

A matriarca diz que sempre teve ótima relação com os vizinhos, embora não costume visitá-los. “Mesmo quando o Júnior aprontava, eles relevavam”, comenta. Mas deixa claro que entre os moradores do bloco é com Margarida Custódio, moradora de apartamento localizado no piso abaixo do dela, que mantém amizade mais longa e fraternal.

Receitas culinárias

“Somos vizinhas e amigas desde 1975, embora não nos encontremos muito. No período da pandemia, então, ficou ainda mais difícil. Mas, nos falávamos por interfone ou por telefone quase todos os dias, a respeito de assuntos diversos, inclusive sobre receitas culinárias, coisa comum a duas donas de casa, que gostam de cozinhar”.

Viúva de de José Darcy Custódio, também servidor do Banco do Brasil, Margarida Custódio mora no bloco B da 303 Sul desde 1972. Mãe de cinco filhos, só um deles, servidor do Supremo Tribunal Federal, mora com ela. Embora, com alguma frequência, receba a visita dos outros filhos, da nora e dos netos, é com Dona Carminha que mais bate papo.

“Vizinhas, nos tornamos desde que ela veio morar aqui há quase 50 anos. Durante esse tempo todo, nunca tivemos nenhuma desavença. Nos distanciamos um pouco quando ela foi morar com a filha Carmem Teresa num condomínio no Lago Sul. Mas mesmo naquele período, nos falávamos por telefone”, recorda-se Margarida. “Depois que voltou para o bloco, as conversas, quase que diárias, por interfone, foram retomadas. Sempre que faço pão de queixo, levo pra Carminha”, diz, tomando esse gesto prosaico como um elo entre ambas.